Amanda Massuela
O conhecimento é o principal instrumento para a construção de um mundo mais igual – e caso não seja aplicado para a libertação da consciência humana, servirá para reproduzir sistemas de opressão. A fala é da ativista e ex-ministra da Educação moçambicana Graça Machel, que na manhã desta quinta (16) convocou alunos e professores da Faculdade Zumbi dos Palmares, em São Paulo, a engajarem conhecimento, energia e capacidade de organização na luta contra a discriminação racial, a pobreza e a violência de gênero.
“A luta contra o apartheid parecia um monstro, um sonho irrealizável, mas eles se organizaram e viveram a manhã da liberdade. Disseram com convicção: freedom in our lifetime, ou seja, ‘liberdade ainda no nosso tempo de vida’. Pode levar 30 ou 50 anos, não importa, mas [essas mudanças] têm que acontecer ainda no vosso tempo de vida”, afirmou Machel, que aos 25 anos se juntou à Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) na luta armada pela independência do país.
Aos 73, é uma das mais importantes ativistas pelos direitos humanos do continente africano. Ex-professora, foi ministra da Educação do governo moçambicano entre 1965 e 1979, período no qual elevou para mais de 80% a taxa de crianças em idade escolar matriculadas em instituições de ensino.
Sua experiência como educadora e defensora dos direitos das crianças levou o então secretário-geral da ONU Boutros Boutros-Ghali a convidá-la, em 1993, para liderar um estudo inovador sobre o impacto de conflitos armados na infância – documento mais tarde conhecido como “relatório Machel”. Hoje, por meio da Graça Machel Trust, instituição que criou em Joanesburgo em 2010, lidera ações pela saúde, nutrição e educação infantil e pela autonomia econômica das mulheres.
“Sou parte de uma geração em África que lutou contra o colonialismo e o apartheid. Talvez hoje os vossos alvos pareçam difusos, não tão claros como eram os nossos, mas primeiro é preciso entender que, como seres humanos, não há absolutamente nada que nos distingue”, disse ela, dirigindo-se principalmente ao corpo discente da universidade, formado em sua maioria por alunas e alunos que se autodeclaram negros (90% deles, segundo a faculdade).
Ovacionada pela plateia que lotou o auditório, pediu que a juventude não apenas ocupe “instituições estabelecidas para oprimir”, mas que também promova transformações. “Esse processo pode ser lento, mas tem que ser o vosso alvo principal. Vocês têm tudo para tecer esse espaço coletivo de iguais”, disse. “Leiam livros, mas também libertem outros.”
Machel também mencionou a necessidade de reformulação dos sistemas de ensino, que “continuam a formar e a conduzir pessoas de acordo com as necessidades do mercado do século 20″. “Aqui e lá [Moçambique e África do Sul] temos milhares de jovens que saem das instituições de ensino, mas que estão totalmente mal equipados para o trabalho. Portanto a tarefa está aí: diminuir o gap entre educação e mercado de trabalho”.
Nascida em uma família de seis filhos na vila moçambicana de Manjacaze, ela mesma afirma ter tido a vida transformada pelas oportunidades de estudo proporcionadas pela mãe e pelos irmãos mais velhos: “A educação é o tesouro dos tesouros”, disse, lembrando-se de outras mulheres do seu vilarejo que não tiveram a mesma chance, e já muito jovens se casaram e tiveram filhos. “Sei que se o meu destino tivesse sido o mesmo eu também não existiria mais, assim como elas”.
Machel se casou em 1976, aos 31 anos, com o primeiro presidente de Moçambique, Samora Machel, com quem teve dois filhos. Tornou-se viúva dez anos depois, e em 1998 casou-se com o primeiro presidente negro da África do Sul, Nelson Mandela.
Em São Paulo para participar da conferência internacional Fronteiras do Pensamento, a ativista impôs como condição que sua passagem pela cidade incluísse uma visita à Zumbi dos Palmares, instituição comunitária de ensino superior que tem como foco a cultura, a história e os valores cultura negra – a primeira nesses moldes na América Latina.
Não foi a sua primeira vez no campus, que têm até uma placa em sua homenagem. Em 2014, recebeu ali o Troféu Raça Negra e participou da festa literária FlinkSampa. “O negro e o branco nascem iguais, homem e mulher nascem iguais, e quando chega o fim da vida morrem iguais. O mundo que nossa geração quer deixar para a de vocês é um mundo de iguais, e não de integrados.”
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
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