pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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sábado, 3 de março de 2018

Le Monde: A intervenção civil-militar e o cerco à democracia

Sem alarmes e com expressivo protagonismo civil, as Forças Armadas assumem o governo da segurança pública do Rio de Janeiro enquanto avança a militarização da política brasileira
A quarta-feira de cinzas para a democracia foi de chumbo. Voltamos do Carnaval com uma intervenção federal no comando da segurança pública do Rio de Janeiro. Entregue ao General do Comando Militar do Leste, Walter Souza Braga Netto, as Forças Armadas assumem, de forma temporária, a segurança interna do estado com poder de governo. Basta um sopro de história recentíssima para dissipar a surpresa da medida. Desde 2010, rajadas de fumaça anunciam o fogo da exceção se alastrando pelos bosques de nossa frágil democracia. Agora, chegamos naquele momento histórico divisor de águas. Para onde vamos?
Seria prudente, ao menos, reconhecer que o poder político se debandou, a passos claros, para uma “democradura”[1] de novo tipo. Na história republicana, constam 66 intervenções federais em estados e municípios, segundo pesquisa legislativa na presidência da República. Em 88% elas ocorreram em ditaduras. Nas demais, os 12% de intervenção em democracias teve justificativa de natureza política-eleitoral, ocorrida nos governos Epitácio Pessoa/1920 (1), Arthur Bernardes/1923 (1), Juscelino Kubistchek/1957 (1); e de natureza setorial, nos governos Jânio/1961 (2) e Jango/1963 (2). Contudo, o decreto de 2018 é o único com natureza militar e exclusivamente para assumir o governo da segurança interna de uma das unidades da federação.[2]
Portanto, de dez intervenções federais, nove emergiram de ditaduras. Se podemos dizer que historicamente a intervenção federal é uma medida de governo autoritário, é bom saber que a grande maioria foi decretada por nossa última ditadura de segurança nacional, sob o comando das Forças Armadas. Note-se a história que vivemos: governo federal da segurança interna de um estado significa tomar a responsabilidade de aplicação, preventiva e ostensiva, do código penal e das contravenções penais. Engana-se quem está pensando no tráfico de drogas. A vida cotidiana das brasileiras e brasileiros – por enquanto, aqueles do Rio – está nas mãos das Forças Armadas. Essa é nossa nova ordem social, Caetano.
Há, no mínimo, dois furações de violência muito próximos. Primeiro, é institucional. As Forças Armadas negam que tenham governado o país por duas décadas à base de graves violações de direitos humanos. Negaram acesso de informações históricas à Comissão Nacional da Verdade, chamaram de “revanchismo” a prestação de contas, mantêm imunidade judicial civil e, na verdade, se orgulham de seus governos militares, a começar pela fundação da República. A outra é que a decisão política de coerção social será tomada por uma elite, conforme sua interpretação excepcional das leis e da vontade popular. Como pensam? Quais serão os próximos capítulos?
Rio de Janeiro – Militares seguem operando na favela da Rocinha para combater confrontos entre facções de traficantes de drogas (Fernando Frazão/Agência Brasil)

Uma intervenção civil militar de segurança nacional?
Da parte dos militares, há o papel estratégico do General do Exército Sérgio Etchegoyen. Depois da deposição de 2016, assumiu o comando da segurança institucional da presidência. Formando pela Escola Superior de Guerra em 1974, um ano antes da ESG consolidar a doutrina de segurança nacional, é um membro do alto escalão político dos militares que conhece muito bem a ideologia da ditadura.[3] E não parece ter se divorciado dela após a redemocratização.
A público, foi defender a honra familiar contra as conclusões da Comissão Nacional da Verdade. Curiosamente, seu pai, Leo Guedes Etchegoyen, também assumiu a segurança civil de unidade da federação (Rio Grande do Sul) após o golpe de 1964. Na prática, sendo responsável, conforme a CNV, “pela gestão de estruturas” onde ocorreram graves violações de direitos humanos. Chegou a receber Daniel Anthony Mitrione, notório especialista estadunidense em métodos de tortura contra presos políticos, para ministrar curso à Guarda Civil do Estado. Seu tio, Cyro Guedes Etchegoyen, foi chefe de contra informações do Comando de Inteligência do Exército e, segundo a CNV, comandou a “casa da morte” de Petrópolis (RJ). Antes, na ditadura de Vargas, o avô de Sérgio Etchegoyen, Alcido Etchegoyen, também assumiu como chefe da política de uma unidade da federação (Distrito Federal).[4]
Afora os exemplos familiares sobre as práticas de uma interdição federal, a formação de Etchegoyen pela doutrina da ESG tem seus efeitos. Primeiro, é o método de planejamento estratégico, baseado em informações de inteligência, análise de conjuntura, elaboração de cenários e linhas de ação. Embora desconheçamos o teor dessas informações estratégicas, o fato é que, desde 2010, ocorrem as operações de Garantia da Lei e da Ordem, de caráter subsidiário ao comando institucional do governo civil. Somente em 2017, a Lei 13.491 alterou o código de processo penal para transferir a competência dos crimes cometidos por militares em ação, inclusive os dolosos contra a vida (execução sumária, por exemplo), para a justiça militar. Nessa lei, uma das três hipóteses seria “os crimes praticados no contexto de atividade de natureza militar”. Ato contínuo, o parágrafo único do art. 2º, do decreto 9.288/2018, é taxativo: o cargo de interventor é de natureza militar. Quer dizer, a intervenção de hoje assegurou autonomia militar para “prestar contas” a si mesmo sobre eventuais graves violações de direitos humanos. Há um claro planejamento.
Estejamos preparados para o pior. Avizinha-se nos presídios e nas periferias o cheiro de morte e “pinhosol”. Comunidades, há décadas sufocadas por uma ordem militarizada (tráfico, milícia e polícia), serão jogadas de vez no teatro de operações. Sem falar nos jovens soldados, em sua maioria negros. “Não importa”, “guerra é guerra”, mas com algumas diferenças. Como Sotelo Fellipe falou, nela opera a inversão de Clausewitz: da guerra como extensão da política para a política como extensão da guerra. Trata-se da guerra contemporânea, da estratégia militar indireta que aderiu à tradução de Carl Schmit para o antagonismo político: é preciso neutralizar e eliminar o inimigo.[5] Eis a guerra há tempos em curso, aprimorada com o chamado Lawfare (guerra jurídica) e as operações psicológicas, como muito bem descreveu o jornalista argentino Santiago Gómez. Não sendo suficiente, é hora de intensificar o método tradicional militar, com uso combinado.
Se fosse pouco drama, a intervenção federal corresponde a uma escala de gravidade no planejamento estratégico. Depois dela, vem o estado de defesa e o estado de sítio. E depois vem…? A intervenção em novos estados? A extensão da intervenção por quatro anos, tempo para um governo militar reestruturar a segurança pública? O adiamento das eleições, por questão de segurança nacional? O Rio é um laboratório de uma intervenção em todo o país? Em 1958 e 1959, a Escola Superior de Guerra instruía a elite civil-militar sobre um segundo tipo de “governo militar”, indireto, que assume temporariamente os “assuntos civis”. O estudo, inspirado na experiência de outros países, era enfático: sua aplicação no caso brasileiro deverá sofrer as imposições geográficas e culturais.[6] Dois anos depois, quase assumiram o governo. Com o golpe de 1964, a doutrina ganhou a prática como laboratório. E agora?

A viga mestra da sociedade  
Nenhum governo militar – da segurança, o que dirá das demais áreas – existe sem participação civil. Não por menos, presidente da República, governador do estado, presidente da Câmara, presidente do Senado, ministro da Justiça, ministro da Economia, ministro do Planejamento, todos eles civis, determinando a intervenção política, convocando os militares e lhes conferindo poderes de exceção. E o Congresso Nacional, fruto de eleição direta?
Quem acompanha o noticiário da Globo percebe sem maiores dificuldades uma cobertura de alarme, pânico, caos e deslegitimação do poder político local sobre a segurança pública. E de aprovação da intervenção. Após o decreto, a Globo defendeu a extensão do prazo da intervenção. E a Federação da Indústria (Firjan) fez anúncio em apoio. Apesar da instituição militar fazer parte do crime organizado, praticando os métodos da corrupção e do terrorismo de Estado, a sensação de desordem pública caminha para militarizar ainda mais. Por isso, não se trata de uma intervenção militar, mas de uma intervenção civil-militar.
Há muitos traços com a doutrina de segurança nacional. É imprescindível que a adesão civil confira legitimidade para a atuação militar. Uma intervenção dessas exige um significativo “poder psicossocial” nacional. Como disse o General Villas-Boas, não somente a carta branca dos “poderes constitucionais” (poder político nacional), mas a colaboração “das instituições e, eventualmente, da população” será fundamental. Todos os poderes nacionais passam a ser requisitados em fazer o necessário para o retorno da “ordem pública” que ameaça a segurança nacional.
 
