A antropóloga Lélia Gonzalez é das vozes que desconstrói o mito da democracia racial (Arte Andreia Freire/Revista CULT)
Minha pele não é retinta. Tenho a cor da miscigenação brasileira, que tantas vezes foi utilizada para reafirmar o mito da democracia social. “Você precisa escrever sobre isso. Precisa falar sobre colorismo”, declarou Sueli Carneiro da última vez que nos encontramos. E se Sueli declara, a gente obedece.
Colorismo significa, de maneira simplificada, que as discriminações dependem também do tom da pele, da pigmentação de uma pessoa. Mesmo entre pessoas negras ou afrodescendentes, há diferenças no tratamento, vivências e oportunidades, a depender do quão escura é sua pele. Cabelo crespo, formato do nariz, da boca e outras características fenotípicas também podem determinar como as pessoas negras são lidas socialmente. Pessoas mais claras, de cabelo mais liso, traços mais finos podem passar mais facilmente por pessoas brancas e isso as tornaria mais toleradas em determinados ambientes ou situações.
É isso. Mas não é só isso. Poder ser vista como branca, ou melhor, como não negra, me permitiu oportunidades que provavelmente eu não teria se tivesse a pele mais escura, como ocupar um cargo de coordenação em um colégio europeu, de elite, onde um dia precisei argumentar fervorosamente que era uma mulher negra e que essa era uma afirmação importante. Mas não se pode perder de vista que na cidade onde vivo, São Paulo, empregos subalternos, o trabalho doméstico, os presídios têm a minha cor de pele.
Tarefa difícil essa de escrever sobre colorismo, que certamente não se esgota neste texto. “Como determinar a cor se, aqui, não se fica para sempre negro e/ou se ‘embranquece’ por dinheiro ou se ‘empretece’ por queda social?”, perguntou certa vez a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz. Para falar sobre colorismo precisamos considerar classe, escolarização e outros marcadores sociais da diferença. E uma breve genealogia do termo pardo pode ser útil. Nos memes de redes sociais, pardo é papel, não gente. Mas o termo se refere a pessoas desde o Brasil colonial, com múltiplos usos e significados.
No século 17, era utilizado em São Paulo para designar indígenas escravizados ilegalmente. Já no Nordeste açucareiro do mesmo período, onde africanos eram a maior parte da população, tendia a ser sinônimo de mestiçagem, ou do fruto da união entre europeus, africanos e indígenas. Mais tarde, no Sudeste, o termo aparece não só como referência à mestiçagem, mas também como sinônimo de pessoa livre, independentemente da cor de pele. O termo pardo no Brasil Colônia, portanto, indicava, além da cor de pele, o status social de pessoas não brancas livres, em um universo escravista. Segundo Hebe Mattos, o termo era uma possibilidade de diferenciação social, variável conforme o caso. “Assim, todo escravo descendente de homem livre (branco) tornava-se pardo, bem como todo homem nascido livre que trouxesse a marca de sua ascendência africana – fosse mestiço ou não”, escreveu a historiadora.
Da mesma forma, os termos preto e negro também apresentavam diferenças semânticas no período escravocrata: negro era o escravo insubmisso, e preto, o cativo fiel. Mas é possível perceber variações de significados em diferentes períodos: até a primeira metade do século 19, crioulo era exclusivo de escravos e forros nascidos no Brasil, preto designava africanos.
Os censos evidenciam, no quesito cor, como essa semântica é negociada no Brasil de forma complexa, muitas vezes intencionalmente confusa. O primeiro e o segundo censos do país, em 1872 e 1890, registraram a população preta, branca e mestiça; no de 1872 acrescida à informação da condição de escravo ou livre. Nos censos de 1900, 1920 e 1970, o item cor foi retirado. Diante da constatação de que o Brasil era um país mestiço e negro, o terceiro e quarto censo simplesmente deixaram de registrar a informação sobre a população, assim como o primeiro censo do regime militar, quando se reforçava a ideia de homogeneizar o país. No censo de 1950, a população foi distribuída entre brancos, pretos, amarelos e pardos. Indígenas não possuíam uma categoria classificatória. Em 1960, indígenas deveriam ser declarados como pardos. Em 1980, havia uma explicação para pardos: “mulatos, mestiços, índios, caboclos, mamelucos, cafuzos etc.”.
Em 1976, o IBGE fez a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio em que deixou a categoria cor como uma pergunta aberta. Cento e trinta e seis cores diferentes foram registradas, que iam da acastanhada à vermelha.
Esse uso flexível e maleável na cor que se observa no Brasil desde o período da escravidão, tão explicitado na pesquisa de 1976, está relacionado à imagem negativa da mestiçagem propagada explicitamente até a década de 1930, seguida pela extensa propaganda oficial do mito da democracia racial. Desde o século 19, teóricos das raças enalteciam “tipos puros” e colocavam a miscigenação como sinônimo de degeneração racial e social. O termo eugenia, criado em 1883, propagava a visão de que as capacidades humanas estavam exclusivamente ligadas à hereditariedade. A criminalidade, por exemplo, era vista como fenômeno físico e hereditário. Raça se tornou, nesse período, um conceito para discriminar e hierarquizar povos. Na metade do século 20, geneticistas e biólogos moleculares afirmaram que as raças puras não existem cientificamente. Mas pouco antes disso, na década de 1930, ganhou relevância no Brasil uma interpretação social, e não biológica, das relações raciais brasileiras. Gilberto Freyre afirma que a miscigenação teria acomodado conflitos raciais no Brasil, corrigindo a distância social entre a casa-grande e a senzala.
Lélia Gonzalez é das vozes que desconstrói o mito da democracia racial denunciando que o sistema escravista-patriarcal brasileiro não se constitui sobre bases harmônicas, mas na violência racial e sexual que se reproduz desde a colonização na sociedade brasileira. Uma década depois, Sueli Carneiro cunha o “estupro colonial” da mulher negra pelo homem branco como as bases para a fundação do mito da cordialidade e da democracia racial brasileira.
O movimento negro vem buscando conscientizar quem sofre discriminações por sua aparência física e origem racial – seja quem se declara preto ou pardo ao IBGE – em torno de uma mesma identidade racial de negro. “Trata-se, sem dúvida, de uma definição política embasada na divisão birracial ou bipolar norte-americana, e não biológica. Essa divisão é uma tentativa que (…) remonta à fundação do Movimento Negro Unificado, que tem uma proposta política clara de construir a solidariedade e a identidade dos excluídos pelo racismo à brasileira”, explicou o antropólogo Kabengele Munanga. Da mesma forma, o movimento de mulheres negras, que nasce dentro do movimento negro, busca conscientizar mulheres, desde a década de 1980, de sua identidade de mulher negra.
Como já escreveu tantas vezes Sueli Carneiro, o projeto em curso no Brasil ainda é o de uma hegemonia branca. Ele opera pela exclusão e a violência contra pessoas não brancas, especialmente as negras e indígenas. No imaginário social, este projeto também aparece em uma leitura de passado que omite a violência e a resistência à escravidão; encoberta as estratégias de branqueamento e do silenciamento de vozes e memórias da população negra. O mito da democracia racial branqueava negras e negros miscigenados. É importante, ao falarmos sobre colorismo, não cometermos o mesmo erro. Afinal, a quem isso poderia interessar? Como escreveu Lélia “(…) a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha etc. Mas tornar-se mulher negra é uma conquista”.
(Publicado originalmente no site da revista Cult)
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