Anne Mathieu
Em 19 de abril de 1980, o enterro de Jean-Paul Sartre mobilizou uma multidão, como o de Victor Hugo, pouco menos de cem anos antes. Com a morte de Sartre, uma época de engajamentos e de recusa da etiqueta burguesa parece ter terminado. O exibicionismo midiático e o encastelamento universitário hoje em dia caracterizam os dois polos do mundo intelectual, ambos distantes do modelo sartriano
Ultrapassados e gastos até a medula do erro. Pois, como tantas vezes nos recordam, Sartre estaria errado o tempo todo3 – a menos que essa acusação não se volte contra os acusadores. Façamos nossas as palavras revigorantes de Guy Hocquenghem alguns anos depois da morte do autor de Caminhos da liberdade: “Almas avaras e pobres, puritanas e teoristas, vocês quiseram cem vezes matar Sartre. Mas, quanto mais o renegam, mais o reanimam. Quanto mais o empurram, mais ele os abraça, mais os leva consigo na morte. O verdadeiro Sartre escapa ao túmulo do respeito renegado e da traição onde vocês quiseram encerrá-lo”.4
Companheiro do Partido Comunista
A guerra estimularia o engajamento de Sartre. Mobilizado em setembro de 1939 e aprisionado em junho de 1940, foi transferido para um stalag (campo de prisioneiros) em Trèves. Ali conheceu a camaradagem, a fraternidade; escreveu e encenou uma peça de Natal, Bariona ou o Filho do Trovão. Libertado em março de 1941 fazendo-se passar por civil, Sartre voltou a Paris decidido a agir. Fundou com Maurice Merleau-Ponty o grupo efêmero “Socialismo e Liberdade”, imaginando organizar um movimento de resistência com a ajuda de André Gide e André Malraux, na zona livre. Sua peça As moscas fala em resistência na Paris ocupada. Em 1943-1944, colaborou nas Lettres Françaises, órgão do Comitê Nacional dos Escritores fundado na clandestinidade por Jacques Decour e Jean Paulhan.6 Mas isso foi tudo: Sartre não seria nem Georges Politzer nem Claude Bourdet. Antes da Segunda Guerra Mundial, o que impressiona é a ausência de qualquer horizonte político. Diga o que disser Simone de Beauvoir e malgrado a novela O muro, ele permaneceu distanciado do que acontecia na Espanha.7 Quando lemos sua correspondência com Simone, o “Castor”, ficamos estupefatos ao notar a primeira menção política apenas em julho de 1938, dois meses antes de Munique. Além disso, os dois não sabiam muita coisa da Frente Popular. Esse distanciamento político no entreguerras o levou durante a vida inteira a caminhar lado a lado com o fantasma de Nizan, seu amigo de juventude que, ele sim, se engajara totalmente desde o fim dos anos 1920.
Sartre entrou em fevereiro de 1948 para o comitê diretor do Rassemblement Démocratique Révolutionnaire (RDR) [União Democrática Revolucionária], cujo projeto havia sido elaborado anteriormente por jornalistas e intelectuais de esquerda e extrema esquerda, entre os quais David Rousset. O RDR morreu com a saída de Sartre (outubro de 1949); e esse foi seu único engajamento em um partido político. De meados de 1952 ao fim de 1956, ele flertou com o Partido Comunista Francês (PCF), amplamente motivado pela repressão policial e judicial de que este era então objeto, mas que se insurgira violentamente contra ele até então. Com efeito, o presidente da União dos Escritores Soviéticos o havia chamado em 1948 de “hiena datilógrafa”. Sartre rompeu com o partido em novembro de 1956, quando a URSS esmagou o motim húngaro. Como seria sempre o caso, seu ímpeto jornalístico se impregnou da temática e do léxico dos companheiros que escolheu. São assim os textos publicados no France-U.R.S.S. em 1955, que não devem nada à fraseologia dos comunistas ortodoxos. Não obstante, os artigos sartrianos desse período oferecem uma reflexão sempre atual sobre a mistificação dos dirigentes e da imprensa: “Todos os nossos leitores sabem que consideramos nefasta a política do governo e que desprezamos os homens que a inspiram; mas nossa tarefa consiste em demonstrar isso sem descanso. Somente demonstrando é que podemos esperar servir. Insistiremos: se é proibido chamar Bidault de criminoso, nós o chamaremos de grande culpado; se nos recusarem o direito de falar sobre o sangue que ele tem nas mãos, falaremos das escamas que ele tem nos olhos. Mera questão de terminologia”.8
