pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: Le Monde Diplomatique: Como a direita seduziu o eleitorado popular
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domingo, 26 de maio de 2019

Le Monde Diplomatique: Como a direita seduziu o eleitorado popular

Em um estado muito pobre como a Louisiana, manchado por vazamentos de petróleo, a maioria da população vota em candidatos que combatem os benefícios sociais e a proteção ambiental. Socióloga, Arlie Hochschild investigou esse paradoxo. Meses depois da publicação de seu estudo, Donald Trump ganhou com ampla vantagem as eleições na Louisiana
Uma história profunda, epidérmica, é a que inspira nossos ressentimentos, na linguagem dos símbolos. Ela elimina o julgamento, elude os fatos. Determina o que nos inspira. Ela permite que aqueles que se encontram em ambos os extremos do espectro político deem um passo atrás e explorem o prisma subjetivo através do qual o lado adversário apreende o mundo.
Eu quis reconstruir esta história para apresentar – de forma metafórica – as esperanças, os medos, o orgulho, a vergonha, o ressentimento e a ansiedade da vida das pessoas com quem deparei no caminho. Então a testei com elas para ter certeza de que achavam que ela era consistente com a experiência delas. Elas me garantiram que sim.
Como uma peça, ela se passa em vários atos.
Você espera pacientemente em uma longa fila que leva ao topo de uma colina, como em uma peregrinação. Você está no meio, entre pessoas todas tão brancas como você, todas de igual modo cristãs, algumas mais velhas, outras menos, a maioria delas do sexo masculino, às vezes graduadas, às vezes pouco ou nada qualificadas.
Do outro lado da colina se situa o sonho americano, o objetivo da viagem de cada um. Bem no final da fila estão as pessoas de cor – pobres, jovens ou velhas, a maioria sem diploma universitário. Olhar para trás lhe causa medo; elas são muitas a seguir você. Em princípio, você não as quer mal. Mas você esperou por muito tempo, trabalhou duro e, à sua frente, a fila mal se move. Você mereceria avançar um pouco mais rápido. Você aguenta pacientemente, mas está muito preocupado. Seus pensamentos estão voltados para aqueles que o precedem, em especial para aqueles que já alcançaram o topo.
O sonho americano é um sonho de progresso – a esperança de que você vai se dar melhor do que seus pais, que, por sua vez, já se esforçavam para se dar melhor que os deles. É um sonho maior que dinheiro e bens materiais. Por um salário miserável, você suportou trabalho escravo, demissões, exposição a produtos tóxicos. Você aguentou firme na prova de fogo. O sonho americano de prosperidade e segurança é apenas a justa recompensa por seus esforços, uma maneira de reconhecer o que você tem sido e o que você é – uma espécie de medalha de honra.
Faz cada vez mais calor e a fila continua não avançando. Parece até que ela está recuando. Você não recebeu um aumento por anos e não vai ser amanhã que terá a chance de alguém lhe conceder um. Na verdade, seus ganhos diminuíram constantemente nos últimos vinte anos, sobretudo se você não tem um diploma universitário e ainda mais se não completou o ensino médio. Todos os seus amigos seguiram o mesmo destino. A maior parte deles nem se incomoda em procurar um emprego decente, porque acha que é um tesouro fora do alcance de pessoas como eles.

