Ganhadora do Nobel de
Literatura, escritora polonesa traz personagens excêntricas em um mundo
onde matar e causar dor é algo normal
Camila von Holdefer
23out2019 19h15
A escritora polonesa Olga Tokarczuk Friso Gentsch/picture alliance via Getty Images
Tokarczuk, Olga
Sobre os ossos dos mortos
TRAD. Olga Bagińska-Shinzato
Todavia •
256 pp •
R$ 59,90
TRAD. Olga Bagińska-Shinzato
Todavia •
256 pp •
R$ 59,90
Conflitos
internos da Academia Sueca fizeram com que o Nobel de Literatura dado a
Olga Tokarczuk, correspondente ao ano de 2018, só fosse anunciado em
2019. Tida como uma das favoritas ao prêmio, a polonesa nascida em 1962
foi saudada pela “imaginação narrativa” — incluindo aí o “cruzamento de
fronteiras como uma forma de vida”.
Há várias maneiras de interpretar a última afirmação do comitê. Sobre os ossos dos mortos,
publicado originalmente em 2009 e lançado agora no Brasil pela Todavia,
talvez seja o melhor exemplo do modo como demarcações territoriais são
constantemente questionadas na obra de Tokarczuk.
Embora seja uma espécie de romance policial, a
singularidade da narradora, de seus pontos de vista e de seus interesses
sugere uma mistura peculiar de gêneros. Janina Dusheiko é uma mulher
idosa que só bebe chá preto e vive sozinha em um vilarejo isolado na
fronteira com a República Tcheca. Seus dias se dividem entre as
caminhadas pelo lugar, a tradução de poemas de William Blake e as aulas
de inglês para crianças.
Dusheiko não apenas detesta o próprio nome, que
considera um equívoco, como se refere às outras criaturas da maneira que
lhe parece mais conveniente ou apropriada — é o caso de Pé Grande, o
vizinho, encontrado morto ainda nas primeiras páginas do livro. A ele se
seguirão outros homens.
Para a senhora Dusheiko, “chamar as coisas pelo
nome” inclui não só rebatizar os seres conforme a essência de cada um,
mas usar o adjetivo “diabólico” para descrever os postos de caça
espalhados estrategicamente pela região em que vive. Ela enfrenta “um
luto interminável por cada animal morto”. É a uma vingança dos animais
contra a crueldade humana que a senhora Dusheiko atribui as mortes em
sequência. Condene os outros ao inferno, diz, e “o mundo todo se
transforma num inferno”.
“Essa grande matança cruel, insensível, mecânica,
sem nenhum remorso, sem nenhuma pausa para pensar [...]. Que mundo é
esse onde matar e causar dor é tido como algo normal?”, quer saber a
senhora Dusheiko. Os ataques mais devastadores daquilo que ela chama de
suas “moléstias”, e que incluem uma lista extensa de dores e achaques,
são os de lágrimas vertidas sem qualquer controle. As lágrimas limpam,
garante, e são o motivo pelo qual ela enxerga melhor do que todos os
outros.
Outras frequências
É quase como se Janina Dusheiko fosse uma Elizabeth
Costello (a famosa personagem de J. M. Coetzee) menos pretensiosa. O
tom, no entanto, é muito semelhante. “Assim seria o mundo”, diz a
narradora de Tokarczuk ao denunciar o tratamento dado aos animais, “se
os campos de concentração se tornassem algo normal.”
O movimento das duas personagens é bem parecido: ambas tentam se colocar no lugar daqueles outros,
por mais difícil que o exercício possa parecer. Se a intelectual
Costello segue um conhecido texto de filosofia da mente ao questionar
como é ser um morcego, há, talvez, algo de espontâneo na indagação
idêntica da senhora Dusheiko. “Como todos parecemos aqui embaixo quando
somos vistos por seus sentidos?”, pergunta. “Essencialmente”, ela
acredita ter “muito em comum” com os morcegos, já que também enxerga “o
mundo em outras frequências, às avessas”.
Para essa narradora, não podemos ter certeza de nada. Ela acha que a mente é um objeto ‘tênue’ demais
O pulsar em outra frequência e a visão do mundo por
uma espécie de lado avesso são comuns aos personagens de Olga Tokarczuk.
É a essa representação nada inédita — o excêntrico que aparentemente
detém o bom senso que falta ao senso comum — que Tokarczuk fornece
contornos originais, eliminando a ingenuidade. Um sem-número de detalhes
curiosos se combinam para formar uma voz estranha e fascinante. A
senhora Dusheiko diz enxergar tudo como “anormal, horrível e perigoso” e
pressentir “apenas catástrofes”. É provável que venham daí as suas
pequenas batalhas diárias — contra as árvores cortadas, contra os ralis
de carros barulhentos e poluentes— que pareceriam tão banais à maioria.
Tokarczuk venceu o Man Booker Prize em 2018 com a tradução de Bieguni, de 2007, que virou Flights. Uma das primeiras personagens que a narradora viajante de Bieguni encontra é Aleksandra, que também luta pelos direitos dos animais. “O verdadeiro Deus”, diz Aleksandra, “é um animal.”
Diferentemente da senhora Dusheiko, a narradora de Bieguni (que será relançado no Brasil pela Todavia como Viagens)
não consegue ficar muito tempo no mesmo lugar. Sua energia, garante
ela, vem do movimento. Em passagens que variam de poucas linhas a
algumas páginas e que vão do século 16 ao presente, ela tece um
encantador catálogo de histórias e indivíduos, tanto reais quanto
imaginários. Se Sobre os ossos dos mortos questiona as fronteiras que nos separam de outros seres vivos, Viagens questiona todo tipo de fronteira — a começar pelas clássicas do tempo e do espaço.
Lá está, no olhar da narradora de Viagens, a
visão pelo avesso que marca a senhora Dusheiko. O que a faz viajar é a
necessidade de seguir o que chama de “erros” e “enganos” do mundo. Seu
olhar repara no que é desviante, no que é grande ou pequeno demais, no
que não se encaixa. Os gabinetes de curiosidades, os Wunderkammer,
algo a que o produto final do livro acaba por se assemelhar, lhe
interessam desde sempre. Esses gabinetes contêm, afinal, “as coisas que
existem nas sombras da consciência”.
Para essa narradora — uma mulher que gosta de
tricotar quando viaja —, não podemos ter certeza de nada. O mundo não é
para ela “inerte e morto, [nem] governado por leis relativamente
simples”, que podem vir à tona através de experimentos. Ela, que assim
como Tokarczuk estudou psicologia, acha que a mente humana é um objeto
de estudo “tênue” demais.
Já a senhora Dusheiko confia cegamente na
astrologia. Seus mapas astrais são feitos em um computador instalado na
mesa da cozinha. Entre a genética e o movimento dos astros, ela acha que
a diferença reside apenas na escala. A lente da astrologia também acaba
definindo uma característica da própria escrita de Tokarczuk: é quando a
senhora Dusheiko diz que “o mundo é uma grande rede, um todo único, e
não existe nada que esteja isolado”. Mesmo em um livrofragmentado como Viagens há uma uniformidade difícil de ignorar. Hásentido na aleatoriedade; há algo que transcende e destrói certas divisas.
Talvez os livros de Olga Tokarczuk ecoem, ainda,
outra observação da mesma estranha senhora: “Que grande e cheio de vida é
o mundo”.
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