Biografia narra a ascensão de Mussolini, morto há 75 anos, a líder do fascismo e faz refletir sobre a ameaça presente da tirania
Manuel da Costa Pinto
01abr2020 01h12
Benito Mussolini, 40º primeiro-ministro da Itália, em 1922 Topical Press Agency/Wikimedia Commons
Scurati, Antonio
M, o filho do século
TRAD. Marcello Lino
Intrínseca •
816 pp •
R$ 79,90
TRAD. Marcello Lino
Intrínseca •
816 pp •
R$ 79,90
Em 1981, o ensaísta e crítico literário George Steiner — que morreu em fevereiro deste ano — publicou o romance The portage to San Cristobal of A.H. (“O
transporte para San Cristobal de A.H.”). As iniciais do título
correspondem a Adolf Hitler — que teria sobrevivido à Segunda Guerra e,
localizado na América do Sul por caçadores de nazistas, é perseguido e
capturado na selva amazônica, sendo julgado ali mesmo devido a seu
estado de saúde precário. O romance causou furor e protestos, redobrados
quando, no ano seguinte, uma adaptação teatral deu corpo e voz ao Führer.
Há inúmeras obras ficcionais que encenam a vida de Hitler, na
literatura e no cinema. Mas a narrativa de Steiner, além de inserir
Hitler no mainstream artístico-intelectual, desafiava o
mandamento formulado por Emil Fackenheim, conhecido como “teólogo do
Holocausto”, de “não conceder a Hitler nenhuma vitória póstuma”, uma vez
que o livro de Steiner termina dando a última palavra ao ditador, no
discurso em que se defende diante do tribunal.
Agora, outro romance traz no título a inicial de um ditador sobre o qual pesam interditos éticos semelhantes: M, o filho do século,
de Antonio Scurati. O “M”, como fica claro de saída, refere-se a Benito
Mussolini, o líder fascista que ascendeu ao poder em 1922, aliou-se a
Hitler, levou a Itália à Segunda Guerra Mundial e, melancolicamente
destituído em 1943, ficou acuado na República de Salò (Estado fantoche
sob proteção nazista) até ser morto por membros da resistência em 28 de
abril de 1945. Vencedor do prêmio Strega de 2019 com o romance, Scurati
declarou, em entrevistas, que só foi possível escrever essa narrativa
por causa da queda de um tabu sobre o qual se fundou a República
italiana. Durante quase setenta anos, diz o escritor, qualquer discussão
ou ação política teria como premissa uma tomada de posição
antifascista.
Organizações inspiradas na extrema direita de
Mussolini nunca deixaram de existir, mesmo no imediato pós-guerra. E
vários partidos, a partir dos anos 1980 e 90, retomaram seus valores
sob a máscara do nacionalismo e de uma xenofobia “legitimadas” pela
globalização e por um sistema político que, em vários momentos, usou o
escudo do antifascismo como salvo-conduto para a corrupção.
Cinismo despudorado
Tudo isso é arquiconhecido e está na gênese de
partidos separatistas como a Liga Norte. O tabu a que se refere Scurati
diz respeito menos a questões políticas e institucionais do que a um
clima de cinismo despudorado. Um clima que hoje permite a Matteo Salvini
— político da Liga que alcançou o papel mais relevante no Executivo
entre 2018 e 2019 — fazer pronunciamentos em que parafraseia Mussolini.
Ou que o movimento estudantil seja dominado por extremistas de direita,
tendo como referência a CasaPound — agremiação social que se apropria de
métodos de esquerda e do éthos anarquista: nasceu com a ocupação ilegal de um imóvel em 2003, tem como presidente o líder da ZetaZeroAlfa, uma banda de rac (Rock against communism,
ou “Rock contra o comunismo”), e hoje se espalha por mais de cem sedes
com paredes cobertas por lemas e imagens do Duce (além, obviamente, de
portar um nome em homenagem a Ezra Pound, poeta norte-americano que
viveu no país e foi entusiasta do fascismo). Enfim, se no século passado
era tolerável se declarar nostálgico do fascismo, só na Itália deste
milênio é possível cultuar Mussolini em praça pública e escarnecer dos
antifascistas.
Só na Itália deste milênio é possível cultuar Mussolini em praça pública e escarnecer dos antifascistas
Paradoxalmente, foi esse ambiente que rima neofascismo com cultura pop, a calva de Mussolini com skinheads, que propiciou o surgimento de um livro claramente antifascista como M, o filho do século.
A nota introdutória diz: “Fatos e personagens deste romance documental
não são fruto da imaginação do autor. Cada acontecimento, personagem,
diálogo ou discurso aqui narrado é, ao contrário, historicamente
documentado e/ou fidedignamente testemunhado por mais de uma fonte”. Ao
longo de mais de oitocentas páginas, temos uma sucessão de
momentos-chave da história da Itália sob Mussolini descritos por um
narrador que, a cada capítulo, se coloca do ponto de vista de uma
personagem, com indicação de data e localidade do episódio. Importante: o
volume começa em março de 1919, com a fundação dos Fasci di
Combattimento (grupos paramilitares que estão na origem do movimento
fascista), e termina em janeiro de 1925, com um discurso de Mussolini
como primeiro-ministro para o plenário do Montecitório (sede da Câmara
dos Deputados). Os períodos sucessivos serão abordados em outros dois
volumes já anunciados pela editora italiana Bompiani.
