pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Le Monde: Nas coxias do cárcere

O que pode se perceber na coxia do cárcere é que a orientação e os rumos adotados pelo Estado brasileiro tendem a agravar ainda mais a situação lamentável em que vive parte significativa da população do país. Aposta-se cada vez mais na lógica policialesca, de encarceramento em massa, de guerra às drogas, bem como no desmonte de políticas e na fragilização delas
por: Bruna Angotti, Catarina Pedroso, Fernanda Machado Givisiez, José de Ribamar de Araújo e Silva, Lucio Costa e Thais Lemos Duarte
Crédito da Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Legenda: Manaus - Familiares aguardam informações sobre parentes presos na Cadeia Pública Raimundo Vidal Pessoa
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No dia a dia, pouco se fala sobre prisão. Quando este assunto é pautado, em geral, se comenta sobre a violência que aflige os cárceres. Nas últimas semanas, se tornou lugar comum nos meios de comunicação notícias sobre rebeliões em presídios de diversos estados do país devido ao rompimento de relações entre grandes facções criminosas. Entretanto, em que pese o fato de os principais veículos de comunicação quase sempre tratarem como problema central das unidades prisionais a existência dessas facções, os bastidores do sistema prisional apontam para outra direção.
O público alvo central do sistema de justiça criminal abrange um conjunto de características que constitui o perfil socialmente identificável como sendo o do criminoso. Pessoas jovens, com baixa escolaridade, negras ou pardas, moradoras de periferias e de baixa renda que, por não apresentarem as imunidades institucionais da classe média e da classe alta, possuem mais chances de serem detidas, processadas e condenadas. O sistema de justiça criminal reforça um perfil já socialmente estigmatizado.
Conforme dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN, 2014)[1], 27% das pessoas presas em junho de 2014 o foram por situações consideradas tráfico de drogas. Destaca-se que a Lei 11.343/2006 não deixa clara a distinção entre traficante e usuário. É o agente policial quem define se a pessoa abordada pode ser identificada como traficante ou como usuária de drogas. De fato, o traficante se tornou nas últimas décadas o inimigo número um das ações de segurança pública, de modo que as medidas relacionadas desde a abordagem policial até a condenação a uma pena privativa de liberdade estão permeadas pela perspectiva de guerra às drogas.
A maioria das prisões por tráfico é oriunda de ronda policial e não de ações de inteligência, seja das polícias civis seja da polícia federal. O alvo dessas ações quase sempre são pequenos vendedores ou usuários, que contempla o perfil descrito acima, não sendo em geral pessoas com funções de comando e gerência nesta atividade. Nesse sentido, a grande logística do tráfico de drogas não é afetada, até mesmo porque é comandada por grupos que apresentam imunidade de classe e, por óbvio, não estão na mira do sistema de justiça.
Entre outros aspectos, formam o cenário de boa parte das prisões brasileiras: dependências mal arquitetadas, construções mal conservadas, áreas sem iluminação e ventilação, sujeira generalizada, celas superlotadas, escassez de atividades de trabalho e estudo, péssima alimentação, ausência de atendimento de saúde, falta de acesso à justiça e parca distribuição de materiais de higiene e limpeza. Todo esse quadro é uma afronta direta à legislação nacional, bem como às normativas internacionais que o Estado brasileiro se comprometeu a seguir.
Há estabelecimentos nos quais os órgãos do Estado não apresentam qualquer gerência sobre o seu funcionamento. Os agentes da administração penitenciária permanecem apenas em uma ou outra área da unidade, quase sempre na seção administrativa, não chegando a manter contato direto com as pessoas presas. Assim, são os presos quem literalmente abrem e fecham as grades da prisão. Eles se autorregulam, criando regras comportamentais extralegais, senão, ilegais, que ocasionam situações de extrema violência. A opinião pública, induzida e reforçada por ações midiáticas, é enfática em responsabilizá-los, como se os presos fossem “seres animalescos” que pautam todas as suas relações pela força. No entanto, torna-se fundamental apontar que os órgãos do Estado são os responsáveis diretos pelo o que ocorre nas prisões, tendo a obrigação de administrar os estabelecimentos e averiguar todas as circunstâncias relacionadas às pessoas sob sua custódia.
Nos locais em que não é diretamente omisso, o Estado é presente, sobretudo, através da truculência. Faz parte do dia a dia das prisões agentes penitenciários e diretores que humilham, agridem e extorquem as pessoas presas, gerando situações de tortura. Mais grave, não são raros os lugares nos quais os próprios agentes da administração carcerária incitam situações de violência entre os presos, como rebeliões, por exemplo. Além disso, cada vez mais se tornam frequentes as inspeções de forças especiais do próprio sistema prisional ou de batalhões especiais da Polícia Militar nas unidades, gerando um clima de forte tensionamento entre as pessoas presas. É inconteste que a conduta adotada, não raramente, por alguns agentes nestes procedimentos gera uma forte subjugação do individuo, ao ponto de serem quebrados e rasgados objetos dos presos dentro das celas, inclusive livros e artigos religiosos. Os resultados dessas ações podem ter como consequências presos feridos, senão, mortos.
Há que se apontar também para as precárias condições de trabalho e para a baixa remuneração dos profissionais que atuam nas prisões, bem como para a sua má qualificação.  Para além de frágeis, pouco aprofundadas e distantes do cotidiano prisional, as formações ministradas aos agentes são voltadas quase que exclusivamente para o uso da força contra as pessoas presas. Adicionalmente, muitas administrações penitenciárias não formulam protocolos de atuação, de forma que os profissionais pautam suas ações em conhecimentos de companheiros de trabalho mais experientes ou com base no que acreditam ser o “certo”. Com isso, são frequentes as situações de violência entre os funcionários e os presos, sendo que a tortura marcam cotidianamente o cárcere.
