'O Estupro de Lucrécia', quadro de Ticiano (Foto: Reprodução)
Ao ensejo da abjeta agressão do ser que ocupa a presidência a uma jornalista, do carnaval e da proximidade do dia da mulher, algumas reflexões sobre a questão feminina.
Conta o historiador Tito Lívio a história, célebre na Antiguidade, de Lucrécia. Mulher de Colatino, tornou-se objeto de desejo obsessivo de Sexto Tarquínio, filho do rei Tarquínio, o Soberbo. Ele hospeda-se na casa de Lucrécia e Colatino e no meio da noite esgueira-se para o leito de Lucrécia. Confessa-lhe o desejo e a faz submeter-se diante da ameaça de colocar um escravo nu degolado ao lado do seu corpo para que parecesse ter sido morta em flagrante adultério.
Lucrécia conta ao marido e ao pai e em seguida crava-se um punhal no coração. Tornou-se símbolo na Antiguidade da mulher virtuosa pagã. As ideias estoicas teriam sido impulsionadas partir do episódio de Lucrécia, anota o jurista Giunio Rizzelli.
Mas como poderia uma pagã simbolizar a virtude? Séculos depois Lucrécia está presente na Cidade de Deus, de Agostinho. Ardilosamente o filósofo cogita: pode ter ocorrido de maneira voluntária. Poderia não ter acontecido se não houvesse algo de prazer da carne. Ou seja, não teria Lucrécia sentido prazer? E não teria se matado para punir-se pelo prazer sentido? Seria Lucrécia realmente casta? Uma mulher cristã realmente virtuosa não recorreria ao suicídio porque não teria do que se envergonhar.
O veneno de Agostinho atormenta ainda, tantos séculos depois, as mulheres vítimas de ataques sexuais. A figura do agressor não é o foco. Desloca-se para o comportamento da mulher. Sentiu prazer? Provocou? Insinuou-se? Então não teria sido propriamente um ataque sexual porque de algum modo o presumido prazer da mulher, ou sua conduta, dá foros de consentimento e faz do agressor, no limite, a vítima.
O episódio de Lucrécia e os comentários de Agostinho colho de um texto do jurista italiano Giunio Rizzelli (traduzido por mim e Sara Correa Fattori e publicado em 2008 nos Cadernos da Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado). Rizzelli conclui: “Agostinho argumenta baseado em ideias, provavelmente difundidas há longo tempo, que demonstram uma forte atenção à eventual coparticipação psicológica feminina no estupro e na forte valoração negativa da mesma. Atenção essa que não parece, de modo algum, estranha à reflexão jurídica, também da época precedente”.
Tal ideia, a da coparticipação feminina na violência sexual que, assim, deixa de ser violência na medida em que se lançam suspeitas sobre a conduta da mulher, é tanto uma forma de conferir algo de convencionalidade social, uma “normalização” do estupro, quanto de legalizá-lo por via oblíqua. Como sabem todos que operam da esfera jurídica, pode-se colher aos montes precedentes em que, no mínimo, algo da espécie se cogitou, foi argumento de defesa ou fundamento de decidir.
Não há outro crime em que o comportamento da vítima assuma tal dimensão ou se cogite com essa ênfase. A ninguém ocorre responsabilizar a vítima de um roubo por deixar a carteira disponível, ou de flanar pelas ruas com o celular nas mãos, ou a vítima de homicídio de não estar em casa ou fazendo alguma prece em alguma igreja em vez de oferecer o corpo para ser assassinado. Isto somente ocorre com a violência sexual contra a mulher.
A falácia de Agostinho persiste. A infâmia contra Lucrécia foi escrita por um filósofo em uma sociedade escravocrata e aqui e hoje, na estrutura capitalista, ocorre da mesma forma. A Marx e Engels não escaparam a relação entre dominação de classe e patriarcado. Em uma sociedade de classes, escravocrata ou capitalista, o poder não se exerce singela ou estritamente sobre os meios de produção ou sobre a força de trabalho alheia.
Quem está no topo da pirâmide pode. Quem está no topo da pirâmide faz porque pode fazer, faz porque o poder social que deriva do poder de classe é amplo o suficiente e certas práticas contaminam todo o espectro social. A prova disso é o que Rizzelli denomina, eufemisticamente, de “reflexão jurídica” secular. Ela só tem sentido e função em uma sociedade patriarcal de classes que põe a seu serviço “reflexões jurídicas”.
Esta torpe “reflexão” amplia-se pela sociedade em círculos como ocorre com uma pedra jogada na água. O papel de inferioridade reservado à mulher pela estrutura social a faz vítima de várias formas. Desde ser mão de obra barata, de ser relegada à condição de reprodutora para que a estrutura permaneça e se reproduza, até a ser objeto de prazer como um ser sem autonomia (subproduto da dita “reflexão jurídica”). Para isto tudo é útil também o mito de Eva, cuja irresponsabilidade nos furtou o paraíso. A mulher serve à teodiceia, à explicação para os males do mundo que isenta Deus de culpa.
Quando houve, pela primeira vez na História, a experiência de construir uma sociedade sem classes, a Revolução Bolchevique, não se podia deixar de cuidar da opressão feminina. Era óbvio, e espanta isto ser largamente ignorado quando se fala da emancipação da mulher, espanta que se possa buscar a libertação delas sem retirá-las da condição que a sociedade burguesa lhe reserva. Trotsky dizia que a família era uma pequena empresa, uma produção natural de serviços para garantir a força de trabalho (citado por Diana Assunção em A questão da mulher na Revolução Russa, Esquerda Diário).
É essa pequena empresa e esse papel o encargo feminino em uma sociedade de classes e essa situação de inferioridade se reproduz em toda a esfera social. O exercício livre da sexualidade é um problema para essa pequena empresa. Ela não escolhe seu papel social, não escolhe quem toma seu corpo e sua sexualidade, se exercida, está sempre vinculada à diminuição da honra e do caráter, exatamente o contrário do que ocorre com os homens – e muitos de nós, mesmo com certo nível de consciência social, nem sempre nos damos conta de que reproduzimos algo que é da estrutura social que queremos transformar, e com isso a fortalecemos.
MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado e foi procurador-geral do Estado de São Paulo.
(Artigo publicado originalmente no site da Revista Cult)
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