pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: Le Monde Diplomatique: A recusa de Sartre
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terça-feira, 14 de abril de 2020

Le Monde Diplomatique: A recusa de Sartre


Anne Mathieu


Em 19 de abril de 1980, o enterro de Jean-Paul Sartre mobilizou uma multidão, como o de Victor Hugo, pouco menos de cem anos antes. Com a morte de Sartre, uma época de engajamentos e de recusa da etiqueta burguesa parece ter terminado. O exibicionismo midiático e o encastelamento universitário hoje em dia caracterizam os dois polos do mundo intelectual, ambos distantes do modelo sartriano
Existe um “paradoxo Sartre”. Aquele que simboliza “o intelectual total, presente em todas as frentes do pensamento (filósofo, crítico, romancista, teatrólogo)”,1 mal encontra um lugar póstumo, digno desse nome, em seu país. O paradoxo é acentuado pela disseminação cada vez mais intensa do pensamento e dos escritos sartrianos no estrangeiro. É que a França se ilumina agora com as lanternas do conformismo consensual ao que os (pseudo)debates televisivos e radiofônicos nem sequer chegam a dar a ilusão de um sopro desestabilizador. O medíocre e o convencional ficavam bem longe daquele que nunca deixou, após a Segunda Guerra Mundial, de fustigá-los, de se lançar ao combate, de assumir riscos. Uma certa intelligentsia recusa a Sartre seu status de representante do intelectual engajado “à francesa”. Única obra a conseguir unanimidade: As palavras (1961). Sobram elogios sobre “a obra-prima do escritor”, o que não é por acaso: essa autobiografia na qual ele narra sua infância e juventude não perturba ninguém. O pensamento único de direita, assim como o de esquerda, soube identificar a obra que lhe permitia poupar unilateralmente o intelectual e, ao mesmo tempo, relegá-lo à “loja de acessórios” datados, ultrapassados.2
Ultrapassados e gastos até a medula do erro. Pois, como tantas vezes nos recordam, Sartre estaria errado o tempo todo3 – a menos que essa acusação não se volte contra os acusadores. Façamos nossas as palavras revigorantes de Guy Hocquenghem alguns anos depois da morte do autor de Caminhos da liberdade: “Almas avaras e pobres, puritanas e teoristas, vocês quiseram cem vezes matar Sartre. Mas, quanto mais o renegam, mais o reanimam. Quanto mais o empurram, mais ele os abraça, mais os leva consigo na morte. O verdadeiro Sartre escapa ao túmulo do respeito renegado e da traição onde vocês quiseram encerrá-lo”.4
Desde sua morte em 1980, pouca coisa foi poupada àquele que muitos temeriam enfrentar enquanto vivo. Sartre seria um filósofo que falou mal da literatura… As carteiras dos estudantes pulularam durante muito tempo com essas piadas de mau gosto – e chegaram até as salas de aula dos universitários, disfarçadas de legitimidade científica. Justamente em literatura é que Sartre continua pouco estudado. Mas convém reler seu primeiro romance, A náusea (1938), sua coletânea de contos, O muro (1939), sua trilogia injustamente ignorada e subestimada, Os caminhos da liberdade (1945-1949). Belos textos, variados estilística e narrativamente, que “falam” a todo mundo, afetando para sempre a formação intelectual e pessoal: marca das obras-primas. Seu teatro? Também ele diverso, inventivo e… atual. Além de Entre quatro paredes (1944) e As mãos sujas (1948), suas peças mais conhecidas e mais montadas até hoje, a força de denúncia de Nekrassov (1955) e Sequestrados de Altona (1959) continua intacta: no caso da primeira, a da mistificação da informação e do aliciamento; no caso da segunda, a do fim e dos meios em períodos violentos da história.
Há também, é claro, seus textos políticos. Pois é aí que está o problema: Sartre incomoda porque está “inserido”. Ele disse em Os tempos modernos (1945): “O escritor está inserido em sua época: toda palavra repercute. Todo silêncio também. Considero Flaubert e Goncourt responsáveis pela repressão que se seguiu à Comuna porque não escreveram uma linha para impedi-la. Não era da conta deles, dirão vocês. Mas o processo de Calas era da conta de Voltaire? A condenação de Dreyfus era da conta de Zola? A administração do Congo era da conta de Gide? Cada um desses autores, em uma circunstância particular de sua vida, levou em consideração sua responsabilidade de escritor”.5