Para onde vamos?
No caso da segurança pública, a intervenção civil-militar é a expressão da falência da “coexistência pacífica” do Estado nacional com a pressão interna e externa que representa o crime organizado. O método da corrupção e do terrorismo de Estado está em crise, colocando em risco o poder vital do Estado que é a ordem pública, quer dizer, o domínio dos conflitos de distribuição de riqueza e do poder político, seja ele por consenso forjado ou pelo uso sistemático da violência estatal.
Porém, o avanço dos militares na política pode ser visto como um desdobramento da politização do judiciário, quer dizer, uma nova fase do “freio de arrumação” de Ayres Britto (ex-ministro do STF): a militarização da política. Não há nada de novo na estratégia, “apenas” a intensificação de novos métodos. Depois do impedimento de Dilma Rousseff, opera uma intervenção política das elites nacionais na direção de uma “reorganização” da ordem de dominação social. Representação política, mercados estratégicos, direitos sociais, monopólio da violência e poder político do pacto federativo estão em franca cirurgia. Como ocorreu em 1964 e em toda a vida republicana do país, o pacto autoritário entre civis e militares está em marcha. E a fratura do pacto constitucional pós-ditadura, exposta.
Sendo otimista, pode ser que a militarização da política tenda a incluir na disputa de poder o campo militar. Estabelecer um diálogo programático com os militares que apresente uma forte resistência democrática para conter um natural desejo crescente de poder, alimentando o cenário de um governo militar. Há militares e oficiais democráticos, outros que divergem da leitura de conjuntura, nas análises e nas linhas de ação.
Mas o cenário é adverso, especialmente no seio civil. Há uma opinião pública forjada a favor da intervenção civil-militar, apoiada na “natureza humana” de ordem e progresso e pela teoria do “mal necessário”. Na politização do judiciário, algumas querelas constitucionais poderão opor constrangimento. Primeiro, a inconstitucionalidade formal pela ausência da consulta ao Conselho da República (art. 90, inciso I, CF/88). Segundo, pela natureza militar da intervenção, como bem apontou a jurista Eloísa Machado de Almeida (FGV/SP). Terceiro, sobre o real termo da extensão da suspensão de emendas constitucionais (reforma da Previdência), se da simples tramitação à promulgação. Quarto, do desvio de finalidade caso seja burlado por um decreto da GLO. E a própria jurisdição militar, que ainda segue sem expressa admissão constitucional. É hora de juízes e do judiciário recuar ou se abraçar na intervenção civil militar, por isso precisam receber o peso da resistência democrática.
Por fim, parece inescapável que todas as forças democráticas tenham uma alta dose de realismo para ler a conjuntura, enxergar palmos a mais além do cálculo eleitoral. É até comovente ver militantes acreditarem que Lula estará na urna e, caso barrado, conseguirá alavancar um sucessor. É melhor sermos (alguma vez) surpreendidos pela frágil institucionalidade do que reiteradamente decepcionados com ela. Com olhos de lince, Luiz Eduardo Soares apontou para uma “bolsonarização” sem Bolsonaro, num franco lançamento de um governo de direita conversadora com base na ordem (intervenção de natureza militar) e progresso (reformas e abertura de capitais). Teremos eleição, ela foi necessária até na última ditadura para a legitimação da intervenção civil-militar. Porém, há um risco alto de transcorrerem em tempo e forma distinta. É bom lembrar que a concepção de democracia dessa elite interventora admite a eleição indireta, por exemplo. Assim como mudanças no calendário eleitoral por essa via.
Neste modesto ver, a saída passa pelo incipiente ensaio da frente programática dos partidos de centro-esquerda (Psol, PSB, PDT, PT). Sem um plano de poder democrático a curto prazo, com acordo sobre a competição interna, que enfrente a franca intervenção civil-militar, seremos tragados pela história. Rua, urna e gabinetes somente serão conquistados, com poder de resistência real, se tivermos bandeiras democráticas e propostas pragmáticas para ganhar a sociedade, nossa trincheira. Antes tarde, do que mais tarde ainda, se já não for.

*Rodrigo Lentz é advogado, ex-coordenador da Comissão de Anistia e doutorando em ciência política da Universidade de Brasília com a tese “As relações de poder entre civis e militares no Brasil: o pensamento político da Escola Superior de Guerra pós-88”.
[1] Termo originalmente usado Guillermo O’Donnell e Philippe Schmitter.
[2] No caso do Rio de Janeiro, é a segunda intervenção em períodos democráticos, sendo a primeira decretada por Arthur Bernardes, em 1923, com interventor civil.
[3] BRASIL. ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA. Manual Básico. Ano 1975, Rio de Janeiro.
[4] Ver volume 1, p.861; p.868
[5] Ver o Manual Básico da ESG de 1975, p.279-294;
[6] Ver: BRASIL. ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA. Governo militar. 1958/1959, Rio de Janeiro.

(Publicado originalmente no site do Jornal Le Monde Diplomatique Brasil)

Linguagem é poder: sobre jogos sujos e democracia

                                           
Marcia Tiburi

Linguagem é poder: sobre jogos sujos e democracia
 
(Reprodução/Arte Revista CULT)

Linguagem é poder. Antes de serem puros e simples atos de comunicação, todos os atos da linguagem são atos de poder.
Em um sentido puramente conceitual, poder é uma potencialidade dos corpos humanos. Poder é da ordem de algo que se exerce. Podemos dizer que ele é a ação de um corpo sobre um outro corpo que se transforma por meio dos atos que produz ou que sofre. A essa ação podemos dar o nome de linguagem.
Neste sentido inicial e primeiro, o poder existe pura e simplesmente porque somos seres de relação e todas as relações implicam forças de natureza física, justamente porque somos corpos presentes, ou seja, estamos todos em estado de presença nesse mundo. Essa presença é a materialidade bruta sem a qual não há linguagem. A linguagem é como que um esforço do corpo de ir além dele mesmo, e a esse esforço podemos dar o nome de desejo.
A presença se tornou algo tanto menos concreto quanto mais virtual, mas mesmo assim ainda implica os corpos e suas ações. A presença é o “estar”, mas é também o “aparecer”, ele mesmo um direito – o de estar em um lugar qualquer diante de outros, junto com outros, nas ruas, nas instituições, nos espaços públicos em geral. O direito de aparecer é um direito relacionado à liberdade individual que experimentamos em atos simples, tais como andar pela rua, sentar no banco de uma praça, ir ao cinema, entrar em uma igreja ou em um elevador. A questão da presença na internet também se relaciona a um direito de aparecer. Infelizmente, o que seria um simples direito em uma sociedade democrática torna-se apenas mercadoria em uma sociedade de mercado que apaga com a ideologia do econômico a função política da vida.
Ao mesmo tempo, o mundo que partilhamos hoje é povoado de imagens. Há imagens presentes (importante aqui pensar no que significa esse “estado de presença” dos corpos e das imagens no mundo) por todos os lados. E só por isso elas também exercem poder sobre os corpos que todos somos. Digo que somos corpos porque nosso corpo é nosso estar no mundo, não uma coisa, não um objeto que nós mesmos possuímos ou que é possuído por outrem.
Em nosso senso comum, esse conjunto de teorias populares que usamos no cotidiano, poder é um conceito reduzido à lógica binária maniqueísta, na qual ele é considerado algo bom ou mau. Em um sentido conceitual, poder não é nem uma coisa nem outra.  A concentração ou a escassez, seu excesso ou sua falta é que tornam o poder problemático. Imaginemos uma relação entre alguém que não pode nada, ou alguém que tudo pode. Não é difícil imaginar que o simples poder pode, nessa relação desproporcional, transformar-se em violência.
Jogos de poder
Podemos usar o nome de “sujeito” para definir aquele que age sobre algo, e de “objeto” para definir aquilo ou até mesmo aquele sobre o que ou sobre quem se age. A relação entre dois sujeitos que não são reduzidos a objetos, define o mais rico dos experimentos da linguagem, o diálogo. Ele só acontece no momento em que conseguimos sustentar a condição de sujeitos. Em contextos nos quais um reduz o outro a objeto, a condição de possibilidade do diálogo está aniquilada.
Reduzimos as pessoas a objetos todas as vezes em que as usamos como meios e não como fins.
Como algo próprio dos corpos que entram em relação uns com os outros, o poder é inerente às relações. E apenas por isso ele pode se organizar como uma espécie de “jogo” regido por regras. O jogo é algo que não se joga sozinho e implica a compreensão das regras. Mas também a possibilidade de usá-las seja em benefício próprio, seja do coletivo. Damos o nome de poder político àquele que se exerce sobre corpos ou entre corpos atravessados por instituições. Corpos são atravessados por instituições em muitos momentos, e é difícil descobrir um instante em que estejam livres do poder político e totalmente lançados em uma espécie de pura relação em que a linguagem ainda não se encontrou com os jogos de força. Uma espécie de vida primitiva da linguagem, ou pura vida da linguagem. Daí que toda linguagem seja, mais cedo ou mais tarde, a forma primitiva da política e necessariamente ligada ao poder.
O jogo democrático e o estado de exceção atual
O poder político implica uma consciência das regras do jogo. Textos como a Constituição, por exemplo, são como que a regra básica de um jogo democrático.  O estado de exceção no qual estamos vivendo no Brasil atual, por exemplo, implica que as regras anteriormente acordadas foram burladas ou alteradas por um grupo que resolveu romper com as regras do jogo democrático. Quando isso acontece, quando o poder político é usado em benefício próprio ele é conspurcado. O próprio jogo é aniquilado e ninguém mais pode jogar. A democracia, como um jogo possível com regras que envolvem a todos, é interrompida. Resta aos que “podem” o mando, e aos outros, a obediência.
O que se pode chamar de “jogo de poder” é estratégia de poder em seu sentido político. Todo jogo de poder é, na verdade, um jogo de linguagem. Há jogos de linguagem sem “jogos de poder”, mas não há jogo de poder sem linguagem.
A linguagem preferida do jogo de poder político em seu estado deturpado é a da dominação e da violência. O poder político – aquele que se exerce juntamente com outro, ou contra os outros com a consciência do seu efeito – é como uma engrenagem, como um dispositivo, é como um organismo que funciona para fazer sobreviver a si mesmo. Como as pessoas se relacionam com esse poder é uma pergunta que deve ser respondida por cada um.
Ninguém na sociedade humana, que é uma sociedade política – na qual mesmo quem não quer fazer política faz política, mesmo que a sua política seja uma espécie de antipolítica – , vive fora de relações de poder. Justamente porque não pode viver fora da linguagem. O poder político que não interessa a todos, a todos afeta e, na sua forma deturpada depende justamente desse desinteresse da maioria para manter-se como é.
A pergunta que nos toca, nesse momento é: podemos jogar esse jogo? Ou devemos simplesmente deixar que aqueles que se colocaram como os “donos” do poder sintam-se tranquilos sem mais adversários dispostos a jogar o jogo da democracia?
Fora do jogo da democracia, todo jogo de poder é um jogo sujo. Vamos aceitar?

