pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO. : A natureza do homem no Raso da Catarina
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quinta-feira, 29 de setembro de 2016

A natureza do homem no Raso da Catarina

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José Luiz Gomes



Uma das hipóteses levantadas pelo professor Alexandre Figueiroa, em sua tese de doutoramento em cinema, realizado na França, quanto à repercussão, naquele país, do chamado Cinema Novo brasileiro, devia, segundo ele, muito mais aos acordos ideológicos mantidos entre os cineastas brasileiros daquele período - para os quais a abordagem de temáticas sociais eram tão comuns - e os críticos franceses de esquerda, editores dos famosos Cahiers du Cinéma. Por outras vias - e possivelmente mais difíceis de entender - o sociólogo Pierre Bourdieu, por exemplo, como somos "induzidos" a formar um conceito sobre uma obra de arte ou como a tese das "preferências" ou "opções pessoais" ficam subvertidas num contexto social mais amplo e, de certa forma, determinante. 

Isso nos adverte sobre a necessidade de se ter, sempre, uma preocupação com as qualidades artísticas de um trabalho, que não apenas nossa afinidade,movida pelo "engajamento", procedendo uma análise com o equilíbrio necessário. Há, por exemplo, uma série de esteriótipos sobre os povos indígenas brasileiros, congelados no imaginário coletivo. Imagens e representações discursivas construídas e legitimadas pelas instituições. Estão aí os livros didáticos, as instituições museológicas, o sistema escolar, as comemorações do dia 19 de abril, quando os nossos filhos e netos chegam em casa enfeitados de índio, numa suposta homenagem ao seu dia.

Através de mensagens explícitas ou subliminares, consolida-se um discurso de povos atrasados, exóticos, selvagens, que precisam adaptarem-se ao processo civilizatório. Descaracteriza-se, assim, o caro conceito, para as ciências sociais, de relativismo cultural. A instituição escola é pedagogicamente infeliz na abordagem dessa questão. Como afirma a pesquisadora Vera Maria Candau, nunca é demais lembrar que, no nosso processo de colonização, a etnia indígena foi eliminada inclusive fisicamente. Num país tão multicultural como o nosso - onde os povos indígenas estão perdendo seus territórios, seus direitos e sua identidade cultural - torna-se urgente uma reflexão mais consequente sobre este assunto, sobretudo se concordarmos com o educador freiriano Peter Maclaren, que sustenta a tese de uma das maneiras mais torpes e perigosas de se estabelecer a discriminação nos dias atuais assenta-se no fato econômico.

A capilaridade política dos povos indígenas - por razões históricas - ainda é um pouco incipiente. Ate´recentemente, esses povos se reuniram em Brasília, para protestarem contra as medidas do atual governo, notadamente subtrativas de suas garantias constitucionais. A Constituição Federal de 1988, que servia como um parâmetro que nos asseguravam de alguns direitos, a julgar pelos inúmeros pronunciamentos de membros desse governo atual, parece que foi mesmo rasgada. Em tempos idos, durante o II Fórum de Museus realizados em Ouro Preto, Minas Gerais, tivemos a oportunidade de ouvir um representante de um desses povos proferir uma palestra sobre a experiência de preservação da memória do seu povo através de uma instituição de caráter museológico, organicamente concebida e materializada pela comunidade, sem a ingerência do aparelho de Estado ou de instituições acadêmicas. Este fato, possivelmente, talvez pudesse levar o museólogo Mário Chagas a concluir por uma instituição museológica "rebelde".

Nas instituições museológicas tradicionais, legitimadoras de um discurso acrítico e a-histórico sobre os povos indígenas, a abordagem do tema resume-se às informações pontuais, inibidoras, por consequência, de uma reflexão mais densa sobre o tema. Trata-se do tradicional lengalenga dos primeiros habitantes, que os homens caçam e as mulheres fazem beiju, acompanhados de alguns mapas difíceis de interpretar e, por vezes, referências anpassant sobre a sua organização social. O trabalho do fotógrafo Álvaro Villela, realizado no sertão da Bahia, rompe com essa mesmice. 

Na Exposição "A Natureza do Homem no Raso da Catarina", Álvaro Villela registra em fotografia o cotidiano dos índios pancararés, moradores do Raso da Catarina, região localizada no sertão da Bahia, uma das regiões mais áridas do país, paraíso e espaço étnico-social desses povos indígenas. É natureza bruta. Fauna e flora exuberantes, resistentes às intempéries ambientais. Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz, Manuel Correia de Andrade, Frederico Pernambucano de Mello são exemplos de escritores que se debruçaram em esmiuçar a vida do homem sertanejo, descrevendo-as em suas obras como homens de uma vida dura, áspera, agreste, nômade, arredia, combativa, de enfrentamento das adversidades. Como diria Câmara Cascudo - com quem deve concordar Frederico Pernambucano - dificilmente um homem da palha da cana tornar-se-ia um cangaceiro. 

Álvaro Villela seguiu à risca o propósito de fotografar os povos indígenas pancararés(Bahia) e Cariris Xocós(Alagoas), resgatando os elementos tão intimamente ligados à identidade desses povos: seu habitat...seu chão...seu cotidiano...suas tradições. São flagrantes que expõem a precarização da condição de existência desses povos indígenas e nos remetem, inexoravelmente, a uma reflexão mais aguçada as próprias condições de vida dos povos indígenas dos rincões sertanejos, marcados por intermináveis conflitos envolvendo o reconhecimento de suas terras, chegando ao limite do impensável: conflitos étnicos entre povos indígenas e comunidades remanescentes de quilombos. 

A luta pela sobrevivência desses povos indígenas, suas mais tradicionais manifestações culturais/religiosas e sua arte são magistralmente registradas nas lentes do fotógrafo Álvaro Villela. Há flagrante, inclusive do processo de aculturamento: um jovem índio ao lado de um fogão de lenha rodeado de panelas de alumínio e uma lata de óleo de soja industrializado. 


Crédito das fotos: Álvaro Villela, Exposição: "A Natureza do Homem no Raso da Catarina".

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