Companheiro do Partido Comunista
A guerra estimularia o engajamento de Sartre. Mobilizado em setembro de 1939 e aprisionado em junho de 1940, foi transferido para um stalag (campo de prisioneiros) em Trèves. Ali conheceu a camaradagem, a fraternidade; escreveu e encenou uma peça de Natal, Bariona ou o Filho do Trovão. Libertado em março de 1941 fazendo-se passar por civil, Sartre voltou a Paris decidido a agir. Fundou com Maurice Merleau-Ponty o grupo efêmero “Socialismo e Liberdade”, imaginando organizar um movimento de resistência com a ajuda de André Gide e André Malraux, na zona livre. Sua peça As moscas fala em resistência na Paris ocupada. Em 1943-1944, colaborou nas Lettres Françaises, órgão do Comitê Nacional dos Escritores fundado na clandestinidade por Jacques Decour e Jean Paulhan.6 Mas isso foi tudo: Sartre não seria nem Georges Politzer nem Claude Bourdet. Antes da Segunda Guerra Mundial, o que impressiona é a ausência de qualquer horizonte político. Diga o que disser Simone de Beauvoir e malgrado a novela O muro, ele permaneceu distanciado do que acontecia na Espanha.7 Quando lemos sua correspondência com Simone, o “Castor”, ficamos estupefatos ao notar a primeira menção política apenas em julho de 1938, dois meses antes de Munique. Além disso, os dois não sabiam muita coisa da Frente Popular. Esse distanciamento político no entreguerras o levou durante a vida inteira a caminhar lado a lado com o fantasma de Nizan, seu amigo de juventude que, ele sim, se engajara totalmente desde o fim dos anos 1920.
Sartre entrou em fevereiro de 1948 para o comitê diretor do Rassemblement Démocratique Révolutionnaire (RDR) [União Democrática Revolucionária], cujo projeto havia sido elaborado anteriormente por jornalistas e intelectuais de esquerda e extrema esquerda, entre os quais David Rousset. O RDR morreu com a saída de Sartre (outubro de 1949); e esse foi seu único engajamento em um partido político. De meados de 1952 ao fim de 1956, ele flertou com o Partido Comunista Francês (PCF), amplamente motivado pela repressão policial e judicial de que este era então objeto, mas que se insurgira violentamente contra ele até então. Com efeito, o presidente da União dos Escritores Soviéticos o havia chamado em 1948 de “hiena datilógrafa”. Sartre rompeu com o partido em novembro de 1956, quando a URSS esmagou o motim húngaro. Como seria sempre o caso, seu ímpeto jornalístico se impregnou da temática e do léxico dos companheiros que escolheu. São assim os textos publicados no France-U.R.S.S. em 1955, que não devem nada à fraseologia dos comunistas ortodoxos. Não obstante, os artigos sartrianos desse período oferecem uma reflexão sempre atual sobre a mistificação dos dirigentes e da imprensa: “Todos os nossos leitores sabem que consideramos nefasta a política do governo e que desprezamos os homens que a inspiram; mas nossa tarefa consiste em demonstrar isso sem descanso. Somente demonstrando é que podemos esperar servir. Insistiremos: se é proibido chamar Bidault de criminoso, nós o chamaremos de grande culpado; se nos recusarem o direito de falar sobre o sangue que ele tem nas mãos, falaremos das escamas que ele tem nos olhos. Mera questão de terminologia”.8
Os últimos meses de flerte com o PCF coincidiram com a luta de Sartre contra a Guerra da Argélia. Essa foi sua grande batalha.9 E aqui está o que alguns nunca perdoarão: seu anticolonialismo visceral, a insistência de seu discurso em colocar os franceses face a face com suas responsabilidades históricas, intelectuais e morais. “Falsa candura, fuga, má-fé, solidão, mutismo, cumplicidade recusada e por fim aceita, eis o que chamávamos, em 1945, de responsabilidade coletiva. Na época não aceitávamos que a população alemã fingisse ter ignorado os campos de concentração. ‘Ora, vamos’, dizíamos. ‘Eles sabiam de tudo!’ Tínhamos razão, eles sabiam de tudo, e somente hoje podemos entender isso, pois nós também sabíamos. […] Ousaremos ainda condená-los? Ousaremos ainda nos absolver?”10
Alguns, frequentemente os mesmos, não aceitam também sua amizade com o psiquiatra e ensaísta martinicano Frantz Fanon, então quase no ostracismo, e do qual prefaciou Os condenados da terra (1961), ensaio que serviu de farol para o terceiro-mundismo. No prefácio, ele vilipendia a mentira de uma nação orgulhosa que é apenas a sombra de si mesma: “Quanta conversa fiada! Liberdade, igualdade, fraternidade, amor, honra, pátria, que sei eu? Isso não nos impediu ao mesmo tempo de proferir discursos racistas: negro sujo, judeu sujo, rato sujo”.11
O radicalismo da subversão de Sartre se medeia à luz do ódio que inspirava aos donos de lojas literárias e jornalísticas. Ninguém se insurgiu assim nem sequer contra Céline, salvo por certa crítica que admirava seu estilo. Pois, se não era antissemita, Sartre cometeu o grande erro de confraternizar com aqueles que se revoltavam contra o opressor francês. As calúnias se multiplicavam. Um desses valentões de salão não temeu o ridículo ao acusar Sartre de “tentativa de assassinato contra Camus”. Tudo isso, bem entendido, tendo por pano de fundo a Guerra da Argélia e o elogio de Camus como “o filósofo que nunca se enganou”.12 Em nome da complexidade da situação pessoal, justificava-se a posição equivocada do autor de O estrangeiro perante os desafios do momento histórico. Desdenhava-se o combate corajoso… e perigoso. A casa de Sartre foi alvo de um atentado com explosivo plástico cometido pela extrema direita – em nome do direito dos povos de disporem de si mesmos. As mídias não deixaram de zombar de Sartre discursando em Billancourt sobre um tonel, na época de sua camaradagem, em 1970, com os maoistas da esquerda proletária.
Há alguns meses, no Figaro, Jacques Julliard, membro da Academia Francesa e encarnação perfeita do intelectual oficial, institucional e consensual, emitiu seu veredicto sobre Sartre: “Mau romancista, dramaturgo tedioso, filósofo prolixo, mas sem originalidade, eis aí um amante da liberdade que sempre adulou todas as ditaduras, uma grande alma que justificou todos os massacres desde que fossem inspirados pelo socialismo […]. É um impostor de boa-fé que reservou sua severidade, e às vezes seu ódio, aos regimes liberais e que viu na ostentação da má consciência do escritor um álibi para sua tranquilidade intelectual. Até hoje, foi só nessa área que ele aliciou discípulos”.13 Mas, com os diabos, por que tanta dimensão humana?

