No belíssimo filme “Rapsódia de Agosto”, onde os
sobreviventes da bomba (americana) jogada em Hiroshima e Nagasaki, no final da
segunda grande guerra mundial, cultuam seus antepassados mortos e desaparecidos
na hecatombe nuclear e marcam o encontro
com eles, num momento vindouro, é um traço forte da cultura nipônica de
louvar a ancestralidade, como fonte de respeito e admiração. Sentimento claro
presente no marcante filme “A balada de Naraiama”, onde o
sacrifício para salvar a comunidade recai voluntariamente nos mais velhos. Este tributo aos mais velhos
é uma característica das culturas orientais e contrasta vivamente com o culto
ao novo e a novidade das sociedades ocidentais, onde os idosos são concebidos
como fardos insuportáveis a serem custeados
pela Previdência Social.
Estas observações
vêm a propósito dessa fúria assassina contra os mais velhos, no atual governo
do Brasil, que, aliás, se arrogou no direito de decidir soberanamente que deve
viver e quem morrer, em consequência da pandemia do Coronavírus 19. O direito à
senectude é fruto do amadurecimento da consciência social da humanidade.
Resulta da criação de um micro código
chamado “Estatuto do idoso”, não é favor, privilégio, esmola ou outorga de
nenhum governante. Significa um aumento do patamar da dignidade humana, num
país como o nosso. As mudanças drásticas no financiamento da saúde, da
assistência social e da previdência pública, iniciadas no governo Temer (com a
aprovação da malfadada PEC da morte) expressaram claramente um retrocesso ou
uma triste mudança de prioridade da administração pública no Brasil. Os cortes
no orçamento da seguridade social se refletem de imediato na qualidade de vida
(ou sobrevida) da população mais idosa, ou que necessita de cuidados especiais.
De uma época de grande avanço nas políticas de ação afirmativa, destinadas a
amparar coletivos vulneráveis, passamos rapidamente a uma política darwinista
da “sobrevivência dos mais aptos”, através de uma seleção que não tem nada de
natural, mas de política e social.
O objetivo da
atual política econômica é claramente
sacrificar a vida dos mais frágeis e dependentes – em meio a uma grande crise
sanitária e social- em favor dos
interesses da banca, do mercado, das empresas, dos patrões. É como se a
pandemia do Coronavírus 19 viesse sabotar o plano adredemente preparado de
destruir as conquistas sociais da Constituição de 1988, em benéfico do capital
e da especulação financeira internacional. Depois da reforma trabalhista e da
reforma da previdência pública, parecia que o atual governo ia mesmo entregar
aos seus patrocinadores a mercadoria que
vendeu, na campanha eleitoral: a desregulamentação completa da economia
brasileira. Mas foi atropelado pela pandemia mundial, provocando um crescimento
negativo de 5% do PIB, um exército de 14 milhões de desempregados, um rombo
fiscal nas contas públicas que vai além do 125 bilhões de reais. Grande
frustração para o gerente do capitalismo internacional. O que fazer para
cumprir as promessas de campanha!
É com o sangue
da população mais velha e dos setores mais frágeis da população brasileira que
o governo que pagar a conta. Aquilo que já foi chamado de “população
excedente”, sem fins ou utilidade econômica. Peso morto no orçamento público da
nação. Gente que já não tem mais lugar no mundo (econômico, do capitalismo).
Para os gestores da economia, ela deve ser eliminada. E nada como os efeitos
mórbidos e letais de uma pandemia para realizar essa tarefa. É só corta o
investimento no combate ao vírus, reduzir o gasto com leitos hospitalares,
pessoal da área da saúde, e instar os idosos a irem para rua. Curioso o interesse
do Ministério da Defesa pelo número de covas disponíveis nos cemitérios
públicos. Fazem a complementação da visão dos evangélicos de que a praga ocorre
por um desígnio divino. Se as orações não evitarem as mortes, cuidemos de
enterrar as vítimas em covas rasas, ou valas comuns. Se fosse à Índia,
cremavam-se os cadáveres e se jogava as cinzas no rio Ganges. Aqui, acumulam-se corpos nos hospitais ou
se guardam em contêineres refrigerados.
Uns cuidam da alma pecaminosa dos condenados. Outros, dos corpos putrefatos.
Uma combinação macabra e tanto.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE
Nenhum comentário:
Postar um comentário