Tarso de Melo
Entrega de cestas básicas em São Sebastião, DF (Foto: Acacio Pinheiro/Agência Brasília)
Se a jornada de trabalho é a medida da troca entre capital e trabalho, o salário era o preço das horas compradas ao trabalhador, mas, historicamente, no desenvolvimento da legislação social, foi sendo cercado de proteção especial, para ficar menos sujeito às vontades do patrão e aos ventos do negócio. Assim como se conquistou, a duras lutas, a limitação da jornada, intervalos, descansos semanais, a proteção do trabalhador incorporou várias medidas relativas à remuneração, como salário mínimo nacional, piso salarial por categoria, equiparação salarial por cargo e função, multas para atraso, irredutibilidade, impenhorabilidade etc.
Já vem de alguns anos a pressão para vulnerabilizar o salário, permitindo que se torne tão precário quanto têm-se tornado outros aspectos do contrato de trabalho, mas, neste momento de crise aguda, a sanha para avançar sobre os salários tem sido persistente e, em grande medida, vencedora.
Quando o governo falou em auxílio de R$ 200 para trabalhadores informais, a primeira e triste constatação que me veio à mente é de que essa proposta escancarava que essa figura do “empreendedor”, do “patrão de si mesmo”, era alguém para quem o salário mínimo não valia. Num gesto apenas, cuja natureza não se altera quando o valor passa para R$ 600, nossos governantes reconheceram que, para o trabalhador informal e/ou “empreendedor”, todo mês começa do zero. Ou pior: abaixo do zero. E, se chegar aos patamares dos assalariados, dos trabalhadores “com carteira assinada”, é por sorte ou “meritocracia”. É a situação de dezenas de milhões de brasileiros: luta diária por sobrevivência, ganhar de dia o que comer à noite, e isso explica, em parte, o apoio de grande parte da população ao relaxamento da quarentena.
De outro lado, noutro gesto ainda mais violento, o governo acenou até mesmo com a suspensão do contrato de trabalho sem salários, mas teve que voltar atrás. Pegou mal, digamos. Mas, depois de muitas idas e vindas, conseguiu passar a atual MP 936, que autoriza a redução em até 70% dos salários, com compensação proporcional pelo seguro-desemprego. Na prática, os trabalhadores formais vão receber, no período, um pouco mais da metade dos seus rendimentos mensais.
É cada vez mais comum ouvir pessoas próximas dizendo que terão cortes de salários, mesmo em empresas que não passam por qualquer tipo de crise, empresas que ganham muito dinheiro há muitas gerações e continuam tendo seus contratos mantidos neste momento. Ou seja, soma-se à crise (geral) um oportunismo (específico) para reduzir salários que já vinham sendo achatados há bastante tempo.
Tenho certeza de que muitas empresas passam por grandes dificuldades neste momento, mas, a meu ver, demissões e cortes de salários deveriam ser colocados como a última fronteira, obrigando nossos criativos economistas a encontrarem soluções que salvassem as empresas e os empregos, sem sacrificar nenhum centavo destes.
Como já escrevi noutra oportunidade, essa redução dos salários formais é ainda mais terrível num momento em que o salário é apenas uma parte da renda de grande parte das famílias, ou seja, a parte que poderia dar alguma sustentação enquanto a renda informal mingua. É algo muito grave a ser enfrentado neste momento (mas sei que é quase impossível enfrentar, seja na esfera pessoal ou politicamente), mas muito grave também como horizonte para os trabalhadores assalariados e para o papel que o salário representa nas famílias e na sociedade como um todo.
Penso mesmo que um dos piores filhotes que essa pandemia pode deixar aqui, para o mundo do trabalho, é a naturalização de cortes e reduções de salário – algo com que o capital sempre sonhou e agora tem boas chances de implantar e perpetuar.
Tem horas em que achamos que todas as instituições detestam Bolsonaro, mas é importante notar como, na maior parte do seu projeto de destruição de direitos sociais (encabeçado pelo ministro Paulo Guedes), as instituições – o Congresso e o STF, notadamente – continuam aliadas do bolsonarismo. Portanto, não basta Bolsonaro cair, com a ameaça que ele representa à democracia, mas tem que ser varrido junto com todos os ataques à justiça social que seu governo realiza e outros tantos para os quais um governo ocupado com tantas crises internas é conveniente. Se ele cair e essas medidas ficarem, teremos uma democracia formal igualmente capenga, em que se pode até ter voz, mas ninguém grita. Porque a barriga está vazia.
Tarso de Melo (1976) é escritor e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP. Autor de Rastros (martelo, 2019), entre outros livros.
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
Nenhum comentário:
Postar um comentário