Não sou chegado a teorias conspiratórias. Acho que foi Lee Oswald quem matou JFK, que Neil Armstrong pisou na Lua, Eva Braun morreu em 1945 e Elvis Presley deu o último suspiro em 1977.
Recusar fantasias verossímeis ou delirantes não me impede, todavia, de perceber sinais que contradigam meus mal-ajambrados diagnósticos e prognósticos. Não profetizo mais um golpe de Estado no país que cultiva com capricho o golpismo. Mas que suas sementes têm sido plantadas, ah, isso têm.
Em fevereiro, O Globo especulou sobre a queda do presidente a ser eleito em outubro. Eis a abertura da reportagem “Para analistas, novo governo terá pouco tempo”: “A não aprovação da reforma da Previdência este ano redobra a responsabilidade do próximo presidente, que, se não viabilizá-la rapidamente, verá sob risco a continuidade de seu mandato. Essa é a avaliação consensual entre seis economistas ouvidos pelo GLOBO”.
Uma leitura possível da declaração identifica chantagem do dito mercado: caso não imponha a reforma previdenciária nos termos preconizados pelo empresariado graúdo, o governo vindouro cairá.
Com a naturalidade de quem conta não ter encontrado na livraria o livro desejado, a economista-chefe da XP Investimentos, Zeina Latif, sentenciou: “O custo-benefício de aprovar a reforma para o governo seguinte é definir se ele terminará o mandato, ou não. Sem a reforma, podemos ter uma reviravolta no ambiente macroeconômico, com mais rebaixamentos por agências de risco, descumprimento de amarras constitucionais que, no limite, podem comprometer o próprio mandato”.
Uma leitura possível da declaração identifica chantagem do dito mercado: caso não imponha a reforma previdenciária nos termos preconizados pelo empresariado graúdo, o governo vindouro cairá.
Na semana passada, o jornalista Ricardo Noblat tuitou: “Um ministro muito próximo do presidente Michel Temer duvida que haja eleições em outubro próximo. Acha que o agravamento do quadro de tensão política no país não permitirá”.
Noblat não nomeou o ministro duvidoso.
Dois dias antes, Temer havia supliciado a história, ao recapitular o golpe de 1964 e a ditadura que o sucedeu: “Em 64 novamente o povo se regozijou, porque, novamente, uma centralização absoluta do poder que, mais uma vez, durou de 64 a 88. É interessante quando se diz ‘ah, mas não houve golpe de Estado. Houve um desejo de centralização’. A ideia do povo era de que deveria haver uma concentração do poder, como houve nesse período todo”.
Falar sobre o passado é também se pronunciar sobre o presente. Ao ser golpeado, ao contrário do que sugeriu o inquilino do Jaburu, o presidente João Goulart preservava popularidade expressiva.
Temer entende de golpes. Foi beneficiário do que depôs Dilma Rousseff, sob a alegação de… do que, mesmo?… “pedaladas fiscais”. No feriado da Páscoa, amigos íntimos do vampiro da Sapucaí penaram na prisão, de onde logo saíram. Os negócios de Santos fedem mais do que as águas do porto.
Temer entende de golpes. Foi beneficiário do que depôs Dilma Rousseff, sob a alegação de… do que, mesmo?… “pedaladas fiscais”.
Tem mais. Juiz dos processos da Operação Lava Jato no Rio, Marcelo Bretas saiu-se com esta: “Não se sabe ainda a solução necessária pro Brasil, nem de onde ela virá, mas uma coisa é certa: ela não virá através de agentes públicos temporários, interessados em manter-se ou em investir-se no poder. Além de outros motivos, a sociedade está descrente em promessas”.
“Agente público temporário” talvez seja o eleito por sufrágio universal, feito o presidente da República. Em seu lugar, quem governaria? Um magistrado escolhido por magistrados?
Irrigam a cultura autoritária no cenário em que Jair Bolsonaro lidera as pesquisas presidenciais, quando o nome de Luiz Inácio Lula da Silva não aparece entre as opções de voto. O deputado de extrema-direita um dia se revelou: “Não há a menor dúvida [de que fecharia o Congresso se chegasse ao Planalto]. Daria golpe no mesmo dia”.
Alguém supõe que o capitão linha-dura mudou?

 Jejum

O golpismo insinuado ou exposto coincide com o tempo de dois episódios sinistros. Um, o atentado a tiros contra ônibus da caravana do ex-presidente Lula. Outro, a sordidez da reação, ou não reação, à investida. Previsível, mas não menos insultuoso, Bolsonaro cocoricou: “O Lula quis transformar o Brasil em um galinheiro e agora está colhendo ovos pelo Brasil todo”. Geraldo Alckmin prescindiu das afetações de bom moço: “Acho que eles estão colhendo o que plantaram”. Lula e seus correligionários seriam, no olhar do governador de São Paulo, corresponsáveis pelo crime.
