pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: Não é neutralizando Lula que o novo vai emergir
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sexta-feira, 13 de abril de 2018

Não é neutralizando Lula que o novo vai emergir

                                       
Ivana Bentes                                                                                

Não é neutralizando Lula que o novo vai emergir
Lula nos braços do povo, em São Bernardo do Campo, no dia 7 de abril de 2018 (Ricardo Stuckert/Instituto Lula)

Uma das maiores falácias dos que “preferiram não se posicionar” ao longo desse processo, que começou com um impeachment ilegítimo e culminou ontem na prisão de Lula, é a tese de que o ex-presidente representa “o que tem que desaparecer” para nos liberar das “polarizações”; aquele que precisa “desaparecer” da cena política para liberar o novo. O que tem que desaparecer para que outras causas, pautas e formas da política possam emergir. Mas não é neutralizando Lula que o novo vai emergir.
A miopia desse tipo de argumento é justamente pensar de forma dualista e maniqueísta, como os que acharam em Lula o “bode expiatório” para todos os males da corrupção. Lula tornado signo do mal a ser extirpado, do antipetismo histérico; o mal a ser “neutralizado” dos ponderados, dos equilibrados, dos que querem “acelerar” a emergência do novo.
Para estes – com dilemas e conflitos edipianos -, é preciso matar o pai, o estadista, o rival. Matar o que transbordou as fronteiras. O problema seria o excesso de grandeza de Lula, que projeta sua sombra sobre o novo! No fundo, respiram aliviados com sua prisão. Agora sim podemos “zerar” o game. Sem Lula, os conservadores e as “esquerdas oprimidas” vão florescer. Sem Lula acabam as polarizações!
A estupidez é achar que Lula não é (e não foi) justamente uma das condições de possibilidade do novo que emergiu desse período, de uma democracia em convulsão.
Essa extraordinária jornada que fez o Brasil produzir novos sujeitos do discurso: da emergência da potência das culturas das periferias até os novos feminismos, do empoderamento dos movimentos sociais e culturais clássicos (MTST, MST) até o afrofuturismo, a cultura da diversidade pop e dos lugares de fala, as experiências dos novos bandos e movimentos urbanos vindos do interior do país como o Fora do Eixo, a possibilidade das mídias livres etc.
Há um Lula nessas novas lideranças jovens e negras que surgiram nas favelas, Marielles são parte desse processo e desse efeito-Lula. Não se trata de culto da personalidade, mas de processos históricos complexos e intricados em que Lula é um dos “hubs”, intercessores, ideia, conceito.
Lula e o processo em torno dele – Lula-ideia, Lula-conceito como intercessor e não “personalidade” e nem “messias” – foi e é a condição de possibilidade do novo, e não a sombra que “cala” e impede o devir.
Lula transcendeu o campo das esquerdas faz tempo. Não pertence mais ao PT, não pertence mais a um “partido”. Por isso a luta contra a sua prisão arbitrária e toda a sua jornada de vida já é uma dessas pedras fundamentais que, uma vez jogada, produz ondas cada vez mais amplas. Em um país desencantado, brutalizado, violentado, não podemos nos dar ao luxo (mesquinho) de rifar Lula.
Um fato significativo da sua embaixada provisória no sindicato em São Bernardo foi quando o PCO (Partido da Causa Operária), contrariando a decisão do próprio PT, dos advogados e o desejo do próprio Lula, tentou impedir que ele se entregasse à PF, num acontecimento fora de controle, tenso e que aponta para esse incontrolável da figura e legado de Lula. Lula não pertence mais a ninguém!
A mobilização de São Bernardo também apontava para novas forças: Guilherme Boulos com seus acampados da Ocupação Povo Sem Medo e o movimento dos sem teto como uma outra configuração pós-Lula de grande força. Isso porque há uma população pobre que precisa acreditar, que não pode se dar ao luxo do niilismo ou do desencanto. “Eu perdi a fé, que enfermidade mais terrível”, poderíamos ouvir de setores inteiros neste momento no Brasil.
Essa é a doença que viralizou: a descrença na política, o descrédito, a força tarefa de demolição de um campo que transmutou afetos e libido em ódio. Por isso é preciso acreditar, senão em Lula, pelo menos nos processos que desencadeou. De que folha em branco sairia o novo? Os movimentos mais potentes que emergiram no Brasil desde 2013 – as ocupações urbanas, os secundaristas, o movimento social das culturas (#ocupaMinc), a primavera das mulheres, a juventude negra em insurgência contra seu genocídio, não podem não crer.