Alguns, frequentemente os mesmos, não aceitam também sua amizade com o psiquiatra e ensaísta martinicano Frantz Fanon, então quase no ostracismo, e do qual prefaciou Os condenados da terra (1961), ensaio que serviu de farol para o terceiro-mundismo. No prefácio, ele vilipendia a mentira de uma nação orgulhosa que é apenas a sombra de si mesma: “Quanta conversa fiada! Liberdade, igualdade, fraternidade, amor, honra, pátria, que sei eu? Isso não nos impediu ao mesmo tempo de proferir discursos racistas: negro sujo, judeu sujo, rato sujo”.11
Para empreender “uma defesa política de Sartre”14, o melhor é considerar sua obra “inserida”, avaliar nela tanto os erros, os exageros e as fraquezas quanto o brio, a pertinência e a atualidade. Atualidade? Se esse modelo do intelectual engajado saiu de moda, não há motivo nenhum para regozijo. Em 1983, três anos após a morte de Sartre, Pierre Bourdieu explicou que “as condições conjunturais, mas também estruturais, que […] tornavam possível [o intelectual por excelência] estão hoje desaparecendo: as pressões da burocracia de Estado e as seduções tanto da imprensa quanto do mercado de bens culturais, unidos para reduzir a autonomia do campo intelectual e de suas instituições próprias de reprodução e consagração, ameaçam o que havia, sem dúvida, de mais raro e mais precioso no modelo sartriano do intelectual e que mais contrariava de fato as disposições ‘burguesas’: a recusa dos poderes e privilégios mundanos (o Prêmio Nobel, por exemplo) e a afirmação do poder e do privilégio propriamente intelectuais de dizer ‘não’ a todos os poderes temporais”15.
A recusa de Sartre a que assistimos é o inverso da lógica da homenagem. Má consciência dos intelectuais televisivos ou apadrinhados, ele nos lembra (e a eles) que um intelectual se torna digno desse nome por seu pensamento, sua atuação, sua obra, sua determinação, nunca por suas aparições nas mídias ou por seus amigos poderosos. Aos praticantes do pensamento pronto, sempre a repetir que os tempos mudaram, que as lutas e as reivindicações só são admissíveis dentro de limites estreitos, pode-se replicar que nenhuma mudança pelo bem comum ocorreu quando se sussurrou “sim”, mas quando se bradou “não”. No início da luta há sempre a recusa. Os intelectuais e jornalistas que rejeitaram Sartre sabem disso muito bem, embora seus discursos digam o contrário. Deformar e cobrir de opróbrio a palavra sartriana é sufocar a liberdade de nos opormos à pressão das convenções e dos poderes. É induzir-nos a crer que todas as palavras se equivalem e contribuir para degradá-las num momento em que a responsabilidade do intelectual consiste às vezes em recorrer, conforme dizia o próprio Sartre, a “revólveres carregados”.
*Anne Mathieu é mestre de conferência em Literatura e Jornalismo da Universidade de Lorraine, França, e diretora da revista Aden.
(Texto publicado originalmente no site do Le Monde Diplomatique Brasil)
1 Pierre Bourdieu, “Sartre, l’invention de l’intellectuel total” [Sartre, a invenção do intelectual total], Libération, 31 mar. 1983; reeditado em Agone, n.26-27, 2002.
2 Cf. Dossier Sartre, Europe, Paris, out. 2013.
3 Cf. Claude Imbert, “Sartre, la passion de l’erreur” [Sartre, a paixão do erro], Le Point, 14 jan. 2000.
4 Guy Hocquenghem, Lettre ouverte à ceux qui sont passés du col Mao au Rotary [Carta aberta àqueles que não usaram colarinho Mao no Rotary] (1986), Agone, Marselha, 2003.
5 Jean-Paul Sartre, “Présentation des Temps Modernes” [Apresentação de Os tempos modernos], Les Temps Modernes, 1º out. 1945 (reeditado em Situations II, Gallimard, Paris, 1948).
6 Cf. Michel Contat e Michel Rybalka, Les Écrits de Sartre [Os escritos de Sartre], Gallimard, 1970; cf. também Annie Cohen-Solal, Sartre, Gallimard, 1985.
7 Cf. Anne Mathieu, “Jean-Paul Sartre et l’Espagne: du ‘Mur’ à la préface au Procès de Burgos” [Jean-Paul Sartre e a Espanha: de O muro ao prefácio do Processo de Burgos], Roman 20-50, jun. 2007.
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