Glenn Greenwald, Betsy Reed
COM A POSSE do presidente Donald Trump, o FBI assume uma importância e uma influência que não tinha desde a morte de J. Edgar Hoover em 1972. Por isso, a série As regras secretas do FBI, publicada pelo The Intercept e baseada em um grande vazamento de documentos confidenciais do FBI que são procurados há muito tempo, é tão importante: ela esclarece os vastos e pouco compreendidos poderes da agência de segurança, especialmente no que se refere a sua capacidade de monitorar dissidentes e travar uma guerra doméstica contra o terrorismo, no início de uma era destinada a ser marcada por protestos veementes e pela repressão por parte de um Estado reacionário.
Para entender como o FBI toma decisões sobre assuntos como a infiltração em organizações políticas ou religiosas, defensores das liberdades civis processaram o governo para obter acesso a manuais fundamentais do FBI, mas graças a um poder judiciário altamente subserviente dos interesses do governo, essas tentativas foram em grande parte frustradas. Como a divulgação dos manuais é de evidente interesse público, The Intercept está publicando uma série de reportagens com as versões comentadas dos documentos obtidos.
Trump valoriza a lealdade a ele acima de qualquer outra qualidade, por isso, certamente não se esquecerá das poucas entidades que se dedicaram ou desempenharam um papel importante em sua vitória, como o FBI. Um dos aspectos mais estranhos da eleição presidencial dos EUA de 2016, e talvez o que terá mais graves consequências, foi a guerra política encoberta entre a CIA e o FBI. Enquanto o alto-escalão da CIA se posicionava veementemente em defesa da candidata do Partido Democrata, Hillary Clinton, certas facções do FBI apoiavam agressivamente o então candidato pelo Partido Republicano, Donald Trump. A própria Hillary Clinton responsabilizou o diretor do FBI, James Comey, por sua derrota, devido a uma carta enviada por ele ao Congresso na semana que antecedeu a eleição. (A carta reacendeu o debate quanto ao uso ilegal do servidor de e-mails privado de Hillary Clinton.) Alguns integrantes da unidade de Nova York do FBI ficaram enfurecidos por Comey ter se recusado a indiciar Clinton, e agentes amargurados abarrotaram o republicano e apoiador de Trump Rudy Giuliani com vazamentos de informações prejudiciais à imagem de Clinton. Portanto, é provável que os 35 mil funcionários do FBI sejam protegidos e fortalecidos. A decisão de Trump de manter Comey – menosprezando todos os outros oficiais de alto escalão do governo – sugere que isso já tenha começado a acontecer.
Quando aliados ao evidente desdém de Trump à dissidência no país — o presidente dos EUA venera figuras autoritárias, defendeu a repressão à liberdade de imprensa e propôs a perda de nacionalidade por queima da bandeira nacional —, os poderes designados ao FBI em relação ao ativismo político nacional estão entre as maiores ameaças enfrentadas pelos americanos. Trump também deve expandir os poderes das agência de segurança no que se refere a vigilância de setores da sociedade que considera suspeitos e negar a eles seus direitos em nome da luta contra o terrorismo, como já fez com a odiosa restrição à imigração de cidadãos de sete países majoritariamente muçulmanos. Portanto, entender como o FBI interpreta os limites legais de seus poderes, neste contexto, é mais importante do que nunca. Até o momento, no entanto, as regras que regem o órgão têm sido em grande parte mantidas em sigilo.
As publicações de hoje são resultado de meses de investigação e pesquisa por parte de nossa equipe, e planejávamos publicar esses artigos e documentos qualquer que fosse o resultado da eleição presidencial de 2016. A publicação desses documentos é de interesse da sociedade independentemente de quem ocupa a Casa Branca. Mas a vitória de Trump e as circunstâncias específicas que ela cria tornam a publicação desses documentos ainda mais urgente.