Inverter papéis é expediente manjado. Em agosto de 1954, houve quem atribuísse a Carlos Lacerda parte da culpa pela morte do major-aviador Rubens Vaz, assassinado a bala quando protegia o jornalista de oposição.
Insatisfeitos em somente babar na gravata, tamanho o ódio nutrido contra quem pensa diferente, falangistas disseminaram invencionices e boatos, imputando aos petistas os disparos contra a caravana do PT. Das dez notícias mais compartilhadas no Facebook sobre o ataque, seis eram falsas ou sem lastro factual.
Portanto, não eram notícias, e sim logro propagandístico.
A mentira não prosperaria se inexistissem mentes dispostas a se fiar nela e retransmiti-la. É a mesma gente que tentou enxovalhar a memória de Marielle Franco com calúnias e empulhações _hoje os assassinatos da vereadora e do motorista Anderson Gomes completam três semanas; ignora-se quem os matou e quem mandou matá-los.
Na crônica dos horrores que Marielle combatia, o ajudante de pedreiro Davidson Farias de Sousa foi morto quinta-feira na Rocinha. Alvejaram-no nas costas, quando ele segurava no colo o filho de seis meses. O bebê caiu, sem se ferir gravemente. A família sustenta que o autor do disparo foi um policial militar.
PMs também são mortos. A soma de policiais assassinados, no Estado do Rio, rompeu a casa das três dezenas neste ano. Eles são tratados como bucha de canhão. Pagam pela desastrosa política de “guerra às drogas” e por negligências temerárias.
A sorte de Dallagnol é que seu jejum não mira determinados políticos e partidos; do contrário, à espera de punição, morreria de fome.
Enquanto a deterioração social e a degeneração política se alastram, juízes, procuradores e organizações de direita pressionam o Supremo Tribunal Federal para obrigar a prisão de réus que _conforme estipula literalmente a Constituição_ não são considerados culpados antes de decisão judicial definitiva.
Trocando em miúdos, que ainda podem recorrer ou recorrem a instância superior. Hoje o STF julga o habeas corpus pedido por Lula, condenado no processo do triplex. A corte permitirá ou não a execução imediata da pena do ex-presidente.
A Constituição pode estar errada. Mas a prerrogativa de modificá-la é de representantes eleitos pelo voto popular, e não de onze ministros do Supremo. É do Legislativo, e não do Judiciário.
O procurador Deltan Dallagnol exercitou o ativismo e prometeu jejuar: “4ª feira é o dia D da luta contra a corrupção na #LavaJato. Uma derrota significará que a maior parte dos corruptos de diferentes partidos, por todo país, jamais serão responsabilizados, na Lava Jato e além. O cenário não é bom. Estarei em jejum, oração e torcendo pelo país”.
O juiz Bretas respaldou-o na oração, mas dispensou o jejum. E tascou mesóclise: “Caro irmão em Cristo, como cidadão brasileiro e temente a Deus, acompanhá-lo-ei em oração, em favor do nosso País e do nosso Povo”.
A sorte de Dallagnol é que seu jejum não mira determinados políticos e partidos; do contrário, à espera de punição, morreria de fome.
Cruzadas, ensinam na escola, remetem à Idade Média.
O lobby pela permanência do auxílio-moradia a juízes e procuradores é enredo do Brasil laico no século 21.

Obscurantismo

Houve aqui uma época de trevas em que os valores da tolerância e da civilização sofriam uma goleada atrás da outra. Quer dizer, houve várias épocas assim. Mas, no período 1966-1968, uma coalizão inusitada reuniu velhos inimigos em torno de causas comuns: desafiar a ditadura, batalhar pela democracia, confrontar o obscurantismo.
Seus protagonistas, à luz do dia, foram os ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart e o antigo governador Carlos Lacerda. Na moita, o clandestino Partido Comunista Brasileiro associou-se ao trio ilustre.
A aliança era improvável. Lacerda mobilizara-se para impedir a posse de JK na Presidência. Maldissera-o como ladrão e “cafajeste máximo”. Foi o mais estridente arauto do golpe contra Jango em 1964. Num programa de TV, afirmou que a cabeça do então presidente Goulart carregava chifres.
Contra o ceticismo generalizado e ruidosas restrições de seguidores, os três estabeleceram um pacto batizado como Frente Ampla.