A prisão como voo
Depois de 24 horas acompanhando tudo o que se passava pelas mídias livres, redes, por amigos próximos, pela Mídia Ninja, por chats de Telegram e Whatsapp, dava para sentir essa percepção ampliada, generosa, alargada de Lula, e desses processos pelos quais passamos se avolumando em uma velocidade vertiginosa.
Lula já transcendeu as bolhas e as esquerdas. A ficha caindo para artistas, ex-petistas, desencantados, familiares, gente que estava se lixando para tudo! A gente sabe que os processos são complexos, trazem milhares de erros, desvios, equívocos, e todas as críticas têm que ser feitas, mas nada disso neutraliza a grandeza e riqueza desse processo encabeçado por Lula.
A única hora em que realmente chorei sentida foi no momento em que, depois daquele longo cortejo pelas ruas de São Paulo, o minúsculo, frágil, monomotor da PF decolou de Congonhas, levando Lula já preso. Mas até essa imagem era paradoxal. No menor espaço do mundo, aprisionado, constrangido, Lula voava sobre a cidade que lhe deu tudo e que detonou um processo histórico e singular. A prisão já era um voo e agora desencadeará um campanha global, um #LulaLivre que pode ser apropriado e reivindicado por muitas causas e sujeitos.
A tese pernóstica defendida pelo Estadão no seu editorial pós-prisão vai nessa direção de “enterrar” Lula: “O Brasil já não suporta mais ter o seu destino atrelado ao de Lula da Silva. É preciso virar esta triste página da História e voltar os olhos para o futuro.” Mas não existe futuro na nossa frágil democracia que não passe pelo legado, pelos acertos e erros de Lula.
Lula não é a “causa suprema” ou suficiente de tantas transformações urgentes e necessárias, e nem o corpo que precisa ser silenciado, esquartejado, martirizado. Sua história de vida e sua trajetória política fazem parte de um processo que evidentemente e obviamente são muito maiores, mais amplo que um indivíduo. Intercessor é isso. Não tem fetiche, poderia ser outro, mas não foi. Coube a ele estar nesse lugar na história do Brasil, é fato consumado. Intercessor, detonador, com ele e apesar de seus erros.
O entendimento que o próprio Lula tem como “cavalo”, instrumento, processo atravessado por muitas forças em disputa é bastante claro e lúcido. Não se trata de nenhum delírio de onipotência e nem romantização. Pessoas e indivíduos são resultados e efeitos. Temos um efeito-Lula. “Dizer algo em nome próprio é muito curioso, pois não é em absoluto quando nos tomamos por um eu, por uma pessoa ou um sujeito que falamos em nosso nome. Ao contrário, um indivíduo adquire um verdadeiro nome próprio ao cabo do mais severo exercício de despersonalização, quando se abre às multiplicidades que o atravessam de ponta a ponta, às intensidades que o percorrem”, escreveu Deleuze em 1992.
A frase de Lula no seu discurso de despedida em São Bernardo do Campo expressa isso: “Eu não sou mais um ser humano, eu sou uma ideia. (…) E vocês todos se chamarão Lula”. Eis a grandeza do nome Lula e o que escapa por todos os lados.
O ex-presidente Lula, que tem pedido de habeas corpus julgado nesta quarta (4)
O ex-presidente Lula, que teve pedido de habeas corpus negado nesta quarta (4) (Ricardo Stuckert/ Instituto Lula)
A produção de fatos e as narrativas
A prisão de Lula deu um nó na narrativa midiática em torno da sua “morte simbólica” ao escolher dia e hora para se entregar à PF, mostrando a força do seu campo e disputando o sentido e a forma da sua prisão. Um momento narrativo e cinematográfico quando escolheu se dirigir para a sede do Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo, onde ficou protegido por uma trincheira de corpos amorosos e solidários. Em uma cultura virtualizada isso é um feito. A precedência da presença e dos corpos sob as virtualidades e aos mesmo tempo a mobilização 24 horas dos canais de notícias e redes sociais. O rito sumário da prisão virou uma missa nacional e global com duração e tempo singulares.