Após a Comissão Church do Congresso investigar em 1976 os excessos do FBI de Hoover, em particular o infame programa COINTELPRO – em que agentes abordavam e subvertiam grupos políticos que consideravam ameaçadores, incluindo manifestantes contra a guerra, nacionalistas negros e ativistas de direitos humanos –, uma série de reformas foram decretadas para restringir os poderes domésticos do FBI. Conforme foi amplamente documentado em reportagens do The Intercept e de outros veículos, com a desculpa da guerra contra o terrorismo, o FBI se utilizou de diversas táticas reminescentes dos abusos do COINTELPRO – incluindo, por exemplo, inúmeras tentativas de aliciar muçulmanos inocentes para participarem de esquemas terroristas falsos preparados pelos próprios informantes do FBI. As reportagens do The Intercept sobre esses documentos mostram como o FBI vagarosamente transformou as normas e restrições implementadas após os escândalos dos anos 70, abrindo a porta para uma nova onda de violações das liberdades civis. Ao ser questionado sobre essa crítica, o FBI ofereceu a seguinte declaração:
Todas as políticas do FBI são escritas para que o FBI aplique suas ferramentas legais de forma consistente e adequada para avaliar e investigar ameaças criminais e de segurança nacional à nossa nação. Todas as nossas competências e técnicas são baseadas na Constituição, na lei e nas diretrizes da Procuradoria-Geral. As políticas e normas do FBI são auditadas e cumpridas por meio de um mecanismos interno de conformidade rígido, assim como um supervisionamento robusto do Inspetor-Geral e do Congresso Nacional. As avaliações e investigações do FBI estão sujeitas a revisões sérias e foram desenvolvidas para proteger os direitos de todos os cidadãos americanos e a segurança de nossos agentes e fontes, agindo dentro dos limites da Constituição.
Fora os documentos e fatos sobre como o órgão opera na realidade, isso pode parecer tranquilizador. Mas para julgar como o órgão adere a esses compromissos abstratos, é necessário ler suas normas e regras bizantinas – o que é impossível dado o grau de sigilo do FBI. Graças ao nosso acesso a esses documentos – que incluem as normas de governança do FBI, conhecida como DIOG, e diretrizes de política sigilosas para casos de operações antiterrorismo e gestão de informantes confidenciais –, The Intercept pôde compartilhar como o FBI interpreta e usa seu enorme poder.
Por exemplo, os agentes do órgão podem decidir que uma organização universitária não é “legítima” e, portanto, não tem direito a proteções para liberdade de expressão; buscar informações depreciativas sobre possíveis informantes, sem ter qualquer base para acreditar que estejam envolvidos com atividades ilegais; usar o status de imigração de uma pessoa para pressioná-la a colaborar e ajudar a deportá-la quando não for mais útil; conduzir “avaliações” de indivíduos por meio de inúmeros métodos investigativos abusivos, sem base para suspeitar de qualquer irregularidade; exigir que empresas forneçam dados pessoais sobre indivíduos por meio de cartas de segurança nacional mesmo sem a competência jurídica para fazê-lo; espalhar um exército de informantes pela internet, infliltrando-se em diversas salas de bate-papo; perfurar paredes de casas, e muito mais. O FBI ofereceu diversas justificativas para essas táticas. Mas os documentos divulgados e nossas reportagens expõem uma burocracia que precisa de muito mais transparência e supervisão.
Um dos documentos também contém uma alarmante observação sobre as forças policiais americanas, mesmo sob os olhos do próprio FBI. Os oficiais da agência estavam tão preocupados com o fato de muitas das forças policiais estarem vinculadas, em alguns casos até mesmo povoadas por, a nacionalistas e supremacistas brancos, que julgaram necessário criar certas políticas para o compartilhamento de informações com elas. Essa notícia chega em um momento preocupante, já que as agências de segurança do país estão entre as poucas facções institucionais que apoiaram Trump, e o fizeram de forma praticamente unânime. A campanha de Trump defendeu maior liberdade para uma força policial já fora de controle — “Vou restaurar a lei e a ordem em nosso país”, esbravejou o então candidato ao aceitar a indicação do Partido Republicano — e, agora, os grupos mais fiéis a Trump são aqueles que possuem o monopólio sobre o uso da força policial, muitos deles repletos de animosidades raciais.
As reformas da Comissão Church foram discutidas publicamente e implementadas de forma democrática, após o medo generalizado dos abusos constantes por parte do FBI, divulgados por corajosos jornalistas, como Seymour Hersh. É simplesmente imperdoável que essas proteções sejam destruídas às escuras, sem nenhum debate ou supervisão democrática.
Ao entrarmos na era Trump, com um Procurador-geral indicado que não esconde seu desprezo pela liberdade de imprensa e um presidente que vai ainda além disso, uma das armas mais importantes para garantir liberdades civis fundamentais e impor a indispensável transparência é um jornalismo que exponha as informações que o governo deseja manter em segredo. Exatamente por esse motivo, é certo que o jornalismo será atacado de forma ainda mais orquestrada do que foi nos últimos 15 anos. Os reveladores documentos do FBI que se encontravam sob segredo e agora compõem as reportagens do The Intercept demonstram por que a proteção da liberdade de imprensa é mais importante do que nunca.
(Publicado originalmente no site do Intercept Brasil)
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