Pactuar com os fura-filas?
Você se acomodou a essa situação porque não é do seu feitio reclamar. No fim das contas, você tem sorte. Você gostaria de ajudar mais sua família e sua igreja, porque é neles que coloca sua fé. Você gostaria que eles lhe agradecessem sua generosidade. Mas a fila continua não avançando. Depois de tanto trabalho duro, de tantos sacrifícios, você começa a se sentir preso numa armadilha.
Você pensa no que o enche de orgulho – a começar por sua moral cristã. Você sempre apreciou a probidade, a monogamia, o casamento heterossexual. Nem sempre foi fácil. Você mesmo sofreu uma separação, talvez até um divórcio. Os esquerdistas dizem que suas ideias são antiquadas, sexistas, homofóbicas, mas ninguém entende nada dos valores que eles afirmam defender. Falam de tolerância, mas você guarda na memória tempos melhores, nos quais, quando criança, começava seu dia na escola pública com a oração matinal e a saudação à bandeira – foi antes do “Em nome do Senhor” ser relegado à categoria de opção facultativa.
Olhe! Na sua frente, malandros estão se esgueirando. Você segue as regras; eles, não. À medida que eles progridem, você tem a impressão de que está perdendo terreno. Como eles ousam fazer isso? Quem são? Alguns são pretos. Por meio de programas de ação afirmativa colocados em prática pelo governo federal, eles têm acesso privilegiado a universidades, estágios, emprego, assistência social, refeições gratuitas. Mulheres, imigrantes, refugiados, funcionários públicos: onde isso vai parar? Seu dinheiro escorre num coador igualitarista que escapa a seu controle e aprovação. Você gostaria de ter as mesmas oportunidades quando precisou delas – ninguém pensou em oferecê-las a você em sua juventude, então não há razão para fazer com que os jovens de hoje possam desfrutar delas. Isso não é justo.
E Obama! O que diabos esse cara fez para chegar à Casa Branca? O filho mestiço de uma mãe solteira de baixa renda que se tornou presidente do país mais poderoso do planeta, isso era algo que você ainda não tinha visto. Em que posição o coloca o triunfo de um homem como ele, quando, ao mesmo tempo, lhe explicam que você é muito mais privilegiado? Que favores Barack Obama obteve para estudar em uma universidade tão cara quanto Columbia? Onde Michelle Obama encontrou dinheiro suficiente para estudar em Princeton e depois na Faculdade de Direito de Harvard, quando o pai dela era apenas um humilde funcionário do serviço de água? Nunca se viu nada assim. Certamente, foi o governo federal que pagou a conta. Michelle deveria ser grata por tudo que tem, em vez de ficar o tempo todo furiosa. Ela não tem direito algum de ficar com raiva.
As mulheres: outro grupo que passa impunemente na sua frente. Elas reivindicam o direito de ocupar os mesmos cargos que os homens. Ainda bem que seu pai não precisou se preocupar com a concorrência delas para conseguir emprego. E o que dizer dos funcionários públicos, recrutados em sua maioria entre mulheres e grupos de minorias? Pelo que você sabe, eles são muito bem pagos para fazer muito pouco. Veja o caso dessa assistente executiva do Departamento de Regulamentação: sem dúvida, ela desfruta de horários confortáveis e de um cargo garantido para a vida inteira, tendo, diante de si, a perspectiva de uma bela aposentadoria. No momento, ela provavelmente está postada de forma indolente à frente do computador fazendo compras on-line. O que a torna merecedora de favores a que você nunca terá direito?
O mesmo vale para os imigrantes. Com um visto ou um green card na mão, filipinos, mexicanos, árabes, indianos ou chineses passam na sua frente, quando não acabam furando a fila. Bem recentemente, você viu homens parecidos com mexicanos construindo o acampamento que vai abrigar encanadores filipinos do grupo Sasol. Você vê que eles trabalham duro e respeita isso, mas não os perdoa por expulsarem a força de trabalho americana aceitando baixos salários.
Os refugiados? Quatro milhões de sírios fugiram da guerra e do caos, parte deles em direção à costa grega. O presidente Obama decidiu acolher 10 mil em território americano [dos quais dois terços são mulheres e crianças]. Todo mundo sabe que nove entre dez refugiados são homens jovens, possivelmente terroristas, determinados a abusar da sua educação na fila e levar uma boa vida com o dinheiro dos seus impostos. Você não sofreu inundações, derramamentos de óleo e poluição química? Há dias em que parece que você mesmo é um refugiado.
Não cabe ao pelicano-pardo zombar de você batendo suas largas asas cobertas de óleo. Essa típica ave da Louisiana, o símbolo oficial do estado, aninha-se em mangues ao longo da costa. Há muito tempo ameaçada de extinção pela poluição química, ela havia se recuperado a ponto de ser retirada da lista de espécies ameaçadas em 2009 – apenas um ano antes do terrível derramamento de óleo causado pela British Petroleum (BP). Para sobreviver, ela precisa de peixes não contaminados, água livre de óleo, manguezais limpos, costas protegidas da erosão. É por isso que o pelicano-pardo também passa na sua frente na fila. Ainda assim, é apenas um pássaro!
Negros, mulheres, imigrantes, refugiados, pelicanos, todo mundo vai passando na frente embaixo do seu nariz. Mas são pessoas como você que fizeram a grandeza da América. É preciso reconhecer: os fura-filas irritam você. Eles desrespeitam as regras do jogo. Você não os carrega no coração e não vê por que deveria se desculpar por isso.
Você não é desprovido de compaixão. Mas sua compaixão não poderia incluir todos os fraudadores que se acotovelam à sua frente. Você é vacinado contra a ideia de ter de ser simpático. As pessoas nunca param de reclamar. O racismo. As discriminações. O sexismo. Impuseram a você histórias de negros oprimidos, mulheres dominadas, imigrantes explorados, homossexuais perseguidos, refugiados desesperados. Em algum momento, você acha que é hora de fechar as fronteiras da simpatia humana – especialmente quando isso beneficia pessoas que podem prejudicá-lo. Você suportou mais do que sua parcela de sofrimento, sem nunca choramingar.
A partir daí, você fica desconfiado. Se todas essas pessoas se permitem disputar espaço com você na fila, é porque alguém importante as está apoiando. Quem? Normalmente, há um homem que controla a fila, que a percorre de cima a baixo, garantindo que todos permaneçam em seu lugar e que o acesso ao sonho americano seja feito em condições equitativas. Esse homem é Barack Hussein Obama. Sim, mas olha só: em vez de repreender os espertinhos, ele os saúda amigavelmente, demonstrando-lhes uma simpatia que ele evidentemente não sente de forma alguma por você. Ele está do lado deles. Aquele que tem a responsabilidade de regular o avanço da fila quer que você pactue com os fura-filas.
Você se sente traído. Suas defesas agora estão bem ativadas. Esse presidente não sabe nada do imenso orgulho de ser americano. Ser americano é uma honra que você mais do que nunca tem de defender, dada a lentidão da fila do sonho americano e a insolência dos comentários feitos sobre brancos, homens e cristãos. Hoje, basta ser ameríndio, mulher ou gay para atrair a simpatia da opinião pública. Esses movimentos sociais deixaram apenas um grupo para trás deles: o seu.
Você pode não ter uma casa grande, mas isso não o impede de se orgulhar de seu país. Qualquer um que ataque os Estados Unidos também estará atacando você. E, se você não pode mais se orgulhar dos Estados Unidos por meio de seu presidente, resta-lhe se juntar àqueles que, como você, se sentem estrangeiros em seu próprio país.