A imensa maioria dos capítulos, como era de se
esperar, é narrada do ponto de vista de Mussolini. Vários outros partem
da perspectiva de asseclas de expressão local ou de personagens
célebres, como o socialista Giacomo Matteotti e o poeta decadentista
Gabriele D’Annunzio — que, antes mesmo da ascensão do Duce, chegou a
liderar um delirante governo de feição fascista em Fiume (atual Rijeka),
cidade da Croácia então reivindicada pela Itália. E, reforçando o
caráter de “romance documental” de M, o filho do século,
Scurati insere, entre cada capítulo, a transcrição de trechos de
notícias de jornal, manifestos partidários, discursos e cartas.
O narrador de Scurati se coloca em cena com cada
personagem, mas nunca em seu lugar. E adota o presente do indicativo
como tempo verbal dominante — procedimento semelhante, por exemplo, ao
usado por Emmanuel Carrère em Limonov (livro que, aliás,
acompanha a trajetória de um ativista russo com muitas afinidades com o
“fascismo eterno” de que fala o célebre ensaio de Umberto Eco). Com
isso, a escrita ganha um sentido de imediatez teatral ou
cinematográfica.
Romances narrados retrospectivamente, nos quais
predominam verbos no pretérito, em geral conduzem o enredo para um fim
que nós, leitores, ignoramos, mas que o narrador parece dominar desde o
início. Aqui, a situação se inverte: todos, inclusive o autor, já sabem
onde a história vai dar, mas o narrador, imerso no tempo presentificado,
abdicando da plausível onisciência, se limita ao puro acontecimento,
dramaticamente encerrado em si mesmo.
Esse procedimento formal, mais do que simples opção
estilística, dá espessura linguística à incerteza permanente que
caracteriza o nascimento do fascismo e realça os momentos em que o
movimento parece liquidado, mas consegue se reerguer, no momento
seguinte, de modo tão inacreditável para seus protagonistas quanto para
os leitores. Dito isso, existe uma tese que atravessa a encenada falta
de onisciência do narrador: para Scurati, o fascismo nasce da aliança
entre a vontade de potência de Mussolini e as pulsões de morte de uma
legião mítica de ex-combatentes da Primeira Guerra Mundial, os Arditi,
que durante o conflito puseram seu apetite pela violência a serviço do
Exército italiano — mas que, ao fim da guerra, voltaram a ser o que
sempre foram: delinquentes e assassinos.
É o caso de Ferruccio Vecchi: “A seu respeito,
circulam relatos inverossímeis e extraordinários: ferido mais de vinte
vezes, diz-se que tomou de assalto sozinho, lançando granadas, uma
trincheira austríaca, e trepou com a mulher do coronel enquanto ela
dormia ao lado do marido”. Ou de Albino Volpi, um dos “jacarés do Piave”
especializados em atravessar esse rio a nado para apunhalar sentinelas
na outra margem; mais tarde, ele seria responsável por jogar uma granada
sobre a multidão que comemorava o triunfo socialista após o fiasco na
primeira eleição disputada pelos fascistas, em 1919 (quando nomes
ilustres como o poeta futurista Marinetti e o maestro Toscanini foram
candidatos da extrema direita). Ou ainda Domenico Ghetti: “Anarquista,
exilado na Suíça com Mussolini durante a juventude, assassinou padres, é
desonesto, violento, conspirador, desvalido”.
Em um dos mais sinistros capítulos do romance, esses Arditi estão reunidos numa trattoria
com o futuro Duce, que tem de conter os impulsos homicidas de seus
recrutados quando, na sala ao lado, um grupo de trabalhadores do jornal
socialista Avanti! entoa o hino Bandiera rossa trionferà! (“A bandeira vermelha triunfará”) e chama Mussolini de traidor.
Ex-diretor do Avanti!, Mussolini fora expulso justamente por discordar da postura pacifista dos socialistas na Primeira Guerra Mundial e fundara o Il Popolo d’Italia,
periódico no qual, além de se mostrar “apóstolo sincero e apaixonado
pela intervenção bélica” (segundo relatório policial transcrito por
Scurati), conclama a “multidão de desajustados” dos Arditi, que vagam
pelas ruas como “minas errantes”, para formar os Fasci di Combattimento.