Como silenciar um acontecimento estrondoso? A Globo News transmitindo em tempo real, refém de um acontecimento que marcará a história do Brasil (filmando de helicóptero e de teleobjetivas), sem autorização para entrar no Sindicado dos Metalúrgicos onde Lula se abrigou, cortava e baixava o som das transmissões ao vivo do carro de som montado para se ouvir as falas que se revezavam desde a sexta-feira, 6 de abril de 2018, um dia histórico.
Só escutávamos os comentários enviesados, criminalizantes dos que querem construir o sentido do mundo e que têm medo dos protagonistas dos fatos. Os participantes da vigília, ato, protesto, missa, desagravo, resistência em torno de Lula não tiveram voz ao vivo na Globo News. As mídias livres ocuparam e deram voz aos acontecimentos.
Essas são as novas formas da censura, o anti-jornalismo em que o comentarista é o cento dos acontecimentos e onde tudo o que é dito é imediatamente “lido” para se produzir o “sentido”.
Mas hoje, com as redes sociais, as vozes e conteúdos vazam por todos os lados e produzem uma ruidocracia ingovernável. Lula protagonizou um ato/performance de desobediência civil que entrará para a história da resistência do Brasil.
Sem exclusividade e sem acesso, a Globo teve que utilizar o ao vivo da TVT, canal de TV da CUT, enquanto redes como Mídia Ninja e Jornalistas Livres faziam transmissões com exclusividade no front dos acontecimentos, com audiência fora do comum.
Durante toda a cobertura midiática corporativa da prisão de Lula, o desespero dos comentaristas era denunciar a fartura de imagens das equipes de mídia do ex-presidente como “politização” e “fraude” com objetivos eleitorais (“Vejam as câmeras, estão gravando tudo, vejam os fotógrafos, vejam como “encenam”, horrorizados por não terem o controle das imagens). Em momento algum dimensionaram e apontaram a força e simbolismo dos acontecimentos de hoje e a reviravolta simbólica de Lula.
Uns analistas míopes e/ou cegos, quando o roteiro lhes escapa. A questão é que o mundo faz “cinema” e produz narrativas fora do controle das fábricas de fatos. As mídias livres tiveram níveis estratosféricos de audiências e engajamento. Estamos em plena transição para a multidão de mídias que rivalizam com a fábrica fordista midiática.
Lula entendeu tudo! Não está “capitalizando” uma prisão, está narrando sua vida. Seu personagem público e privado é um só. Choram os jornalistas diante da força das imagens, choram os marqueteiros diante do fato-Lula – pois teriam que inventar, simular gente, perfis, personagens com esse carisma, afeto e dimensão! Num mundo sem mística e desencantado, Lula é um real acontecimento que foge da racionalidade marqueteira e das linhas retas. Uma ideia e um conceito difíceis de “aprisionar”.
Diante dessas imagens épicas e comoventes, buscam a foto/imagem de Lula preso como um troféu, mas qualquer imagem depois disso será pequena. No G1 e na Globo News ouvimos o som de um helicóptero e o silêncio. Um olho vazio de câmera de vigilância e comentários que enchem linguiça: o vazio de sentido e o “atirador” posicionado para acertar o alvo/imagem. Mas “a foto da prisão de Lula” não aconteceu.
Desobediência civil
“Se entrega Corisco! Eu não me entrego não! Eu não sou passarinho pra viver lá na prisão, não me entrego a tenente, nem mesmo a capitão, só me entrego na morte, de parabelo na mão”. Essa canção/cordel que marca a trilha sonora de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, mostra o quanto a desobediência civil está arraigada no imaginário popular brasileiro, para quem o inimigo não é nem as esquerdas, nem os conservadores, mas o próprio Estado.
A desobediência civil, o ato que Lula protagonizou na sua Canudos provisória, é a percepção de que o Estado, a lei e a ordem produzem injustiça. Daí a necessidade de resistir, atrasar, acenar com uma trincheira humana em São Bernardo do Campo, que passou de resistência e radicalismos iniciais para a forma de uma missa, liturgia em homenagem à memória de sua mulher, dona Marisa Letícia, no mesmo espaço. Momento histórico no ABC que viu nascer Lula e que reuniu lideranças políticas, movimentos, lideranças religiosas e sociedade civil num ato real e simbólico de resistência.
