Os livros do escritor francês, um dos melhores do nosso tempo, esbarram na figura desajustada e por vezes repugnante do autor
Ricardo Lísias
01out2019 01h47
O escritor francês Michel Houllebecq Philippe Matsas/Flammarion
Houellebecq, Michel
Serotonina
TRAD. Paulina Wacht e Ari Roitman
Alfaguara/Grupo Companhia das Letras •
408 pp •
R$ 59,90 / R$ 39,90
TRAD. Paulina Wacht e Ari Roitman
Alfaguara/Grupo Companhia das Letras •
408 pp •
R$ 59,90 / R$ 39,90
Além
de serem obras estéticas notáveis, os livros assinados com o nome
Michel Houellebecq oferecem ótima oportunidade de reflexão sobre o
estado das discussões literárias contemporâneas. Submissão,
lançado em 2015, gerou uma enormidade de debates, que levaram inclusive a
uma declaração do próprio presidente da República francês de então,
Manuel de Vals, de que “a França não é Michel Houellebecq, não é a
intolerância, o ódio e o medo”.
Uma das forças estéticas da obra de Houellebecq é
justamente esse poder de mobilização — que chega, inclusive, a tocar as
maiores tragédias do nosso tempo: quando o jornal Charlie Hebdo
foi atacado, em janeiro de 2015, era justamente sua imagem que estava
na capa da edição que circularia naquele dia. Além disso, coincidiu com a
data de lançamento de Submissão. Um dos melhores amigos de Houellebecq estava entre as vítimas. Por segurança, o escritor desapareceu por algumas semanas.
Publicado no início do ano na França e agora no Brasil, Serotonina
provocou também bastante debate. No que foi visto por alguns como mero
lance de sorte, mas que na verdade é um sinal da clarividência do autor,
o movimento dos coletes amarelos aparece no livro praticamente ao mesmo
tempo que tomava força no interior francês. Vale destacar que o texto
se coloca, sem nenhuma ambiguidade, ao lado dos manifestantes.
O enredo é, como sempre no caso de Houellebecq,
muito simples. Um homem maduro assiste a mais um de seus relacionamentos
se romper, o que o leva a uma crise depressiva cada vez mais forte. Ele
então tenta, primeiro, isolar-se em um hotel de Paris, procurando
apagar todos os sinais de sua existência (emprego, conta bancária,
endereço físico etc.), até que resolve, como é típico em sua condição
psicológica, empreender uma viagem que o levará a reencontrar diversas
pessoas que fizeram parte de seu passado.
Os coletes amarelos aparecem na visita que faz a um
antigo amigo de faculdade, agora um proprietário rural em decadência.
Hospedado no hotel improvisado que o amigo construíra para, sem sucesso,
equilibrar as contas, o narrador acompanha os protestos até testemunhar
o suicídio do companheiro, no meio de um protesto, o que causa uma
pequena convulsão social. Antes, ele já havia testemunhado um episódio
de pedofilia em um chalé ao lado do seu.
Sem horizonte
Depois do suicídio do amigo, uma espécie de epifania
política do romance, o narrador resolve ir atrás de uma antiga esposa,
mergulhando ainda mais em sua longa jornada depressão adentro. Quando a
encontra, não consegue se aproximar e acaba passando um longo tempo
observando-a com o filho, de longe. Aqui o principal procedimento formal
do livro se esclarece: só aparece o que está ao alcance dos olhos do
narrador. O mundo diminui, portanto, conforme seu ensimesmamento doentio
aumenta. No final, o que sobra é a total ausência de horizonte, que
parece coadunar com a questão política colocada no livro: se a gente
tratar só o que estiver à nossa vista, e não o outro distante, vamos
desaparecer.
Há ainda outros detalhes formais que merecem
atenção, justamente por colocar Houellebecq entre os melhores escritores
do nosso tempo. Valeria também uma comparação, com distâncias e
aproximações, com a obra assinada por Samuel Beckett. Por razões de
espaço, porém, vou me concentrar em um detalhe lateral, mas que me
parece decisivo para a recepção de sua obra: o papel da pessoa que tem o
mesmo nome social dos livros assinados por Michel Houellebecq. Trata-se
do autor, portanto.
Houellebecq costuma dar entrevistas contraditórias,
muitas vezes agressivas e horripilantes, com opiniões para lá de
inaceitáveis. Algumas são muito divertidas e outras, abjetas. Ele deve
ser hoje o principal exemplo da morte do autor: suas opiniões são muito
diferentes da ideologia que sai dos livros que seu nome assina.
Houellebecq costuma dar entrevistas contraditórias, muitas vezes agressivas e horripilantes, com opiniões para lá de inaceitáveis
O narrador de Serotonina, por exemplo, é
muitas vezes uma pessoa repugnante. Uma leitura que desconsidera
aspectos estéticos iria logo de cara considerar o livro machista. É
preciso notar que a figura que, às vezes, diz absurdos inaceitáveis é um
desajustado, um ser completamente fora de razão, que está afundando. Ou
seja: o esquerdomacho do livro se deu mal...
Aqui consigo expressar um dos meus constrangimentos
quanto à recepção da literatura contemporânea. Todo o mundo conhece,
ensina e aplaude os célebres e certeiros textos de Michel Foucault e
Roland Barthes sobre a morte do autor. Por que tanta gente, então, na
hora em que interpreta uma obra, insiste em adotar critérios e
terminologias tão atrasadas e, pior ainda, continuar prestando atenção
em cadáveres como o “autor”?
Caso o leitor queira ter essa experiência, procure a
resenha que o cientista político Mark Lilla (nenhum desavisado,
portanto) publicou sobre Submissão em 2015 na The New York Review of Books.
A forma literária quase não é analisada, em detrimento das entrevistas
bestas de Houellebecq, que aparecem em profusão. Se a França não é
Houellebecq, seus livros também não são. Eles são brilhantes.
(Publicado originalmente no site da Quatro Cinco Um, a revista dos livros)
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