Mas as milícias fascistas só terão seu triunfo em
1922, quando, após incontáveis episódios de vandalismo e durante uma
crise na formação do gabinete de governo no sempre tumultuado sistema
político italiano, acontece a “marcha sobre Roma”. É o momento que
sintetiza o livro. Mussolini, com sua tática de “dosar, diluir, dilatar
e, por fim, negociar em uma posição de força”, prega em público uma
solução parlamentar para o impasse. Em surdina, porém, insufla o ímpeto
golpista dos Fasci di Combattimento, que haviam se transformado nas
temidas esquadras de camisas negras, disseminando o terror. Na iminência
da chegada dos socialistas ao poder por via institucional, eles
precipitam, em 27 de outubro de 1922, uma mobilização que, partindo de
Florença e Cremona, arrasta milicianos de outras cidades e atinge Roma
no dia seguinte.
Enquanto isso, Mussolini estava no teatro Manzoni, de Milão, assistindo ao drama O Cisne,
de Ferenc Molnár, com a amante Margherita Sarfatti — sofisticada
crítica de arte, judia da alta burguesia casada com um advogado
socialista, única mulher com quem Mussolini não manteve as tantas
relações sexualmente predatórias e misóginas descritas no livro. É só
quando a marcha sobre Roma se torna um putsch irreversível que
ele parte para a capital, onde o rei Vittorio Emanuele 3º, acuado pelos
camisas negras, lhe entrega o cargo de primeiro-ministro.
Mas ainda não é a ditadura. Em seu primeiro
pronunciamento diante da Câmara dos Deputados, em novembro de 1922,
Mussolini faz o célebre discorso del bivacco (“discurso do
acampamento”) diante de parlamentares apavorados: “Eu poderia ter obtido
uma vitória acachapante. Impus limites a mim mesmo. […] Com trezentos
mil jovens impecavelmente armados, prontos para tudo e esperando quase
misticamente uma ordem minha, eu poderia castigar todos aqueles que
difamaram e tentaram jogar o fascismo na lama. Eu poderia fazer deste
plenário surdo e cinza um acampamento exíguo” — e aqui, infelizmente, a
ótima tradução de Marcello Lino põe a perder a força metafórica do
original, pois Mussolini ameaça fazer do plenário um “acampamento de
legionários” (bivacco di manipoli).
Chefe do crime
A ocasião não tardará. Em 1924, em represália a
acusações de corrupção e fraude eleitoral feitas pelo deputado
socialista Giacomo Matteotti, sicários fascistas o sequestram e
assassinam com conhecimento do primeiro-ministro. Em vez de assinalar o
fim do regime, a reação ao famigerado “Delitto Matteotti” leva o Duce a
desafiar o Parlamento a processá-lo: “Se o fascismo foi uma organização
criminosa, eu sou o chefe dessa associação criminosa!”. Ninguém ousa
levantar a voz. Estava aberto o caminho para a ditadura plena, que
certamente será tema do próximo volume de Scurati.
Nesse primeiro volume da trilogia, o ex-socialista
Mussolini funda o fascismo menos como um projeto ideológico distinto e
inovador do que como pura e simples ideologia do poder: ele mesmo se
proclama “o homem do depois”, que reina sobre o caos que fomentou,
mobilizando primeiramente os instintos degenerados de criminosos de
guerra e, em seguida, a insatisfação de italianos “enjoados de si
mesmos”, fartos de “verem seus defeitos representados no Parlamento”.
Para leitores brasileiros, é inevitável pensar na
semelhança com o que acontece hoje. De um lado, o populista que afirma
que os fascistas são um “antipartido” que faz “antipolítica” para salvar
a Itália do bolchevismo, mas negocia astuciosamente nos bastidores
enquanto mantém à espreita uma guarda pretoriana pronta para transformar
o Parlamento numa caserna. De outro, o capitão e deputado do baixo
clero que, em meio à salvaguarda para milicianos e um clã que ameaça
enviar um soldado e um cabo para fechar a Suprema Corte, se apresenta
como o messias antissistema que salvará o Brasil do comunismo.
Para leitores brasileiros, é inevitável pensar na semelhança com o que acontece hoje
Mussolini, entretanto, é uma personagem arquetípica —
tanto pela envergadura intelectual (inexistente em sua contrafação)
quanto pela capacidade de produzir o mal. Nesse sentido, só é mesmo
comparável a Hitler. Scurati correu o risco de incorrer na mesma
infração ética apontada por intérpretes do Holocausto e do ditador
alemão: inserir Mussolini na ordem natural das coisas, produzir alguma
forma de empatia pela compreensão do caráter patológico de sua obsessão
pelo poder. Mas sua minuciosa reconstituição de cada gesto do ditador
italiano, de cada brutalidade ou traição cometidas contra adversários,
aliados e mulheres pode ter outra conotação.
O teólogo Emil Fackenheim, citado no início deste
texto, dizia haver uma “desconexão radical entre a natureza humana e a
natureza de Hitler”. Com isso, talvez tenha nos obrigado,
involuntariamente, a colocar genocidas como Hitler e Mussolini não numa
espécie de santuário maligno, apartado do gênero humano, mas como núcleo
obscuro de nossa natureza. É, aliás, o que propôs o próprio Steiner em Linguagem e silêncio. E é o que faz Antonio Scurati nesse magnífico M, o filho do século.
(Publicado originalmente no site da Quatro Cinco Um, a revista dos livros)
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