(Publicado originalmente na revista Cult)

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Charge! Laerte via Folha de São Paulo

Michel Zaidan Filho: Aventureiro por vocação


 




Como se descreve o perfil de uma pessoa aventureira? – No geral, é aquela que não tendo nada a perder, se mete nas empreitadas mais arriscadas que se lhe apresentam pela frente. Quando não se dispõe de nenhuma qualificação profissional institucionalizada ou não, o aventureiro não tem nada a perder; mas tem algo a ganhar. Não hesita diante de cargos, mandatos, nomeações, prebendas etc. O que vier, será lucro, já que não desperta expectativas nas pessoas de que seja capaz de fazer alguma coisa. Há muita gente assim, na política. No Brasil, basta ter a capacidade de adulação, ser “um bom operador” e aventureiro, para virar ministro, secretário, deputado ou senador. Em Pernambuco, temos um modelo acabado de um aventureiro na política. Aquele tipo que não tendo nada a perder, tem a tudo a ganhar quando se oferece para missões controversas ou discutíveis.

Esse é o caso de um suplente de vereador, suplente de deputado federal, que virou ministro, ajudando a patrocinar o golpe parlamentar contra a Presidente Dilma, juntamente com outros colegas de seu Estado. A ocupação do Ministério da Defesa por civis, desde a época do ex-presidente FHC nunca passou de mera formalidade, já que os ministros militares continuaram em seus cargos. A pretendida unificação de comando das três forças através de um ministro civil, nunca funcionou. Para um estudioso das relações civil-militar no Brasil, os ocupantes da pasta não passaram de “office-boy” das tropas, na busca de reivindicações corporativas ou profissionais. Naturalmente, um espírito aventureiro disposto a ocupar a vaga, mesmo sem o poder, se conformaria perfeitamente com o teatro ou a espetacularização da função.


Pior: no âmbito de um governo ilegítimo, arbitrário e impopular, seria uma espécie de “pau para toda obra”, menos para as funções constitucionais de sua pasta. Foi o que aconteceu. As Forças Armadas foram instrumentalizadas para combater a população civil (das comunidades carentes) do Rio de Janeiro, sob o pretexto de guerra ao tráfico e a violência. Isto num claro contexto de desgaste político do atual governo, depois do fiasco da reforma da previdência. Mas o aventureiro existe para isso mesmo. Prestar-se-ia (olha a mesócles do temeroso) a fazer o trabalho incômodo de autorizar uma intervenção militar, comandada por um general do Exército, no Estado do Rio de Janeiro, que – aliás – está acéfalo. Pirotecnia cujos resultados nefastos não demoram a se apresentar, manchando a imagem dos militares brasileiros.

Mas o aventureiro foi além. Deixou a intervenção nas mãos do Exército e se meteu numa tarefa equívoca, eleitoreira e arriscada. Resolveu se tornar ministro da....Segurança Pública! Ao invés de caminharmos para uma desmilitarização do aparelho policial, elaborando um conceito amplo de “crime” e “marginalidade” como metáfora social – num país de precária institucionalidade democrática e profunda desigualdade social, demos passos largos em direção a criminalização e a repressão policial à desordem social, como se isso fosse resolver os problemas do país. Como disse um sociólogo brasileiro, o fenômeno da violência urbana é muito complexo e possui muitas causas. Reduzir a sua essência à pura e simples criminalidade (ou a um instinto maléfico, como queria Lombroso) é um enorme e perigoso equívoco.
 
A população carcerária do Brasil chega hoje a 600.000 presos, em condições absolutamente desumanas. Não existe a palavra “ressocialização”. O que há é uma tendência ao aprisionamento dos pobres e miseráveis. A rede criminosa começa pelo alto, pelo principal mandante do país e vai se espalhando pelas casas legislativas e até no Judiciário. Nomear um super-xerife para dar conta desse fenômeno, se não é uma mero “simulacro” de uma política nacional de Segurança Pública, destinado a produzir efeitos positivos na opinião pública desavisada em relação à imagem do governo, é dar início a uma guerra civil declarada, nas grandes e médias cidades, onde os mortos são sempre civis, crianças, velhos, pobres e negros que habitam as periferias dos aglomerados urbanos.

Mais ainda, tendo como responsável uma pessoa despreparada e desabilitada para a tarefa. O homem-Bombril, de múltiplas utilidades, que vem do governo de FHC e agora do temeroso gestor, mal concluiu o curso de Psicologia, como pode dar conta da complexidade da violência urbana nos grandes e médios centros urbanos? – Para um antigo membro do Conselho Penitenciário Nacional, a violência e o crime devem ser vistos a partir de um enfoque multidimensional, não apenas da perspectiva da polícia. Menos ainda do ponto de vista de um “operador” que pretende entender de tudo, embora não tenha se aplicado a estudar nada. É semelhante aos políticos do DEM, quando se agarram com a pasta da educação. Mera politicagem. Não entendem do assunto e usam eleitoralmente as secretarias e o próprio Ministério para angariar votos e adeptos.

Imagine o que venha ser transformar a questão da violência e do crime, ao arrepio da comunidade dos estudiosos do tema, em simples peça do jogo político e eleitoral que se avizinha, cortejando o medo das classes médias brasileiras?

Aventura perigosa, onde todos morrem no final.
 
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE

Charge! Renato Aroeira

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domingo, 25 de fevereiro de 2018

A Estadofobia dos ricos

 