O antipetismo tem uma só fala: Lula deve desaparecer
Não precisa ser petista para entender que hoje o antipetismo histérico encobre os discursos de ódio contra grupos inteiros, encobre o ódio de classe, encobre os discursos racistas e machistas contra as minorias. O antipetismo construído e alimentado durante as últimas décadas está produzindo monstruosidades muito maiores do que quaisquer erros cometidos nas gestões dos presidentes Lula e Dilma. A frágil democracia brasileira rifada e amesquinhada para destruir um partido e suas lideranças.
O que acontece quando um inimigo da grandeza de Lula é neutralizado e se decreta sua morte? Já estamos no pós-lulismo – o demônio, o inimigo exorcizado. Veremos, agora, o vazio de projetos e propostas, e a dificuldade de se mobilizar afetos e crenças no reencantamento da política.
Lula se pensa já como mito, como póstumo, como história e como futuro com uma consciência aguda dos processos e da vida como construção. Queriam um mártir? Um preso político? Já têm. Desde o ato em defesa de Lula no Circo Voador, no Rio de Janeiro, ele já anunciava e encarnava esse lugar de Lula-Multidão. Lula é muitos, enfatizou na sua fala poética e política:
“Se me prenderem e eles não me deixarem andar, eu andarei pelas pernas de vocês. Se eles não me deixarem falar, eu falarei pela boca de vocês. Se meu coração parar de bater, baterá pelo coração de vocês. Não é de mim que eles têm que ter medo, eles têm que ter medo de vocês.”
Não se muda a história com lágrimas, nem com teorias, mas com lutas e corpos. A prisão de Lula também foi comemorada por muitos em todo o Brasil. Num primeiro momento, o que vimos foi a liberação dos piores instintos de ressentimento e ódio: salgar a terra, esquartejar, tripudiar dos vencidos.
Oscar Maroni comemora a prisão de Lula distribuindo cerveja grátis para três mil pessoas (Reprodução)
Senha para liberar a barbárie
A fotografia do altar erguido ao juiz Sérgio Moro e a ministra Carmem Lúcia em uma casa de prostituição, com o dono de uma boate de luxo mostrando a genitália desnuda de uma das suas contratadas enquanto lhe tapa a boca, chama atenção por sua constelação de signos.
Vestido de preso/torturador/irmão metralha, Oscar Maroni, o dono da boate Bahamas Club, comemora a prisão de Lula distribuindo cerveja grátis para três mil pessoas, cumprindo uma promessa alardeada pelas redes como as do MBL. O que diz a imagem, que evoca tanto a iconografia da prisão de Abu Ghraib quanto uma cena de Salò ou os 120 dias de Sodoma, de Pier Paolo Pasolini – ou ainda cenas de tortura da deep web -, é exatamente essa libido diante da sujeição do outro: voltamos ao comando!
Podemos infringir nosso poder aos corpos: das mulheres, das minorias, podemos comandar o espetáculo politicamente incorreto, porque vencemos. Como nos estupros pós-guerra, como nas cenas de torturas da ditadura militar. Poder, sexualidade e assujeitamento. Uma multidão de homens brancos que cultua Bolsonaros, armas e assujeitementos de todo tipo. Eu gozo com o teu sofrimento, eis a trip regressivo-vingativa travestida de “justiça”, moralidade e combate à corrupção em que estamos.
Como sublinha Friedrich Nietzsche, toda reivindicação por justiça traz junto de si um desejo primário de vingança, mas essas duas coisas não se confundem, ou não deveriam se confundir. É o que distingue a civilização da barbárie. Poder separar nossos piores instintos de uma justiça construtiva e pedagógica. Ao amalgamar justiça e vingança, o que vimos no Brasil, no impeachment e golpe jurídico midiático contra Dilma Rousseff, na Operação Lava Jato e no fetiche por prender Lula, foi essa assimetria que transformou um impulso e processos decisivos por justiça e contra a corrupção em uma senha que libera o devir fascista, o ressentimento social e a vingança que só deseja a morte do outro, do inimigo social, outro gênero, outra cor da pele, outras crenças.
Teríamos que nos empenhar em produzir dispositivos que separem justiça de vingança. Um processo profundo de reencantamento na potência das lutas e disputas dos imaginários.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

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