Apóstolos do conformismo pedem calma e uísque enquanto chafurdamos em truculência, estupidez e vergonha
18jul2019 09h37
Em
1948 o mundo vivia a ressaca da grande guerra. Só se discutia campo de
concentração, bomba atômica, fascismo. Só se falava, enfim, em política,
como registra George Orwell em “Os escritores e Leviatã”. E com bons
motivos. Afinal, argumenta ele no ensaio publicado naquele ano, “quando
estamos num navio prestes a naufragar, nossos pensamentos se concentram
em navios prestes a naufragar”. Fazer diferente é resultado de alienação
patológica. Ou, o que é pior, atestado de má consciência.
É aquela história do sujeito reclamando com a
aeromoça sobre o uísque que não veio. “Mas senhor, o avião está
caindo...”, argumenta ela. “Que se dane o avião!”, responde ele. E tem a
do circo em que os leões se soltam: a turba entra em pânico e, na
confusão, um espectador tem suas partes íntimas imprensadas nas
arquibancadas. Sob essa forte emoção privada, nasce um conciliador
público: “Senta que o leão é manso!”.
Navio, avião ou circo: o freguês pode escolher a
metáfora que preferir para um Brasil que mistura naufrágio, queda livre e
pânico. Todo mundo, parece razoável, só deveria pensar naquilo: é a
política, estúpido! Mas graças a um esforço laborioso de apóstolos do
conformismo, espalhados por variadas tribunas de opinião, insiste-se em
pedir calma e uísque enquanto chafurdamos em truculência, estupidez e
vergonha.
Nesse mundo da iniquidade naturalizada, literatura e
política não se misturam. Foi por isso, aliás, que a Barbie Fascista,
esse adorável arquétipo nascido nas redes sociais, fez forfait
na Flip deste ano. Desistiu de equilibrar a consciência no salto, entre
as pedras de Paraty, porque tem achado o mundo “chaaaato”. Vivendo em
Lisboa, tem “preguiça” da realidade e prefere espalhar boas notícias.
Nossa personagem tem saudade de quando a Flip
ignorava o mundo exterior. Assustou-se em 2013, quando as ambíguas
jornadas de junho ganharam tribuna na festa. E achou esquisita, mas não
de todo ruim, a fórmula marota do “tudo é política”, sob a qual
estimulou-se o debate sobre a tradição ameaçada da cocada queimada para
passar ao largo de um impeachment e não tocar na ascensão da extrema
direita.
Em 2019, Paraty chamou as coisas por seus nomes. E
afirmou posição abertamente contrária à corrosão dos valores
democráticos promovida diuturnamente pelo governo eleito. Grada Kilomba
falou do país fraturado e racista que encontrou, Marilene Felinto
destruiu consensos sobre vida literária, jornalismo, política e a
própria Flip, Walnice Nogueira Galvão nos recomendou ler Os sertões
todos os dias para lembrar o tratamento que o Brasil dispensa aos
desvalidos, sejam eles sertanejos ou sem-terra, indígenas ou negros.
Na Folha de S. Paulo, Anna Virginia
Balloussier reclamou da falta de autores “de direita” e “conservadores”,
o que seria flagrante evidência da falta de espírito democrático da
festa. A se aplicar seu raciocínio, o extermínio indígena teria que ser
discutido com quem facilita invasão de terras ou sequestra curumins,
pensar a tragédia de Mariana seria mais rico quando se ouvisse um
defensor do interesse de mineradoras e uma conversa sobre o
autoritarismo ganharia em legitimidade ao incluir quem defenda, por
exemplo, prisão e exílio de seus opositores políticos.
Aos que supostamente oprimem e silenciam os pobres conservadores, a repórter da Folha chama
de “esquerda”. E, em outro artigo, lembra que o fato de o jornalista
Glenn Greenwald ser recebido por bolsonaristas como alvo de rojões deve
ser contextualizado porque a “esquerda”, sempre ela, também já fez muito
disso — e, como exemplo, compara escracho e agressão física. Aos seus
olhos, a Flip é o lugar em que a “esquerda”, essa incorrigível, “dá as
mãos numa ciranda de energia positiva” enquanto o Brasil “acontece lá
fora”.
O busílis é que, desta vez, o Brasil aconteceu ali,
dentro dos limites do centro histórico. Se a matilha de predadores da
democracia ficou de fora da festa é porque fez-se a política como
desentendimento, tomada de posição que não se confunde com ironia
hipster.
Para resumir, é a política, estúpido!
(Publicado originalmente na Revista dos Livros, Quatro Cinco Um)
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