A máquina de sonhos está sem sistema
Entre as imagens dos negros enraizadas no espírito das pessoas que conheci, uma estava faltando: a de uma mulher ou de um homem que, como eles, apenas esperava a justa recompensa por seus esforços. A história profunda contada por brancos, cristãos, idosos ou reacionários da Louisiana respondia, no entanto, a um trauma real. De um lado, o ideal nacional do sonho americano, isto é, do progresso. De outro, uma dificuldade crescente para progredir.
Para a população “inferior”, ou seja, nove em cada dez americanos, a máquina dos sonhos instalada no lado invisível da colina não funciona mais, desativada pela automação, pelo deslocamento de empresas para outros países e pelo poder exorbitante das multinacionais sobre sua força de trabalho. Dentro desse grupo muito grande, a competição entre brancos e não brancos tornou-se cada vez mais acirrada – seja pelo emprego, seja por um lugar na sociedade ou pelos auxílios.
O fracasso da máquina dos sonhos remonta a 1950. As pessoas nascidas antes dessa data viram suas rendas crescer à medida que envelheciam Para aquelas nascidas depois, é o contrário.

*Arlie Hochschild é socióloga da Universidade da Califórnia em Berkeley. Autora de Strangers in Their Own Land: Anger and Mourning of the American Right [Estranhos em sua própria terra: raiva e luto da direita norte-americana], The New Press, Nova York, 2016, de onde este texto foi adaptado.

(Publicado originalmente no site do Le Monde Diplomatique Brasil)


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