Foto: Domínio Público
Para empreender “uma defesa política de Sartre”14, o melhor é considerar sua obra “inserida”, avaliar nela tanto os erros, os exageros e as fraquezas quanto o brio, a pertinência e a atualidade. Atualidade? Se esse modelo do intelectual engajado saiu de moda, não há motivo nenhum para regozijo. Em 1983, três anos após a morte de Sartre, Pierre Bourdieu explicou que “as condições conjunturais, mas também estruturais, que […] tornavam possível [o intelectual por excelência] estão hoje desaparecendo: as pressões da burocracia de Estado e as seduções tanto da imprensa quanto do mercado de bens culturais, unidos para reduzir a autonomia do campo intelectual e de suas instituições próprias de reprodução e consagração, ameaçam o que havia, sem dúvida, de mais raro e mais precioso no modelo sartriano do intelectual e que mais contrariava de fato as disposições ‘burguesas’: a recusa dos poderes e privilégios mundanos (o Prêmio Nobel, por exemplo) e a afirmação do poder e do privilégio propriamente intelectuais de dizer ‘não’ a todos os poderes temporais”15.
A recusa de Sartre a que assistimos é o inverso da lógica da homenagem. Má consciência dos intelectuais televisivos ou apadrinhados, ele nos lembra (e a eles) que um intelectual se torna digno desse nome por seu pensamento, sua atuação, sua obra, sua determinação, nunca por suas aparições nas mídias ou por seus amigos poderosos. Aos praticantes do pensamento pronto, sempre a repetir que os tempos mudaram, que as lutas e as reivindicações só são admissíveis dentro de limites estreitos, pode-se replicar que nenhuma mudança pelo bem comum ocorreu quando se sussurrou “sim”, mas quando se bradou “não”. No início da luta há sempre a recusa. Os intelectuais e jornalistas que rejeitaram Sartre sabem disso muito bem, embora seus discursos digam o contrário. Deformar e cobrir de opróbrio a palavra sartriana é sufocar a liberdade de nos opormos à pressão das convenções e dos poderes. É induzir-nos a crer que todas as palavras se equivalem e contribuir para degradá-las num momento em que a responsabilidade do intelectual consiste às vezes em recorrer, conforme dizia o próprio Sartre, a “revólveres carregados”.

*Anne Mathieu é mestre de conferência em Literatura e Jornalismo da Universidade de Lorraine, França, e diretora da revista Aden.

(Texto publicado originalmente no site do Le Monde Diplomatique Brasil)

1 Pierre Bourdieu, “Sartre, l’invention de l’intellectuel total” [Sartre, a invenção do intelectual total], Libération, 31 mar. 1983; reeditado em Agone, n.26-27, 2002.
2 Cf. Dossier Sartre, Europe, Paris, out. 2013.
3 Cf. Claude Imbert, “Sartre, la passion de l’erreur” [Sartre, a paixão do erro], Le Point, 14 jan. 2000.
4 Guy Hocquenghem, Lettre ouverte à ceux qui sont passés du col Mao au Rotary [Carta aberta àqueles que não usaram colarinho Mao no Rotary] (1986), Agone, Marselha, 2003.
5 Jean-Paul Sartre, “Présentation des Temps Modernes” [Apresentação de Os tempos modernos], Les Temps Modernes, 1º out. 1945 (reeditado em Situations II, Gallimard, Paris, 1948).
6 Cf. Michel Contat e Michel Rybalka, Les Écrits de Sartre [Os escritos de Sartre], Gallimard, 1970; cf. também Annie Cohen-Solal, Sartre, Gallimard, 1985.
7 Cf. Anne Mathieu, “Jean-Paul Sartre et l’Espagne: du ‘Mur’ à la préface au Procès de Burgos” [Jean-Paul Sartre e a Espanha: de O muro ao prefácio do Processo de Burgos], Roman 20-50, jun. 2007.

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