O Projeto Brasil 200, lançado essa semana em Natal, capitaneado pelo empresário Flávio Rocha e centenas de outros capitalistas do país, é mais um episódio do que poderíamos nomear de Estadofobia que assola os ricos do país. No entanto, ao contrário do que poderíamos pensar, essa hostilidade à presença e existência mesma do Estado, é um traço de longa duração da burguesia, desde que ela emergiu como classe social, nas sociedades ocidentais, mantendo uma postura que podemos nomear de ambígua em relação à instituição estatal. Não se trata de um traço específico da burguesia nativa, embora ganhe, no país, contornos singulares.
Desde que emergiu como classe, no final da Idade Média, a burguesia tem tido posturas ambíguas e oportunistas em relação ao aparelho de Estado. Nascida no interior da ordem feudal, a burguesia foi um elemento importante no apoio à centralização do poder por parte dos príncipes e uma força decisiva na emergência dos chamados Estados Absolutistas. Infiltrando-se paulatinamente na máquina estatal, os burgueses precisaram do Estado para construir as condições ideais para o exercício das atividades comerciais, manufatureira e usurária que foram a base de suas fortunas. Sem um Estado que unificasse o padrão monetário, que garantisse minimamente a segurança das relações comerciais e da circulação das mercadorias, que criasse um espaço econômico contínuo e regulado por uma legislação, unificando linguisticamente e legalmente, as transações comerciais e financeiras, teriam um grau de risco muito mais acentuado. Os monopólios mercantilistas, o domínio colonial, os estancos e privilégios aduaneiros e fiscais, a expulsão mesma de grupos concorrentes como árabes e judeus foram fundamentais para o soerguimento da burguesia europeia.
Sem o Estado garantindo e organizando as relações de trabalho, a exploração das riquezas e a propriedade privada não seria possível o domínio burguês. O Estado foi fundamental, sobretudo, na repressão à resistência dos artesãos a se engajarem nas novas relações de trabalho, na elaboração de leis que obrigassem ao trabalho compulsório das classes recalcitrantes, na legitimação e legalização da escravidão e de outras formas violentas de exploração dos trabalhadores, o que foi fundamental para a acumulação primitiva do capital, sem a qual não haveria capitalismo. Podemos dizer que a burguesia costuma deixar para o Estado o trabalho sujo, o papel de garantia da exploração e da acumulação. Encrustada no aparelho de Estado, a burguesia o põe a serviço de seus interesses privados, de suas interesses de classe, desvirtuando o seu sentido público.
Quando se sentiu suficientemente forte e vencedora, a burguesia destruiu os Estados absolutistas e através das revoluções burguesas instaurou o que seriam os Estados nacionais modernos. Apoiados na ideologia liberal, os porta-vozes da burguesia proclamaram as liberdades como sendo o bem maior a ser almejado por um cidadão. A república ou a monarquia deviam agora se submeterem às leis universais garantidoras da igualdade de todos perante as leis. O liberalismo, profundamente hostil à presença do Estado na economia e na sociedade, propunha a sua redução ao mínimo necessário, ou seja, reduzindo-o a um aparelho de garantia e legitimação da própria ordem burguesa. A burguesia sempre se debateu entre sua hostilidade a pagar impostos e com eles sustentar a existência do Estado e a necessidade de sua existência como garantidor das relações de exploração e de desigualdade que fundamentam a própria existência da sociedade burguesa. Para manter existindo uma ordem social tão injusta, a burguesia vai precisar do trabalho de repressão e do trabalho de legitimação e convencimento ideológicos realizados pelo Estado. Mas para sustentar esses serviços e a própria burocracia crescente que implicam, a burguesia terá que esterilizar parte de sua mais-valia, de seus lucros na forma de pagamento de taxas e impostos, que ela odiará visceralmente.
A contrariedade burguesa com a existência do Estado só cresceu, ao longo do século XIX, à medida que essa instituição se tornou palco e lócus de atuação de outros grupos sociais. Ao invés de ser um mero comitê a serviço da burguesia, como de forma simplista Karl Marx definia o Estado, ele é um campo de lutas, nele se expressa a própria luta de classes. Não apenas foi nele que a decadente aristocracia encontrou ainda lugares onde resistir a seu declínio e a sua derrota para a burguesia, arrancando em países como a Alemanha ou a Rússia uma transição para o capitalismo mais conciliador e pelo alto, mantendo um maior número de privilégios ainda decorrentes da estrutura feudal, como foi também no Estado que o proletariado, através de seus movimentos políticos e de seus partidos terminaram por encontrar ressonâncias para suas reivindicações.
O medo das massas e das populações em crescimento, o medo da revolução que veio se materializar na vitória bolchevique de 1917, a insegurança generalizada trazida pelas próprias mudanças tecnológicas e sociológicas trazidas pelo crescimento capitalista, num ritmo nunca visto antes na história, terminou por levar muitas burguesias a apoiar um crescimento desmesurado do Estado, notadamente em países que não conheceram o processo clássico de expansão capitalista, com a emergência dos totalitarismos. As graves crises sistêmicas da década de 1870 e 1929, que terminaram por resultar em duas guerras fratricidas, crises de superprodução resultado da acumulação desmesurada de riquezas sem a necessária existência de consumo ou de investimentos, gerando uma baixa geral das taxas de lucro e a falência generalizada de empresas, terminou por convencer economistas burgueses como John Maynard Keynes do caráter anárquico do capitalismo se deixado sem a necessária regulação estatal. O próprio sucesso inicial da economia planejada dos soviéticos convenceu da necessidade de uma maior presença do Estado na economia, como planejador, fiscalizador e instância redistributiva das riquezas, em forma de políticas públicas e de serviços, sem a qual a guerra ou a revolução podiam ser as consequências. Com medo de perder os dedos, a burguesia resolve perder os anéis: só assim foi possível o surgimento dos Estados de bem-estar social, em que a carga tributária elevada, os impostos sobre as grandes fortunas, com a cobrança de impostos sobre a renda que destinavam até 50% do lucro líquido para o Estado investir em saúde, educação, transporte, previdência, cultura, lazer, se tornou possível. Esse papel redistributivo do Estado reduziu drasticamente a diferença de renda, elevou grande parte do proletariado à condição de classe média e, com isso, reduziu a contestação operária ao sistema capitalista, reduzindo o perigo da revolução nos países centrais, isso às custas, evidentemente, do repasse dos custos dessa melhoria econômica e social para os países do terceiro mundo e para suas colônias asiáticas e africanas.
Mas, ainda nos anos trinta do século XX, diante do crescimento da presença estatal, seja com os totalitarismos de esquerda ou de direita, seja através dos Estados de bem-estar social, surgiu o chamado pensamento neoliberal, que passará a primeiro plano quando a vitória final do capitalismo parecer ter sido alcançada, com a derrocada do socialismo real na URSS e no leste europeu e com o fim da chamada Guerra Fria, no início da década de noventa do século XX. Ao se anunciar o fim da história e o fim da temática da revolução, autores como Francis Fukuyama celebravam a vitória final da burguesia e o começo da era neoliberal. Em 1989, o economista norte-americano John Williamson enunciava que os pressupostos keynesianos estavam mortos e ultrapassados. Suas ideias deram origem ao chamado Consenso de Washington e uma vaga neoliberal varreu todas as economias do mundo. Encarnados pelos governos de Margereth Tatcher, na Inglaterra, e Ronald Reagan, nos EUA, a onda neoliberal levou a Estadofobia a níveis do início do século XIX. Dois momentos de burguesias triunfantes e confiantes em si mesmas, crentes de que o mundo burguês é o mais perfeito e que não encontrará em sua frente qualquer obstáculo, a primeira metade do século XIX, pelo menos até as revoluções operárias de 1848, e as décadas de noventa do século XX e a primeira década do século XXI, viram um ataque virulento a presença do Estado na economia, a existência mesma da intervenção estatal na vida privada, nos campos da propriedade e das relações de trabalho, até que a crise sistêmica de 2008 veio mostrar que nem tudo eram flores. Surge uma burguesia militante que busca fazer do Estado um instrumento contra sua própria existência, a burguesia ocupa o Estado para nele produzir uma espécie de entropia, fazendo com que ele próprio entregue muitas de suas atividades e prerrogativas à iniciativa privada, espraiando a lógica da empresa e do mercado para setores como segurança, sistema prisional, previdência social, educação, transporte e saúde. Tudo se torna mercadoria: o tempo de aprisionamento de alguém, o tempo de aposentadoria e de vida dos mais velhos, a saúde das pessoas, a educação, etc.
Por que os ricos são Estadofóbicos? Porque os ricos não precisam do Estado para atender as suas necessidades básicas e muitas de suas necessidades sociais. Os ricos não precisam do Estado para terem acesso à saúde, à educação, podem pagar segurança privada, podem desenvolver seus próprios meios de transporte, podem cuidar de sua futura aposentadoria contratando previdência privada, não precisam do Estado para ter acesso à moradia e, muito menos, para que ele dê acesso ao trabalho ou à renda. Ao contrário, a burguesia sofre de Estadofobia basicamente por dois motivos: pelo fato de ter que contribuir com o sustento da máquina estatal através do pagamento de impostos, taxas e tributos e pelo fato do Estado interferir nas relações privadas, notadamente nas relações de propriedade e de trabalho, que a burguesia sonha completamente desregulamentadas e entregues a seu alvitre.
Toda burguesia sonha com um capitalismo selvagem e sem peias, com o reino ilimitado das vontades sem limites do capitalista em lucrar e explorar o trabalho. Ricos, sejam eles empresários ou rentistas, odeiam o caráter redistributivo do Estado, eles querem a acumulação sem peia e a concentração de renda a mais imoral, pois em sua alienação (no capitalismo não é apenas o proletariado que é alienado, a burguesia também), eles acham ser possível uma exploração indefinida do trabalho e não percebem o caráter insustentável para o próprio capitalismo da concentração de renda e o consequente empobrecimento da maioria. A burguesia brasileira sempre se notabilizou por sua alienada insensibilidade diante do fato da miséria, da concentração de renda e da desigualdade social que, a médio e longo prazos, são entraves ao próprio desenvolvimento capitalista no país. Flávio Rocha e suas empresas são bem um exemplo disso: embora o Shopping Midway Mall tenha sido aberto e prosperado quando das políticas redistributivas dos governos petistas, que aumentou a renda dos pobres e o consumo, o empresário apoiou o golpe de 2016 e prefere ver seu Shopping minguar à medida que as políticas neoliberais do governo Temer reduz a capacidade de consumo das famílias. Entre fortalecer um Estado de bem-estar social, distribuidor de renda, que elevaria o consumo e o faturamento de suas empresas de varejo, ele prefere, com sua Estadofobia, fazer o país recuar a um momento em que o capitalismo abarcava de fato apenas cerca de 40% da população do país.
A burguesia constrói a ficção de que é ela a responsável pelo sustento dessa máquina perversa chamada Estado. No caso do Brasil isso é uma ficção ideológica: a carga tributária regressiva, que incide mais sobre o consumo e o trabalho, do que sobre a renda faz com que sejam as camadas médias e os assalariados e consumidores, com maior percentagem os pobres, quem sustentam o Estado no Brasil. O nível altíssimo de sonegação fiscal, da qual, novamente, o grupo Guararapes é um exemplo, faz com que esses impostômetros que empresas instalam para propagandear o peso que carregam seja um exercício de hipocrisia: não pagam impostos e preferem corromper os agentes públicos do que fazer o correto pagamento do que devem. É verdade que existe no aparelho de Estado brasileiro uma casta que se apropriou dele e o torna caro e ineficiente, como é o caso do Legislativo e do Judiciário, mas eles são exceções, no geral o funcionário público brasileiro ganha abaixo da média salarial das mesmas funções em outros países do mundo. Ao contrário do que nos querem fazer crer, temos é um Estado menor do que deveria ser, dado o tamanho do país e de sua população e a complexidade de tarefas que tem a desempenhar, daí a péssima qualidade dos serviços públicos e, no geral, temos servidores mal-remunerados e mal-preparados.
Mas a Estadofobia de Flávio Rocha e seus seguidores tem um motivo muito claro: a intervenção do Estado nas relações trabalhistas. Perpetrando inúmeras irregularidades, desobedecendo a legislação buscando uma maior exploração do trabalho e, consequentemente, maiores taxas de lucro, os capitalistas como o Sr. Rocha detestam a Justiça do Trabalho que representa a presença do Estado como mediador das relações de trabalho e moderador da exploração e da injustiça sem peias no âmbito das relações de emprego. O sonho inconfessado de gente como o Sr. Rocha é a inexistência de limites à sua arbitrariedade no campo das relações com seus trabalhadores. Como fruto de nossa história, em cada capitalista brasileiro mora um senhor de escravos em potencial, que adoraria poder voltar a época em que nada impedia que ele pudesse à força do chicote e do ferro extrair o máximo da força de trabalho de alguém, em poucos tempo, matando-o de trabalhar se necessário. O ódio ao Estado por parte dos empresários rurais, por esse exigir o cumprimento da função social da propriedade, uma conquista feita com a luta secular dos camponeses, significando um limite ao direito de propriedade, faz com que a Estadofobia também reine entre os ruralistas, que sonham em invadir as terras que quiserem, voltando à época da grilagem, que adorariam desmatar quanto quisessem, limpar as terras da presença de índios e populações tradicionais à bala, com seus jagunços, e pagarem seus trabalhadores com comida do barracão e com uma dormida insalubre numa latada de folhas.
Mas os capitalistas detestam o Estado até que ele possa ser utilizado a seu favor. Os banqueiros e rentistas odeiam o Estado, mas adoram ver ele tomando empréstimos e pagando juros estratosféricos para eles. Adoram ver o Banco Central socorrendo bancos e financeiras em dificuldades. Adoram ver os Estados garantindo a cobrança de seus empréstimos, mesmo às custas da miséria e do sofrimento das populações. Os neoliberais americanos não tiveram pejo em exigir que o Estado usasse o dinheiro do contribuinte para salvar os bancos que agiram temerária e irresponsavelmente em suas operações, criando uma economia fictícia, jogando o mundo na grave crise que o corrói desde 2008. O Sr. Flávio Rocha é um paladino contra o Estado, mas quando esse o isenta de pagar impostos por anos a fio, como faz o estado do Rio Grande do Norte, quando esse mesmo Estado cria um programa de financiamento só para beneficiar suas empresas (o Pró-Sertão), ajudando-o a burlar a legislação trabalhista e o fisco, transferindo para empresas de fachada sua produção, quando um banco público como o BNDES investe milhões de reais em suas empresas, ele não se queixa e se diz merecedor de tais benefícios por criar empregos, embora, em sua lógica troncha, o Estado não possa fiscalizar e questionar a qualidade desses empregos que diz oferecer, pois afinal é o financiamento do Estado que os faz existir.
Como são os pobres que necessitam do Estado, é a eles que a Estadofobia atinge diretamente com o desmonte dos serviços e das políticas púbicas e sociais, como estamos vendo no Brasil. A Estadofobia é um capítulo da luta de classes. Com o passar dos anos o proletariado aprendeu a reivindicar e se apoiar no Estado para minimamente contrabalançar o enorme poderio financeiro e político da burguesia. As lutas operárias, as inúmeras vidas que tombaram no momento em que a questão social era vista como caso de polícia, em que qualquer contestação ao poder do capitalista era vista como crime e subversão da ordem, fez com que as classes trabalhadoras fossem ganhando espaço no aparelho de Estado e conseguindo arrancar dele direitos e conquistas. O atual governo brasileiro, colocado no poder pelo entusiastas assinantes do projeto Brasil 200, o considera indispensável para fazermos a travessia até esse glorioso futuro neoliberal, ao mesmo tempo que usam os fantoches corruptos que lá colocaram para desacreditar a política, os políticos e de cambulhada o Estado, já que esses vampiros de escola de samba que nos governam, servem para essa tarefa final: a desmoralização do Estado, do serviço público, da política, surgindo em seu lugar os paladinos empresariais, os gestores, mesmo que eles também estejam encarapitados nos carros alegóricos, com suas pastas cheias de grana, comprando as leis e medidas provisórias e conseguindo as obras de que necessitavam. Os empresários brasileiros chegam ao cinismo de denunciar a corrupção do Estado e dos políticos fazendo de conta que eles não são os corruptores. Ao invés de fortalecer o Estado e seu caráter público e cidadão, com o pagamento de impostos, os senhores empresários preferem gastar quantias maiores corrompendo e subornando os agentes do Estado, tornando-o assim presa de seus interesses privados, desvirtuando o seu funcionamento e prejudicando a população, os pobres, que efetivamente precisam dele e de seus serviços.
O enfraquecimento do Estado é uma forma do poder econômico se fortalecer e fragilizar a capacidade de luta e resistência dos mais pobres e dos trabalhadores. É por isso que os capitalistas da mídia encetam uma campanha tão desabrida contra o Estado e a política, pois querem ele cada vez mais fraco e servil a seus interesses. Substituir uma presidenta altiva por um rato rastejante era tudo que a burguesia brasileira sonhava. Ele faz o que eles ordenam e conforme eles pagam. O ataque ao próprio Estado, à sua soberania externa, sua fragilização como aparato técnico, sua incapacidade de investir e de ser indutor de processos econômicos, seu desarmamento como instância mediadora das relações de classe, das relações de trabalho é visível. Mas, apesar disso resta um papel para o Estado, do qual a burguesia nunca reclamou, que é trombeteado em altos brados pela matilha raivosa da direita e pelos bolsominions: o papel de gerdame, de força armada em defesa do capital e dos capitalistas. Para os pobres, o governo golpista reservou a única face do Estado do qual os Flávios Rochas não têm fobia, sua face mais violenta e injusta, a face do tacape e da borduna. Reduz-se o Estado, a injustiça social se amplia, as desigualdades e a miséria crescem, a violência aumenta, a inquietação e revolta dos pobres aumentam, os ricos e patos amarelinhos, que achavam que, com o golpe haviam chegado a um paraíso feito só de coxinhas, veem o paraíso ser invadido pelos moradores de rua, pedintes, desempregados, ambulantes, pivetes, trombadas, traficantes, ladrões sem gravata e sem malas, arrastões, golpistas não midiáticos, pobres em fúria, o que fazer então? Chamar as forças repressivas do Estado, para tentar na base da bala, da porrada, do desrespeito aos direitos humanos, com mandatos coletivos de busca e apreensão tornar todo pobre, preto e petista num criminoso em potencial, podendo ser eliminado, desde que se tenha a garantia que, no futuro, não venha existir uma nova Comissão da Verdade a denunciar esses crimes. Esse é o projeto para o Brasil que os empresários como Flávio Rocha e sua Estadofobia têm para o país. Essa é a independência do país que eles sonham: a independência deles, capitalistas, do Estado e dos limites que ele representa à sua busca desenfreada de lucro e acumulação, à exploração do trabalho, à mercantilização de tudo e de todos. Em 2018 poderemos ir às urnas votar para por fim ao Estado, paradoxo maior impossível. O Estado não é e não pode ser gerido como uma empresa, pois ele não é feito para dar lucro, mas para distribuir mais equitativamente o lucro produzido para toda a população. O resto é cinismo e oportunismo de lobos disfarçados de patos.

(Publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem)
 

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Riscos e históricos do confronto direto com o crime, por Maria Cristina Fernandes



Foto: Reprodução
 
Jornal GGN - A busca por resolver o problema da Segurança Pública no país alimenta contradições e visões antiquadas, hoje abertamente defendida pela gestão de Michel Temer, de que "bandido preso" seja a solução. Em sua coluna no Valor Econômico, Maria Cristina Fernandes lembra que o atual presidente comandava a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo quando foi criado o Primeiro Comando da Capital (PCC), que surgiu após o massacre do Carandiru, para vingar a morte dos presos.
 
Se, por um lado, o Estado passou a prender mais e estampou em comemoração a redução dos índices de violência, foi no mesmo período e ao mesmo tempo, como resposta, que surgiu uma das maiores organizações criminosas do país, o PCC.
 
A rivalidade da organização com o Comando Vermelho, do Rio, fez surgir uma nova modalidade de crime, o violento confronto de facções rivais. Na capital fluminense, se o CV sobreviveu à implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), narra Maria Cristina, é porque a medida nunca teve como objetivo acabar com o tráfico, mas o restringir.
 
Entretanto, uma atuação combativa direta de polícias contra a criminalidade do tráfico e de facções criminosas comprova, no histórico do Rio e de São Paulo, que não funciona. 
 
"Ao contrário de São Paulo, o crime no Rio, além de fracionado, convive com um crescente poder das milícias. Organizações comandadas por ex-policiais em parceria com colegas da ativa, as milícias vendem proteção contra si mesmas. Cresceram numa conjuntura de contínua depauperação das condições de trabalho dos policiais, como fonte extra de renda", descreveu a colunista.
 
E os riscos dessa imprevisível estratégia são grandes: "Dos muitos contornos em aberto desta ocupação militar, os mais imprevisíveis são aqueles que derivam de sua coabitação com a campanha eleitoral no Estado em que o partido do presidente da República mais se lambuzou no poder. Se as milícias demonstrarem mais capacidade de adaptação à ordem militar, nada lhes impede a ganhar poder na circunscrição eleitoral dos candidatos", aponta.
 
(Publicado originalmente no site do Jornal GGN)
 

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Editorial: Os impasses da intervenção federal no Rio de Janeiro

 Nenhum texto alternativo automático disponível.
Quem ainda não leu, aconselho a leitura do artigo do professor Durval Muniz de Albuquerque, aqui publicado, onde ele faz uma análise da intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro, não sem antes, na condição de historiador, tecer bem traçadas linhas sobre a formação e a caracterização da cidade maravilhosa, que deverá continuar maravilhosa, apesar dos transtornos dos tanques, vampiros e gatos angorás. A população, em razão do pânico disseminado pela mídia - convém sempre observar que as ocorrências policiais deste carnaval no Rio de Janeiro não foram diferentes de outros carnavais - pode até demonstrar uma boa receptividade em relação às ações das Forças Armadas no Estado, mas, até mesmo entre a alta patente militar há atores profundamente preocupados com a sua eficácia, resultados ou uso político, seja por uma possível motivação eleitoreira, seja pela ausência de planejamento, seja pela insegurança jurídica, seja pela absoluta ausência de fonte de recursos. Meirelles chegou a sugerir um "remanejamento" dentro do próprio orçamento previsto para as Forças Armadas, o que se constitui num insulto, posto que o orçamento já está bastante contingenciado. 

Neste mesmo artigo, o professor Durval Muniz menciona uma intervenção militar ocorrida, em período relativamente recente, no seu Estado natal, o Rio Grande do Norte. O resultado foi desastroso e num único final de semana foram registrados 25 homicídios, mesmo com a presença dos militares. Setores do próprio estamento militar reconhecem a ineficácia de se colocar o Exército para realizar o trabalho de polícia. O atenuante, neste caso do Rio de Janeiro, é que as Forças Armadas e as polícias militar e civil atuarão em conjunto. Mesmo assim, em razão da precariedade instaurada nas polícias cariocas, não seria surpresa se o Exército precisasse sujar as mãos. Um outro problema gravíssimo seria o da infiltração do crime organizado no aparato das forças armadas - como já ocorre em relação à polícia militar e civil. Os indícios ainda são incipientes, mas preocupam. Um soldado foi preso ao antecipar para os traficantes operações militares num determinado morro. Um sargento do Exército foi detido com um forte carregamento de armas e munições, possivelmente para os chefes do tráfico. Os indícios são pequenos, mas crime organizado é crime organizado, não custa lembrar. 

O grande problema que se coloca neste momento é sobre como será mantida essa pirotecnia política, criada de forma atabalhoada, sem qualquer planejamento, sem previsão orçamentária e sem unanimidade nos altos coturnos da caserna, que também temem uma exposição demasiada, para atender interesses de grupos, sem resultados concretos da ação dos militares, posto que comprometida pelos fatores citados acima. O comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas, lembrou, inclusive, o período em que o Exército ocupou o Complexo de Favelas da Maré e, quando saíram de lá, tudo voltou ao "normal". É curioso observar como no alto comando das Forças Armadas parece existir um consenso sobre o desvio de finalidades desta intervenção, o que reforça a tese de que uma indesejável aventura golpista militar, desta vez, se vier a ocorrer (vão batendo na madeira aí, gente), iria procurar um testa de ferro civil, como, aliás, de acordo com o jornalista Luis Nassif ele já existe, atende pelo nome de Michel Temer, ainda segundo Nassif, comandado pelo Ministro-Chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Sérgio Egtchegoyen. Há quem sugira que ele poderia estar interessado em manter-se à frente do cargo, sendo a intervenção uma forma de capitalizar o apoio e o respeito que as Forças Armadas ainda goza entre os brasileiros. 

