As redes foram usadas, não para formar uma comunidade humana de
interlocutores de boa vontade, mas de fascistas, neofascistas,
pedófilos, intolerantes e fanáticos, que passaram a fazer uma catequese
pelo avesso. Instaurou-se uma rede demoníaca de leitores (chamada de
“imbecis”, por Umberto Eco) prontos a apoiar ditadores, messias,
salvadores da pátria, aventureiros
No exato momento em que o Senado federal cria uma Comissão
Parlamentar de Inquérito para apurar a ocorrência das ” fake news”
durante o processo eleitoral passado e sua persistência nas redes
sociais, CPI que tem como relator e secretária parlamentares
independentes do bolsonarismo e no filho senador do primeiro mandatário
da nação um dos principais envolvidos, a editora Companhia das Letras
publica uma estimulante biografia intelectual dos principais membros da
chamada “Escola de Frankfurt”(O Grande Hotel Abismo). Os leitores hão de
perguntar o que tem a ver a publicação desse estimulante livro com um
assunto tão pedestre como a apuração do crime de “fake news” pelas redes
sociais. Aparentemente, nada. Mas, ao contrário, tem tudo a ver.
A obra discute de uma maneira ampla a contribuição do filósofo Jürger
Habermas à teoria crítica, chamando a atenção para a correção
democrática e cívica que o pensamento deste teórico terminou por fazer
na visão pessimista e sem perspectiva de seus predecessores e mentores
intelectuais. Entre as inúmeras contribuições à teoria crítica, já na
terceira geração, avulta uma da maior importância para o ideário
democrático: o conceito normativo e republicano de “esfera pública”.
Diria um autor contemporâneo, a formação da vontade política” dos
cidadãos e cidadãs é a moralidade do regime democrático. Não há
democracia, digna desse nome, sem esfera pública.
Esse tema tinha sido o objeto de estudo da tese de doutorado de J.
Habermas: “Mudança estrutural da esfera pública”. Nele, o filósofo tinha
estudado a origem da moderna esfera pública nos cafés, saloons,
encontros da sociedade francesa no século XVIII e constatado seu
declínio com o surgimento da indústria cultural, dos grandes jornais, da
propaganda etc. Mas o conceito ganhou cidadania na Ciência Política
como a essência normativa (e moral) do regime democrático, escorado no
processo de formação discursiva da opinião pública esclarecida e
informada, na linha da argumentação kantiana do “uso público” da razão.
Processo este responsável pela autonomia, a liberdade e o espírito
crítico das pessoas, numa sociedade que marchava para sair do
absolutismo e o monopólio da verdade por uma minoria. Depois, o conceito
de esfera pública veio se corporificar nas chamadas “democracias
deliberativas”, com seus fóruns onde o livre debate de ideias ajudaria a
criar agendas públicas, apoiadas em consensos racionais.
Mas o que interessa aqui é discutir as virtualidades cívicas e
democráticas que a rede mundial dos computadores (a internet) poderia
ter criado para a existência de uma verdadeira “esfera pública mundial”.
Este é o ponto. Houve inicialmente muito entusiasmo e esperança que
esta rede pudesse ajudar ao surgimento dessa comunidade internacional de
cibercidadãos, animados de boa-fé, a produzirem consensos racionais em
torno de causas humanitárias, republicanas e democráticas, Naturalmente,
o exemplo era a União europeia. Infelizmente, depois das consequências
do Tratado de Maastrich, a unificação macroeconômica dos países
europeus, a crise econômica e o fundamentalismo casado com a xenofobia,
produziu-se o que Boaventura Santos intitulou de “fascismo social”: toda
a causa da imensa crise social foi jogada nas costas dos imigrantes,
dos pobres, dos muçulmanos etc. Ao invés do cumprimento das promessas
desse novo iluminismo (agora chamado de “razão comunicativa”), tivemos o
inferno de governos de extrema-direita ou socialistas rendidos à agenda
de “guerra ao terror”.
Nesse contexto, a mundialização das redes sociais não podia promover
uma comunicação racional, desprovida de imperativos de poder ou
interesses. A ampliação das redes de comunicação deu lugar à
disseminação da xenofobia, do fundamentalismo, do preconceito racial, de
gênero ou orientação sexual. As redes foram usadas, não para formar uma
comunidade humana de interlocutores de boa vontade, mas de fascistas,
neofascistas, pedófilos, intolerantes e fanáticos, que passaram a fazer
uma catequese pelo avesso. Instaurou-se uma rede demoníaca de leitores
(chamada de “imbecis”, por Umberto Eco) prontos a apoiar ditadores,
messias, salvadores da pátria, aventureiros, que prometiam segurança,
paz e prosperidade para essa extensa massa de “idiotas úteis”.
Essa morte da esfera pública chegou ao Brasil e produziu os seus
malefícios antidemocráticos e antirrepublicanos na eleição presidencial
passada. Escritórios, estipendiados por empresas interessadas na eleição
de um dos candidatos, foram montados por milícias virtuais para
inundarem as redes sociais de “fakenews”, com as piores calúnias,
injúrias e difamações – que aliás, permanecem impunes- com uma
influência direta na formação da vontade política dos eleitores.
Imagine-se o oposto do conceito normativo de “esfera pública”, com o
objetivo de suscitar o aparecimento de uma mentalidade fascista ou
pró-fascista, ajudado pelas igrejas neopentecostais, inspiradas numa
teologia da prosperidade.
Por tudo isso, afirmou o nosso filósofo que não era possível ver
nesse fenômeno uma espécie de neo-iluminismo, até pela fragmentação das
audiências; mas ao contrário, o caldeirão perfeito para a produção da
intolerância, do racismo, da teocracia e da xenofobia.
Vamos dar boas-vindas a esta iniciativa do Senado Federal
brasileiro e esperar que ela apure cabalmente as responsabilidades
daqueles que difamaram, caluniaram e injuriaram os adversários,
utilizando-se das redes sociais. A se continuar a impunidade pelos
crimes de opinião na internet, jamais teremos – não digo, uma comunidade
racional de pessoas – um regime democrático e republicano entre nós.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE
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