Wilson Gomes
No Brasil há hoje dois grupos de pessoas convencidas de que se Lula não fosse condenado e preso continuaria a ganhar eleições para sempre. O primeiro, naturalmente, é o dos lulistas, esta espécie de petista mais vinculado à figura de Lula do que propriamente ao Partido dos Trabalhadores. Eles não conseguem – na verdade, nem mesmo podem – abrir mão da convicção de que Lula é o preferido do povo. Parte da sua energia moral provém da certeza de que toda a Odisseia política brasileira recente consiste em uma bem-tramada e renhida perseguição ao ex-presidente, levada a cabo pelas desprezíveis forças das “elites”, que tomaram conta, já sem pudor, das mais influentes instituições do país, além dos canais e instrumentos tradicionais por meio dos quais se forma a opinião pública.
De fato, estes tempos de extrema polarização política viram nascer e prosperar um petismo visceral, alérgico a fatos, autoindulgente, incapaz de autocrítica e profundamente paranoico, para o qual só um conluio de todas as mais sombrias forças políticas, econômicas e mediáticas seriam capazes de abater um gigante como Lula. Mas que só conseguirá este intento se impedir que o nome de Lula esteja na cédula eleitoral.
O segundo grupo é o antipetismo. O antipetismo é um sentimento que nasce basicamente de um pavor que se origina na certeza de que Lula, que condensa toda a malignidade do mundo, exerce um fascínio irresistível sobre as massas. Se o lulista se alimenta do sentimento persecutório de que as forças sombrias das elites estão operando contra Lula e o PT, o antipetista encontra a energia de que precisa para o engajamento cívico e a participação política na paranoia da onipotência eleitoral de Lula. Motiva-lhe a certeza de que Lula precisava ser parado por alguma força externa às eleições, caso contrário a sua dominação sobre corações e mentes do povão continuaria produzindo os votos de que o PT se serve para continuar destruindo o país.
Um amigo me confessou recentemente que está tomando providências para ir embora do Brasil. O argumento definitivo é que não dá mais para viver em um país em que o primeiro colocado nas pesquisas é um ladrão condenado e na prisão. Ele sempre esteve convencido de que Lula ganharia a eleição de 2018, vez que no Brasil as pessoas são muito burras e bem que merecem ser governadas por corruptos e esquerdistas. Ele diz não aguentar mais viver no meio da gente ignorante e estúpida deste país.
Na verdade, ele não suporta mais a ideia de que a maioria das pessoas tenha tido preferências eleitorais divergentes das suas nas últimas quatro eleições presidenciais. Como não pode admitir que os outros tenham razões eleitorais diferentes das suas, e ao mesmo tempo estejam certas, ao meu amigo resta a explicação conveniente de que a maioria diverge dele porque é estúpida ou má. Ou, complementarmente, porque as forças malignas do petismo e do próprio Lula por anos corromperam a alma e embotaram o discernimento das maiorias eleitorais que lhes deram quatro eleições presidenciais.
Sim, vocês dirão, mas a figura do Lula eleitoralmente imbatível não é mais que uma fantasia persecutória da direita antipetista ou idealização imaginária da esquerda lulista. É muito provável que seja assim, mas isto não diminui em nada a sua importância. 75% da política tem a ver com imaginação, meus amigos. E faz já algum tempo que muita gente opera neste país com o fantasma do Lula invencível nas urnas, razão pela qual apressam-se em tomar providências para que isto não aconteça. Dito de outro modo, é a invencibilidade imaginada de Lula a base para que muitos tenham tomado “medidas preventivas”.
E os muitos a que me refiro aqui não é tão somente a arraia miúda do antipetismo, como o meu amigo, que se limita “apenas” a repassar fake news destinadas a “desmascarar” a maldade, a corrupção ou a hipocrisia de Lula e sua turma. Ou que bateu panelas histericamente para “acordar a consciência” dos homens de bem e para provocar os “adoradores de Lula”. Ou, enfim, que vestiu verde e amarelo e se juntou para ir às ruas e praças – as off-line e as digitais -, porque se ninguém fizer alguma coisa “essa escumalha nunca vai deixar o poder”.
Refiro-me sobretudo a pessoas em funções-chave na formação da opinião pública, que assumiram que reduzir a pó a imagem de Lula e do PT não é apenas compatível com a deontologia do jornalismo, mas um dever cívico que deve ser abraçado com entrega e paixão. Para muitos, uma redação que responde às necessidades do povo brasileiro há de ser uma redação que dedica a sua energia e a sua credibilidade a desmascarar Lula e o PT, à quebra a cadeia de encantamento que os ligavam às massas. E que se danem objetividade e imparcialidade quando elas forem incompatíveis com a missão ética que o jornalismo-de-desmascaramento-do-PT se autoconcedeu.
Refiro-me também a autoridades da Justiça que, autoconvencidos da absoluta excepcionalidade do risco de Lula reeleito, não hesitam em arregaçar as mangas e disputar a interpretação dos fatos não apenas para câmeras de televisão e citações de impressos, mas no Twitter, no Facebook e em grupos de WhatsApp, como se fossem garotos de Centro Acadêmico a trollar, insultar e repassar fake news, e não juízes, desembargadores, membros do Ministério Público ou da Suprema Corte da República.
Ou que, não satisfeitos com o ir a campo trocar insultos e pontificar sobre política e caráter, usam o seu próprio ofício para vazar seletivamente depoimentos e gravações, combinar sentenças, tomar açodadamente providências absolutamente customizadas ao caso e por aí a fora, tudo para impedir que os seus pesadelos políticos se tornem realidade. Não há outra explicação, a não ser esta, para o fato de que instituições do Judiciário, do MP, da Polícia Federal e até generais resolvam mandar às favas o recato, a discrição e as prudências que lhes impõe a função republicana quando o assunto é Lula.
Neste país, todo mundo de repente está jogando o jogo político e parece não mais haver quem se restrinja a narrar ou a arbitrar a partida. Juízes jogam, narradores jogam e até o público, que por muito tempo se limitou a assistir à competição, inclusive prestando-lhe muito pouca atenção, desceu em peso para o gramado. Eu tenho certeza de que a fantasia do Lula eleitoralmente invencível desempenha um grande papel neste frenesi de participação política e no sentimento de excepcionalidade e urgência que faz com que as pessoas tenham entrado em uma espécie de surto coletivo, que já dura alguns anos e que cresce aceleradamente em uma espantosa espiral de insanidade. As fantasias, meus amigos, também podem nos enlouquecer.
(Publicado originalmente no site da revista Cult)
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