A charge que ilustre este editorial é do Renato Aroeira.

 

A ditadura neoliberal e os caminhos para vencê-la

Em seu momento de menor legitimação e dificuldade de coordenação, a coalizão golpista trilha claramente o caminho da violência judicial contra Lula e, agora, militariza seus movimentos e instituições. O desafio em 2018 é produzir uma alternativa democrática, com unidade, força popular e capacidade política de vencer




18/02/2018 13:38
 
 
A ditadura neoliberal e os caminhos para vencê-la

Com o artigo “O PSDB virou um partido golpista?”, publicado nesta Carta Maior, em dezembro de 2014, começou-se a se constituir um campo de previsão sobre a crise da democracia brasileira. Um campo de previsão, em uma conjuntura marcada exatamente pela ruptura de padrões políticos já instáveis, necessariamente inclui uma indeterminação mais larga que um tempo político mais institucionalizado mas visa principalmente criar uma narrativa e um sentido, uma bússola e um norte para os acontecimentos. Para ser capaz disso, este campo de previsão precisa se inscrever em temporalidades e horizontes internacionais mais largos, centralizar-se conceitualmente na nova ordem do conflito de poder, ser capaz de analisar a força objetiva das vontades políticas que organizam a disputa e pensá-la nas condições subjetivas de classe que as enquadram.
De 2014 para cá, foram seis os momentos decisivos de atualização e construção deste campo de previsão, é claro, em diálogo sempre com a inteligência de esquerda da democracia brasileira e internacional. O primeiro foi exatamente o artigo citado: ao identificar a mudança de natureza do PSDB, de um partido de oposição neoliberal a um partido golpista animado de um novo programa neoliberal radical, previa, pela força política deste partido, um tempo de aguda desestabilização do segundo mandato de Dilma Roussef. Em um outro artigo intitulado “Um escândalo chamado Armínio Fraga”, publicado também em dezembro na Carta Maior, correlacionava-se esta mudança de natureza do PSDB a uma mudança de sua base orgânica: “da avenida Paulista a Wall Street”, afirmava-se, isto é, da expressão dos interesses do capital financeiro nacional e internacional, a uma expressão mais em sintonia e atualizada com o capital financeiro internacional. Mas ainda não havia uma consciência plena do que passou-se a chamar depois de “terceira fase do neoliberalismo”, isto é, de uma nova fase após a crise internacional de 2008, na qual as rupturas dos atores políticos neoliberais com a democracia iriam ao centro.
Um terceiro momento valeu com uma sirene de alerta: o artigo “O risco de se chegar atrasado ao golpe”, publicado em 25 de março de 2015 na Carta Maior, aliava o impacto das grandes manifestações da direita que tomaram as ruas com a impressionante e rápida deterioração da popularidade do segundo governo Dilma, após as suas escolhas principalmente na área da economia. Ao final, o artigo propunha a formação de uma frente em defesa da democracia e condicionava a possibilidade de um sucesso de tal iniciativa política a uma mudança radical na orientação neoliberal da política econômica, a cargo de Joaquim Levy. Havia uma vontade política já avançada em sua organização de derrubar o governo Dilma, a partir de um programa neoliberal radical, e seria ilusão busca uma repactuação com ela. 
Um quarto artigo, “Nove teses sobre a contra-revolução neoliberal”, publicado em 12 de maio de 2016 na Carta Maior, procurava criar um conceito histórico de enquadramento do sentido do golpe, como sendo o projeto de criar no Brasil, a partir da destruição da Constituição de 1988, um Estado neoliberal no Brasil. O programa do golpe previa a destruição de décadas de direito acumulados e décadas de destruição de direitos no futuro. O Estado nacional seria destruído em seus fundamentos de soberania e as instituições da democracia perderiam qualquer relação com um fundamento de soberania popular, com foco na violência contra os negros, as mulheres, os pobres no campo.. Autocracia e capitalismo, atualizando Florestan Fernandes de “A revolução burguesa no Brasil”.
Um quinto ensaio, “A dinâmica da contra-revolução neoliberal”, publicado na revistaDemocracia Socialista, em meados do primeiro semestre de 2017, identificava um início sólido de virada na formação da opinião pública diante do golpe, com uma dinâmica clara do aprofundamento de sua impopularidade e um certo início de retomada da popularidade do PT e, principalmente, da liderança política de Lula. Ao seu final, fazia-se a previsão, seguindo o conceito maquiaveliano da conjunção de coerção e consenso na formação do poder político: “É esta distância entre o poder da coalizão golpista nas instituições e nos oligopólios de mídia e a sua base de legitimação e popularidade que faz prever como provável uma espécie de 1968 na dinâmica da contra-revolução neoliberal: isto é, um golpe dentro do golpe”. 
O sexto momento, certamente o que alcançou maior publicidade, foi em julho de 2017, em uma entrevista ao editor do Sul 21, Marco Weisheimer, depois replicado em muitos outros sites, com o título “Nada mais desmobilizador do que 2018”. Lá se desenvolvia, enfim, uma inscrição do golpe no Brasil em uma temporalidade e dimensão internacional mais larga, de uma época mundial crescentemente dominada pelo neoliberalismo, em diálogo com uma nova literatura internacional e o brilhante livro de Wanderley Guilherme dos Santos, “A democracia impedida. O Brasil no século XXI”. E criticava a ilusão de que todas as expectativas deveriam ser canalizadas para as eleições presidenciais de 2018, a serem realizadas em regime de normalidade democrática. Entre 2017 e outubro de 2018, haveria “um abismo” e se não tivéssemos consciência dele, poderíamos ser por ele tragados. 
Neste ensaio, procura-se desvendar este “abismo” (que , aliás, foi parar em um artigo no New York Times de 23 de janeiro de 2018, “Brazil´s democracy pushed to the abyss”, de autoria de Mark Weisbrot, o qual afirmava que a condenação de Lula pelo TRF-4 conduzia a democracia brasileira a um abismo em 2018), através do conceito de “ditadura neoliberal”.
Neoliberalismo e fim da democracia
Já há uma ampla literatura internacional, em geral desconhecida pela esquerda brasileira e muito pouco refletida na própria ciência política do país, dedicada a diagnosticar o antagonismo entre ordens neoliberais e democracias. Um autor que tem trabalhado com centralidade este idéia é, por exemplo, Ian Bruff, professor da Universidade de Manchester, embora não tenha claramente uma formação mais profunda em filosofia política. Em seu ensaio “Authoritarian Neoliberalism and the myth of free markets” (“O autoritarismo neoliberal e o mito dos mercados livres”), publicado na revista Roar número 4, ele se centra na crítica a uma certa retórica da esquerda que associa neoliberalismo e mercados livres ou desregulados. Ao contrário, o neoliberalismo desde os seus fundadores, é um projeto de poder autoritário, coercitivo, não democrático e desigual de reorganização da sociedade a partir de seus parâmetros de interesses. 
Ele anota em outro ensaio, “Neoliberalism and authoritarianism” ( “ Neoliberalismo e autoritarianismo”) que aquele que é considerado o principal autor do neoliberalismo, Friedrich Hayeck, já argumentava nos anos 70 que “as instituições políticas dominantes no mundo Ocidental necessariamente produziriam uma deriva ( em direção à destruição do mercado) que poderia apenas ser detida ou prevenida pela mudança destas instituições”. Seria necessário restringir severamente o poder dos parlamentos eleitos em favor de instituições de salva-guarda. Estas alva-guardas tornariam possível ao executivo forçar a obediência às regras gerais que deveriam ser aplicadas a todos: “ A raiz do mal é assim o poder ilimitado do legislativo nas modernas democracias, um poder que a maioria vai ser constantemente forçada a usar de modo a que a maior parte de seus membros não deseja. O que chamamos a vontade da maioria é assim na realidade um artifício das instituições existentes, e particularmente a onipotência do poder legislativo, o qual através dos mecanismos do processo político vai ser dirigido a coisas que a maioria de seus membros não desejam realmente, simplesmente porque não existem limites formais aos seus poderes” ( “Economic, freedom and representative government, Institute of Economics Affairs, Fourth Winscott memorial lecture, Occasional papers número 39, 1973). 
De modo equilibrado, Ian Bruff procura evidenciar que esta dinâmica política do neoliberalismo em direção a um Estado forte e mais autoritário convive com uma maior fragilidade e com uma forte deslegitimação. Isto é, ele pode e deve ser enfrentado e, eventualmente vencido, no terreno da luta democrática, que seja capaz de organizar e legitimar sua força política em maiorias. 
Uma ditadura neoliberal?
A análise de que o impeachment, sem respaldo constitucional, da presidenta Dilma em 2016 era um golpe parlamentar foi fixado na ciência política brasileira através do professor Wanderley Guilherme dos Santos, identificando a sua diferença e novidade em relação a um golpe militar. 
A defesa de que, a partir daí, entramos em um regime de exceção foi feita imediatamente por Luís Felipe Miguel, a partir do comprometimento do pretenso guardião constitucional – o STF – com o próprio golpe. Devemos a toda uma rica e plural inteligência jurídica democrática brasileira a demonstração de que as decisões judiciais, em um intenso e cada vez maior processo de judicialização da política, passavam a operar fora do devido processo legal, em meio a jurisprudências excepcionais, seletivamente orientadas. O professor Fábio Wanderley Reis, chama a atenção de forma reiterada, para a gravidade da decisão do pleno do TRF-4 tomada em 2017 que ,apenas com um voto contrário, legitimou a jurisprudência de exceção como apropriada ao atual contexto brasileiro. O silêncio, então, do STF a este escândalo confirmava a sua adesão ao regime de exceção em que vivemos.
André Singer já havia postulado, desde 2017, que o fato decisivo para caracterizar um rompimento definitivo com a democracia seria a condenação e o impedimento da candidatura de Lula às eleições presidenciais de 2018. Certamente o colega da USP mirava na definição liberal minimalista de democracia, relacionado-a a alguns critérios básicos de possibilidade de alternância de governo e à manutenção das regras do jogo. Com a antecipação e a confirmação da condenação de Lula pelo TRF-4, com penas aumentadas, e a decisão sobre uma sua possível prisão imediata, agravada agora com a vontade manifesta pelo atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral de antecipar a decisão sobre a interdição da candidatura de Lula à presidência, uma segunda fase do golpe, se diz, estaria em andamento.
Mas é próprio da condição do abismo, não ter um fundo certo. Agora, com a decisão Temer- Globo, que conta com o apoio de Alckmin, de intervenção militar no Rio e a formação de um Ministério Extraordinário da Segurança Pública, é o poder militar que vem ao centro da dinâmica golpista. Para onde vamos, o que está mesmo se armando?
O conceito que se propõe de ditadura neoliberal visa exatamente entender o que está acontecendo. Chamamos de ditadura neoliberal um poder que não está disposto a se submeter à imprevisibilidade da disputa democrática, que não está apenas fora da democracia, mas contra a democracia. Se este poder político conseguir se organizar para vencer eleições presidenciais e para o Congresso Nacional em uma situação de forte ou quase certa previsão de vitória, ele as instrumentalizará pelos meios que forem necessários. Se não houver esta possibilidade, este poder agirá com uma violência judicial e repressiva cada vez maior para garantir, de forma inequívoca, que o programa neoliberal radical que organiza o golpe continuará a ser implementado. Não faz parte da coalizão golpista a imaginação da possibilidade de que a esquerda vença as eleições em 2018.
Uma ditadura neoliberal certamente não é uma ditadura militar, embora deva se apoiar cada vez mais nos poderes repressivos do Estado. Ela pode conviver com eleições, desde que forças anti-neoliberais não possam vencer e governar. A construção de leis e instituições que escapem ao controle democrático é, neste sentido, fundamental. A organização de uma nova capacidade repressiva é também decisiva, implicando certamente em fortes ataques aos mínimos padrões democráticos de direitos humanos. 
Uma ditadura neoliberal se diferencia de uma “democracia de baixa intensidade”, como gosta de formular Boaventura dos Santos, identificando uma dinâmica elitista das democracias liberais contemporâneas de restringirem até as mínimas arenas democráticas, exatamente por esta disposição de liquidar a disputa democrática de governos. É preciso compreender que a contra-revolução neoliberal é um projeto de Estado, isto é, de longo prazo.
Um caminho democrático
Se o abismo é a ditadura neoliberal, a dinâmica abismal é - em um contexto cada vez maior de deslegitimação do golpe como tem se procurado analisar na série “A narrativa golpista e os caminhos para vencê-la”, em co-autoria com Eliara Santana – aquela que faz uso cada vez mais intenso da violência judicial e da repressão. A tentativa agora de casar agenda da segurança pública com a militarização é claramente uma busca também de relegitimação de uma narrativa que já não forma maioria na sociedade brasileira e é vista com desconfiança até mesmo por parte da base eleitoral da coalizão golpista. 
A partir desta análise, entende-se a veemência e o acerto da posição do professor Wanderley Guilherme dos Santos, no sentido de que no momento em que a coalizão golpista mais agride a democracia é hora cada vez mais de defendê-la. Em 1968, forças majoritárias de esquerda reagiram ao aprofundamento da ditadura militar, pelo caminho então legítimo mas sem legitimidade construída, das armas. A disposição de não abandonar o terreno da disputa eleitoral, de disputá-la mesmo em meio à violência e arbitrariedade judicial, mais do que uma estratégia é um fundamento de valor: a esquerda brasileira enfrenta o golpe no terreno da formação da vontade das maiorias a partir de seu programa democrático-popular. Esta disputa eleitoral integra a disputa do poder comunicativo, procurando derrotar a narrativa golpista em crise a partir de uma narrativa alternativa do golpe. É fundamental, neste sentido, o Encontro Nacional de Comunicação convocada para abril deste ano.
Esta posição acertada deveria ser combinada, em primeiro lugar, com uma larga disposição de unidade das forças anti-golpistas. Fixado o terreno da unidade – a luta contra o golpe e seu programa neoliberal, inclusive com o compromisso da realização de um plebiscito revogatório de suas leis e medidas – não há razão para a divisão das esquerdas em um momento tão decisivo. Sem ela, não se fará a resistência e não se construirá um caminho de superação do golpe. É fundamental, neste sentido, a iniciativa das Fundações do PT, PC do B, PSOL e PDT de construírem uma plataforma comum.
Por fim, a dinâmica abismal acima descrita, de crescente violência judicial e agora de militarização, só poderá ser vencida com um padrão de mobilização e de organização social muito maior do que até agora a esquerda brasileira, em seu pluralismo, foi capaz de demonstrar. A organização de comitês populares e a proposta que está sendo chamada de Congresso do Povo Brasileiro, a ser realizado em meados deste ano, é fundamental.
As ruas já deram a faixa de campeão ao histórico enredo da Tuiuti, que traz os temas da liberdade e da escravidão para o centro da disputa de valores e futuros do Brasil. Para que o carnaval em 2018 não termine em quarta-feira de cinzas, será necessário encontrar os caminhos para vencer a ditadura neoliberal.
(Publicado originalmente no site Carta Maior)

