O cientista político
polonês, Adam Przeworski, possui dois estudos dos mais importantes para
entendermos a dinâmica dos regimes democráticos. Um deles trata da transição
da clandestinidade para a institucionalização dos partidos comunistas do
Leste Europeu, um dos pilares para entendermos porque a opção pela democracia
e, portanto, pela via da luta institucional, tornou-se inevitável para aqueles grêmios
partidários, que passaram a atuar na luta pelo voto, dentro de um ambiente
institucional onde a condição de clandestinos já não lhes facultavam nenhuma
vantagem competitiva.
Num outro momento, o
polonês debruça-se sobre as fragilidades de consolidação dos regimes
democráticos aqui na América Latina,
numa empresa que também envolve outro grande estudioso do assunto, o argentino
Guillerme O’Donnell, que cunhou a expressão “Democracia Delegada” para explicar
o fenômeno da inanição democrática no
continente latino-americano, tendo como uma das referências de análise o seu próprio
país, a Argentina. Argentina que, por sinal, avançou muito mais do que o
Brasil, quando se discute, por exemplo, a punição aos violadores dos direitos
humanos durante os estertores do período ditatorial. Um outro aspecto a ser destacado aqui é a chamada museologia da reparação no país vizinho, ou seja, a criação de instituições que realizam uma espécie de ajuste de contas com o passado sombrio, musealizando horrores que devem ser evitados.
Em ambos os casos, fica
evidente que assumir um compromisso com a democracia traz, no seu bojo, alguns
princípios de conduta e procedimentos inerentes ao jogo democrático, seja na
condição de um ator individual - um dirigente político - ou coletivo, um partido, por exemplo. Resumidamente, esse conjunto de
pressupostos podem ser traduzidos em duas palavras: responsabilidade e
responsibilidade, esta última mais voltada à chamada democracia econômica ou
substantiva, onde o regime, além de manter o arcabouço legal e institucional em
pleno funcionamento, também precisa responder às demandas da sociedade,
proporcionando um equilíbrio desejável entre democracia política e
democracia substantiva.
É certo que a democracia
hoje, em nível global, diante de uma escalada conservadora, enfrenta sérios
problemas, sobretudo quando se tem em mente a crise dos partidos políticos e,
consequentemente, da representatividade, impondo arranjos de governança - como
é o caso do Brasil, com seu precário modelo de presidencialismo de coalizão - nem sempre
desejáveis. Uma série de livros foram publicados sobre este tema no último ano, apontando os equívocos que podem levar uma democracia a uma morte agonizante.
No caso brasileiro - como
o problema da fragilidade de democracia pode ser classificado como crônico -
autores até certo ponto díspares, como é o caso do sociólogo Gilberto Freyre e
do historiador Sérgio Buarque de Hollanda, acabam convergindo sobre a
impossibilidade da democracia entre nós, ambos apontando algumas
características da formação da sociedade brasileira como as possíveis causas
dessa inviabilidade. Para Sérgio, por exemplo, os vícios herdados da
colonização portuguesa, forjada na exploração do trabalho escravo durante
séculos; doações de glebas de terra aos vassalos donatários, apaniguados da
Coroa; carta branca a esses senhores para exercerem o papel de Estado,
assumindo a condição de delegados, juízes; a promiscuidade das fronteiras entre
o público e o privado criaando um déficit de institucionalização incompatível
com a formatação de um regime republicano ou democrático.
O fato concreto é que a
nossa democracia vive de sobressaltos, solavancos, com ligeiros intervalos de
funcionamento, mesmo assim bastante precário. Assim, se fizermos um levantamento sobre os
momentos de pleno funcionamento das instituições democráticas no país, não
surpreenderia ao pesquisador se encontrássemos algumas surpresas. No Brasil, o
regular e constante, na realidade, são regimes fechados, ditatoriais. Isso
aumenta, sobremaneira, a responsabilidade dos cidadãos e cidadãs de convicções democráticas
fecharem trincheiras em sua defesa, em razão de sua baixa imunidade
institucional, susceptível às mobilizações das vivandeiras dos quartéis.
Os leitores que desejarem
aprofundarem-se sobre as causas desse fenômeno, conforme citamos antes, leiam
os textos do O’Donnell e do Adam Przeworski, a princípio. São leituras
essenciais para entendermos porque a democracia entre nós nunca passou de um grande
mal-entendido, fazendo aqui um trocadilho com o grande historiador Sérgio
Buarque de Hollanda.
Mais recentemente,
notadamente depois do golpe institucional de 2016, nossas instituições
democráticas passaram a ser violentamente assediadas, com a conivência de
poderes que, em tese, teriam a prerrogativa legal e constitucional de impedir
esses assédios. Precedentes são perigosos. Como se dizia no nosso tempo de
criança, esses "guardiões" engoliram a isca do arbítrio. Hoje, estão entalados com ela.
Já se disse que projetos
autoritários não costumam estabelecer muita distinção entre os atores
políticos. Os aliados de ontem podem ser os inimigos de hoje, consoantes as
conveniências de ocasião. Abriu-se um precedente perigoso - utilizando-se de um
instrumento previsto pelo próprio regime democrático para apear do cargo um
presidente legitimamente eleito, sem uma justificativa plausível e legalmente
configurada - e, deste então, o assédio só se agrava, pondo em desequilíbrio a
balança dos três poderes, um sistema de pesos e contrapesos fundamentais para
impedir os impulsos autoritários e as tiranias. A que se prenuncia ainda mais
preocupante, em razão do seu caráter fundamentalista, ancorada em apoios milicianos e neopentecostais.
Um governante eleito por
um regime democrático jamais poderia perder de vista a responsabilidade
assumida com a manutenção das regras do jogo, como o respeito aos adversários,
aos três poderes, às prerrogativas do mandato, os limites impostos por ele, o
respeito à Constituição do país, ao Estado Democrático de Direito, uma imprensa
livre, eleições livres a cada período legalmente definido, direito de manifestações, enfim, a todo o
arcabouço legal e institucional que caracteriza um regime democrático. Aqui não
escapa nem a liturgia exigida pelo cargo que ocupa. O desrespeito a algum desses
princípios põe em dúvida sua capacidade de continuar a exercer o cargo,
tornando-se passível, inclusive, de um impedimento. Neste caso, legalmente
configurado.
A charge publicada acima é do grande cartunista Laerte.
Nenhum comentário:
Postar um comentário