Juscelino fabricara uma legislação para vetar a presença de Lacerda na TV e no rádio. Jango buscou o estado de sítio para, confirmaram partidários seus, expulsar Lacerda do governo da Guanabara. Aliados de JK e Goulart amaldiçoavam Lacerda como “Corvo golpista”, “governador mata-mendigos” e incendiário de barracos de favelas (o “Nero da Guanabara”, vociferavam).
Contra o ceticismo generalizado e ruidosas restrições de seguidores, os três estabeleceram um pacto batizado como Frente Ampla. Nos anos pré-1964, Jango estivera mais à esquerda; JK, ao centro; Lacerda, à direita. Contra a ditadura, falaram línguas aparentadas. O governo cassara os direitos políticos de Goulart, que partiu para o exílio, e Juscelino. Com o fim da eleição presidencial direta, Lacerda moveu-se de vez para as trincheiras da oposição.
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Reprodução da capa do JB de 20 e 21 de novembro de 1966: “Juscelino recebeu a visita de Lacerda em seu apartamento”
foto: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional
Numa manhã de novembro de 1966, ele entrou no apartamento de JK em Lisboa. Levou-lhe de presente um disco de Chico Buarque com a canção A banda. Almoçaram no restaurante Tavares, outrora frequentado por Eça de Queirós. Emitiram uma declaração conjunta em defesa de “paz” e “liberdade”. Estimularam a construção de um “grande partido popular” para derrotar o “reacionarismo”.
Dali a dez meses, Jango recebeu Lacerda à tardinha em Montevidéu, no seu apartamento da calle Leyenda Patria. O visitante fumou cachimbo, e Jango, cigarros uruguaios, observou o repórter Carlos Leonam. Firmaram um manifesto se comprometendo a “lutar pela libertação e grandeza do Brasil”. Reivindicaram eleições diretas, atacaram “grupos externos e internos que sangram e exploram” os trabalhadores, esconjuraram a “usurpação total do poder civil”.
Titubeante, a Frente Ampla só viria a levar multidão para a rua em março de 1968, num protesto em São Caetano do Sul. Em seguida, no dia 28 daquele mês, um policial matou no Rio o estudante Edson Luís. Em 5 de abril, o ministro da Justiça, Gama e Silva, pretextou “subversão da ordem” e baixou uma portaria proibindo a frente. Em 14 de dezembro, Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda acabaram em cana.
Um bom começo seria agrupar quem condena agressões e atentados políticos. Quem reconhece as garantias constitucionais, como a de presunção de inocência.
A Frente Ampla não empolgou as massas. Leonel Brizola rejeitou o acordo com o “assassino de Getúlio Vargas”. Os lacerdistas mais radicais, sobretudo na caserna, romperam com seu mentor. As lideranças estudantis mais influentes não se encantaram com políticos que lhes pareciam tradicionais demais e moderados em excesso. A esquerda do PCB, empenhada na luta armada contra a ditadura, julgou vexatória a tabelinha com Lacerda.
Amanhã a extinção da Frente Ampla faz meio século. De sua breve existência, sobreviveu o exemplo: os mais encardidos antagonistas podem, em defesa do interesse público, conciliar em nome de princípios e ceder em questões acessórias.
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Reprodução de detalhe da capa de O Globo de 26 de setembro de 1967.
foto: reprodução/ acervo O Globo
Tal exemplo deveria inspirar quem hoje se opõe às regressões sociais e democráticas em curso no Brasil. Um bom começo seria agrupar quem condena agressões e atentados políticos. Quem reconhece as garantias constitucionais, como a de presunção de inocência. Quem se compromete com a soberania do voto popular _presidente se elege na urna, e não no tapetão. E, por isso, (des)qualifica Michel Temer como presidente ilegítimo.
A frente não exigiria a renúncia de candidaturas presidenciais. Na configuração ideal, seria mais ampla do que a rascunhada na semana passada, em Curitiba, no comício com a participação de Lula, Manuela D’Ávila e Guilherme Boulos, e no ato de segunda-feira no Circo Voador carioca.
Uma das premissas do movimento seria admitir que, sem unidade, novas goleadas virão. Uma delas, toc, toc, toc, poderia se chamar Bolsonaro presidente. Além da esquerda, segmentos de centro comporiam o frentão pró-democracia, contra a direita fascista. Na Campanha das Diretas, em 1984 e 1985, foi mais ou menos assim.
Como consequência de um terremoto na Bolívia, a terra tremeu anteontem em várias cidades do Brasil.
A natureza oferece metáforas ao transe nacional.
Foto em destaque: Reprodução de parte da capa do Jornal do Brasil de 6 de abril de 1968.