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Michel Zaidan Filho: Saída desonrosa


 
A consequência natural de um governo ilegítimo, arbitrário e impopular teria de ser uma intervenção militar num dos principais Estados da Federação Brasileira: o Rio de Janeiro. Mas ela foi reforçada pelo fiasco da reforma da previdência, já anunciada como inviável pelos aliados do próprio governo, e os eventos carnavalescos, entre os quais o estado de acefalia que tomou conta do Estado fluminense, durante os festejos momescos. O Executivo, rodeado de seus “sábios” e “impolutos” conselheiros devem ter aconselhado o Chefe do Governo a buscar outra saída, diversionista, para desviar os olhos da opinião pública da iminente derrota política no Congresso. Dizia Napoleão que se pode fazer quase tudo com uma baioneta, menos sentar-se sobre ela. E os dignos parlamentares não estão dispostos a sentar em cima de nenhuma baioneta, leia-se derrota eleitoral e desgaste político, perante o eleitor, com o voto a favor dessa malfadada reforma. Curioso detalhe: quando o presidente do Congresso já tinha retirado de pauta a reforma, alegando o decreto da intervenção federal, as principais revistas semanais do país trouxeram encartes sobre a reforma, aplaudindo-as. Ninguém avisou a elas que este tema não entraria mais em pauta neste ano.

O decreto que autoriza a intervenção militar no Rio de janeiro está eivando de vícios e inconstitucionalidades, conforme análise da Associação dos Juízes para a Democracia. Não obedeceu às exigências e condições impostas pela Constituição para a tomada dessa decisão pelo Chefe do Executivo. Mas o apreço pela lei não parece ser o forte dessa turma. Não houve discussão nem consulta ao Conselho da República, nem ao Conselho Nacional de Segurança Pública. Não há fato determinado que justifique a intervenção federal (não se confunde perturbação da segurança pública, com perturbação da “ordem pública”). Há um flagrante desvio de finalidade do papel das forças armadas, cuja missão é proteger a nação de inimigos externos. Não há indicação de nenhum plano de segurança pública para a intervenção, e o que é mais grave: mandados coletivos de busca e apreensão pelos militares, que serão usados contra a população pobre e trabalhadora das favelas cariocas, sob pretexto de combate ao crime organizado. Estado de Exceção mesmo, que poderá ser estendido a outras regiões onde a violência seja apontada como uma ameaça ao Estado.

Todo mundo discute hoje o caráter eleitoreiro dessa medida abusiva. Parece um “factoide”, na antevéspera da campanha eleitoral, onde dificilmente ninguém se louvará na herança ruinosa desse golpista que ocupa o Palácio da Alvorada. E há mais de um “esperto” que visa tirar proveito dessa arriscada aventura. Um deles, com certeza, chama-se Raul Jungmann, dito ministro da Defesa (também chamado pelos estudiosos de “office-boy” dos militares). O referido senhor tem firmes pretensões em disputar um mandato no Rio de Janeiro, sabe-se lá de quê. Já que em Pernambuco, terá muitas dificuldades de se eleger para qualquer coisa. De toda maneira, a possibilidade dessa jogada dar errado é muito grande. Toda vez que os militares são chamados a assumir o papel de polícia, a imagem da instituição militar sai profundamente arranhada. É denúncia de tortura, invasão de domicílio, violência contra civis, imperícia nas ações armadas etc. Afinal, essa não é a missão constitucional do Exército.

O Rio de janeiro não é o Estado campeão da violência no Brasil. Outras unidades da federação passam por situações semelhantes ou até pior. O nosso Estado, por exemplo, não aparece numa situação confortável nesse ranking sinistro. A alegação de combater o crime organizado chega a ser engraçada. Pois o próprio chefe do executivo nacional foi chamado de líder de uma quadrilha perigosa, onde os meliantes estão impunes, rindo à toa. A limpa teria de começar por Brasília e pelo Congresso Nacional e depois, O Poder Executivo. Os bandidos do Rio de janeiro são fichinhas diante do descalabro moral, político e administrativo que reina no Distrito Federal. Qual é a autoridade moral e legal que têm esses senhores para falar numa intervenção militar contra o crime organizado?
 
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE





 

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

O xadrez de Sérgio Etchgoyen, o comandante de fato do Governo Temer

Peça 1 – a volta previsível do poder militar

A saída pela via militar estava prevista desde o início do impeachment. E a peça central sempre foi o general Sérgio Etchgoyen, nomeado para Ministro-Chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI).
Em 07/05/2016, o “Xadrez do governo Temer e o fator militar
(...) Com o vale-tudo corporativo instituído, começam a aparecer os planos de devolver algum protagonismo político às Forças Armadas, a exemplo do ativismo atual do MPF, do TCU e das demais corporações de estado. Com a diferença que se trata de uma corporação armada.
(...) Consumado o golpe, Michel Temer assumiria a presidência em um quadro de ampla instabilidade política, agravado pela perda de seu mais eficiente operador, Eduardo Cunha.
Não haverá como se apresentar à opinião pública com um ministério de notáveis. Por outro lado, para dar conta dos compromissos firmados com o mercado, terá que recorrer a medidas fiscais drásticas, ampliando a reação dos movimentos sociais e o mal-estar geral. E não terá recursos para manter os programas de renovação das Forças Armadas.
É aí que se junta a Peça 3 com a Peça 2: identificação de um novo inimigo interno e externo que justificasse a volta do protagonismo político.
(...) Quem está à frente dessas articulações é o general Sérgio Etchegoyen, chefe do Estado Maior do Exercito Brasileiro e de uma família que faz parte da própria história do Exército.
O meio campo com o governo Temer está sendo articulado pelo filósofo Denis Rosenfield, articulista do Estadão e colaborador do Instituto Milenium. Denis é amigo de Etchegoyen, provavelmente devido à mesma origem gaúcha, foi indicado assessor de Temer e há indícios de que mantem contatos com governos estrangeiros.
No dia 22 de abril, por exemplo, encontrou-se com Etchegoyen no Centro Brasil 21, em Brasília. Dois dias antes, a pedido de Etchegoyen, agendou jantar na residência do general com os comandantes da Marinha e da Aeronáutica. A intenção era montar uma frente que forçasse Temer a assumir compromisso de nomear um militar para o Ministério da Defesa. O indicado seria o general Joaquim Silva e Luna, Secretário Geral do Ministério do Exército.
Além disso, se tentaria arrancar de Temer o compromisso de assegurar a permanência dos comandantes em seus postos, recriar o Gabinete de Segurança Nacional, sob a chefia do general Etchegoyen, e colocar Denis na Secretaria de Comunicação da Presidência. Para o lugar de Etchegoyen iria o General Mourão, de pensamento similar.
Em 01/07/2016,  “O Xadrez da volta da doutrina de segurança nacional
O decreto no. 8.793, de 29 de junho passado, que fixa a Política Nacional de Inteligência é o passo mais ousado nessa direção (http://migre.me/ufH0w).
Assinado pelo interino Michel Temer e pelo Chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) Sergio Westphalen Etchegoyen, o decreto visa criar uma política para armar o país contra ameaças trazidas por esses tempos cibernéticos e de terrorismo.
Contempla a proteção de forças de conhecimento nacional, medidas contraespionagem cibernética, contraterrorismo etc. Mas confere poderes e atribuições que podem facilmente resvalar para o autoritarismo e para o desrespeito aos direitos humanos. E isso, em uma etapa da vida nacional de radicalização e de instrumentalização política dos instrumentos de investigação.
Confere ao GSI e à Política Nacional de Inteligência o poder de monitorar movimentos, manifestações, cooptar funcionários públicos para a função de segurança e até monitorar cientistas brasileiros no exterior.
Em 05/09/2016, o “Xadrez da volta das vivandeiras dos quartéis"
(...) Nas Olimpíadas, Temer nomeou o GSI responsável pela segurança, atropelando os responsáveis naturais, Ministro da Defesa ou da Justiça. O Chefe do Estado Maior conjunto sequer foi convidado para a abertura das Olimpíadas.
A segurança foi organizada pela burocracia das Forças Armadas – acantonada em Brasília – não pelas tropas de combate.
(...) A criação de Unidades Militares de Combate, seja na Amazônia, Haiti ou África, deixa claro o verdadeiro papel das Forças Armadas e os malefícios advindos de sua transformação em polícia. Há levantamentos internacionais mostrando que, nos países em que se tornaram polícia, foram sucateadas, com os equipamentos tecnológicos de ponta – para a defesa nacional – substituídos por investimentos em tanques, brucutus, algemas, granadas e revólveres.
A diluição desse modelo começou com as UPPs (Unidades de Policias Pacificadoras). No início, pareceu dar certo no Rio, devido ao fato do Secretário de Segurança José Mariano Beltrame ser da PF e respeitado por ela. Ainda no governo Dilma, houve financiamento do governo federal e a parceria com o Exército.
O Exército burocrático gostou, porque dá visibilidade, nome e prestígio à força. O Exército de combatentes – inteligência, ciência e tecnologia – sabia que seria o início do sucateamento, com a burocracia voltando a tomar conta.
Em 17/10/2016, “Xadrez das vivandeiras dos quartéis
Os fatos apontam para uma tendência cada vez maior de intervenção dos militares na vida nacional e, ao mesmo tempo, um desprestígio cada vez maior do poder civil.
Sinais recentes:
·      A entrega do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) a um militar da ativa, que passa a frequentar o coração do governo.
·      A tentativa do Ministro da Justiça de criar a figura do inimigo interno nas manifestações e em factoides sobre o Islã e colocar as FFAAs na repressão interna.
·      O convite da presidente do STF (Supremo Tribunal Federal) Carmen Lúcia, para que as Forças Armadas ampliem sua participação na segurança nacional.
·      A criação e utilização da Força Nacional de Segurança para outros propósitos.
(...) Por tudo isso, as perspectivas atuais são as seguintes:
1.     Permanece o risco da prisão de Lula, visando promover agitações populares que justifiquem o endurecimento do regime.
2.     Continua baixa a probabilidade de recuperação da economia, ainda mais com a combinação de ajuste fiscal rigoroso e ritmo lento de queda dos juros.
3.     Há uma probabilidade não desprezível de Temer ser despojado do cargo por conta dos julgamentos do TSE e pela desmoralização contínua de seu governo.
4.     Persistirá a tendência de ampliação da presença dos militares no governo, ao mesmo tempo em que se aprofunda a desmoralização do poder civil.
5.     Mesmo assim, qualquer ampliação da intervenção militar viria como retaguarda para um governo civil.

Peça 2 – o pacto com as Forças Armadas

Passado o impacto inicial com o anúncio da intervenção no Rio, começaram questionamentos fortes por toda parte. Não há um especialista sério, em matérias de segurança, capaz de endossar essa aventura.
Nem as pessoas de bom senso nas Forças Armadas, conforme se conferiu no depoimento ao Senador do General Eduardo Dias da Costa Villas Bôas, comandante das Forças Armadas, sobre a ocupação da Maré pelo Exército.
Além das cenas chocantes, que ele afirmou ter testemunhado, de soldados armados circulando entre crianças e senhoras, Vilas Boas enfatizou a falta de eficácia dessas ocupações. Foi só o Exército abandonar o local, para tudo voltar ao quadro anterior em poucos dias.
Por tudo isso, o que está em jogo provavelmente é o seguinte.
  1. As Forças Armadas entraram como álibi nessa história. Houve uma intervenção civil, que o governo Temer revestiu de militar no próprio decreto de criação. Além de nomear um general para comandá-la.
  2. Houve um acordo formal com as Forças Armadas, para não as envolver no policiamento de rua, ocupação de territórios ou combate frontal aos criminosos.
  3.  O papel das FFAAs será o de ajudar a fortalecer a ideia das ameaças internas e externas, permitindo ao governo avançar cada vez mais nas medidas arbitrárias.
  4. Em troca, haverá reforço em seu orçamento.

Peça 3 – as medidas de exceção injustificáveis

O jogo tornou-se totalmente claro com o anúncio de que o Ministro da Defesa – um mero coadjuvante de Sérgio Echtgoyen – iria requerer mandados coletivos de busca e apreensão no Rio, um claro ensaio à decretação do estado de sítio.
Mal saiu a notícia de que Michel Temer pretendia aplicar mandados coletivos de busca e apreensão no Rio de Janeiro, pelo Twitter procuradores – em geral críticos contra os “garantistas” – levantaram três pontos relevantes:
  • A ineficácia dessa estratégia de segurança;
  • Os riscos para os direitos humanos;
  • A existência de uma série de dispositivos na Constituição e no Código Penal, que poderiam ser utilizados pela segurança, sem a radicalização dos tais mandados coletivos.
De Luiz Lessa, procurador da República no Rio:
Intervenção militar não é licença de extermínio, se tal licença, por mais absurda que seja essa hipótese, fosse possível, a PMRJ já tinha acabado com a criminalidade do Rio, era só autorizar a matança, entregar a munição, a gasolina e os coletes à prova de bala.
De Vladimir Aras, responsável pela cooperação internacional da Procuradoria Geral da República:
Constituição, art. 5º, inciso XI: "a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, SALVO EM CASO DE FLAGRANTE DELITO ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;"
A intervenção federal não suspende garantias individuais. Entre essas garantias está o direito à inviolabilidade domiciliar. Se houvesse sido declarado o estado de sítio, seria possível fazer buscas coletivas, inclusive sem mandado judicial, como autoriza o art. 139, V, da Const.
Na jurisprudência, há casos de mandados individualizados contra Fulano, Beltrano ou Sicrano que foram invalidados por tribunais superiores por não terem especificado precisamente o local alvo da diligência, lembra @WSarai
Não apenas isso. Conforme explicava Aras,
Criminosos que ataquem as Forças Armadas ou que estejam na iminência de fazê-lo podem ser reprimidos com força letal, se preciso. Isto não depende de leis especiais nem decorre da intervenção federal. São mantos legais previstos no Código Penal e no CP Militar, como legítima defesa.
Por outro lado, se as Forças Armadas e a Polícia tiverem dados de inteligência de que em certo local (casa, igreja, escola, empresa etc) há armas, criminosos foragidos ou drogas (um crime em curso), não é necessário mandado judicial para entrada e busca, para prisão ou apreensão.
O que o STF (Supremo Tribunal Federal) fará em relação às medidas anunciadas?
Valendo a regra atual, nada.
A estratégia de Sérgio Etchgoyen será essa: à medida que se avance a tal operação, ousar mais medidas de arbítrio, testando a resistência das instituições nacionais.
Se não houver resistência, meterá a bota na jaca da Constituição. E não venham esses débeis civis do Supremo, da PGR e do Congresso reclamarem mais tarde.

(Publicado originalmente no site do Jornal GGN)