Para além destes pontos, as famílias dos presos, sobretudo as mulheres, são constantemente violadas durante as visitas às unidades prisionais. A pena estipulada ao preso é basicamente estendida à sua família. Isso fica claro, por exemplo, durante os procedimentos de revistas vexatórias realizadas nas entradas das unidades prisionais. Em geral, as mulheres são obrigadas a se despir e a fazer movimentos corporais humilhantes diante de agentes penitenciários.
O Relator Especial da ONU sobre Tortura, Juan Mendez, condenou as práticas de revistas vexatórias, recomendando a abolição desses procedimentos nas unidades prisionais brasileiras. Apesar de terem sido proibidas recentemente em alguns estados do país, essas revistas ainda são realizadas nos estabelecimentos carcerários, afetando a manutenção de relações familiares e afetivas durante a privação de liberdade de uma pessoa. De fato, segundo a Defensoria Pública de São Paulo, em 2013, de cada 10.000 visitantes em prisões paulistas, apenas uma apreensão foi realizada a partir da revista vexatória, o que demonstra o quanto esses procedimentos são inócuos, além de extremamente violadores[2].
Além disso, ao não fornecer de maneira adequada os itens de higiene, limpeza e alimentação, as famílias – e, novamente, em especial as mulheres – recebem o ônus de garantir que seus parentes presos tenham materiais básicos durante a privação de liberdade.
Ensejam também fortes preocupações outras clivagens de gênero relacionadas ao ambiente prisional, já que as mulheres presas quase sempre apresentam suas necessidades negligenciadas pelo Estado. Os estabelecimentos de privação de liberdade femininos são geralmente meras adaptações de antigas construções carcerárias voltadas aos homens, estando em péssimo estado infraestrutural e pouco adequadas às mulheres. Adicionalmente, não são disponibilizados às presas materiais de higiene suficientes. Inclusive, recentemente foi amplamente divulgada nas redes sociais uma campanha de arrecadação de absorventes íntimos às presas, dada sua parca distribuição no sistema prisional feminino.
Os direitos das gestantes e lactantes privadas de liberdade são também sistematicamente violados, visto que há normas nacionais e internacionais cujas prescrições determinam que essas mulheres poderiam cumprir suas penas em âmbito domiciliar. Ao contrário disso, grávidas e lactantes permanecem privadas de liberdade em condições altamente degradantes. Nessa linha, deve-se registrar o fato de muitas mulheres presas darem à luz algemadas. Ao invés de gerar consternação, situações como essa são tratadas como triviais no Brasil.
Por sua vez, o público LGBT sofre violências constantes durante o encarceramento, pois são poucos os estados nos quais há políticas voltadas a esse grupo de pessoas. Quando existentes, essas ações, em geral, pouco escutam os sujeitos alvo da política e muitas vezes geram mais violações que soluções.
Diante de todo esse cenário apresentado, é muito grave o fato de os casos de tortura ocorridos nas prisões brasileiras não serem devidamente investigados, sendo o Estado o perpetrador central dessas práticas. Em regra, tais situações são banalizadas no ambiente carcerário e em outras circunstâncias, sendo comum escutar que não existe mais tortura no Brasil, como se esta prática tivesse ocorrido apenas nos porões da Ditadura Civil-Militar. Muito distante disso, os aspectos mencionados demonstram que a tortura é praticada diariamente nos cárceres brasileiros, seja por ação, seja por omissão dos agentes públicos, não recebendo, de maneira geral, o tratamento devido.
Ao custodiar uma pessoa, o Estado deveria garantir condições para que a prisão não ocasionasse um sofrimento maior do que o já gerado pela privação de liberdade. Diametralmente contrário a isso, o Estado provoca uma espécie de sanha punitiva em que o foco não é a prevenção ao crime e, sim, a vingança pela conduta cometida por uma pessoa. A pena se torna, então, a inflição consciente da dor (Nils, 2011)[3]. Para além da administração penitenciária, outros órgãos do sistema de justiça criminal, como o Ministério Público e o Poder Judiciário, têm, por lei, um papel fundamental na execução penal, devendo, por exemplo, fiscalizar sistematicamente as unidades prisionais. No entanto, muito aquém desta tarefa, tais órgãos permanecem em boa medida alheios ao que se passa dentro dos cárceres do País e, inclusive, chegam a legitimar tais violações.
De fato, a cultura institucional preponderante nestas esferas do sistema de justiça criminal se pauta pelo recrudescimento penal. Não é novidade que o Brasil é um dos países que mais encarcera no mundo. O DEPEN (2014) apontou que, entre 2008 e 2014, o Brasil aumentou seus índices de encarceramento em 33%. Já os Estados Unidos, país com maior população prisional do mundo, diminuiu neste mesmo período o encarceramento em 8%, seguido da China em 9% e da Rússia em 24%. Ou seja, o Brasil está na contramão da tendência mundial no que se refere ao aprisionamento. Mais grave que isso, há o uso abusivo da prisão provisória, de modo que, conforme esse mesmo estudo do DEPEN, 41% das pessoas presas em todo país não têm condenação. Em outras palavras, o Brasil prende muito e, ainda, prende mal, estabelecendo a privação de liberdade como regra geral, não como exceção.
Simultaneamente ao fato de ser punitivista e seletivo, o sistema de justiça cria uma redoma em torno de si que dificulta qualquer intervenção ou questionamento social. Com isso, mesmo que afrontem diretamente às normas, muitas decisões judiciais e muitas ações do Ministério Público permanecem incontestadas. De acordo com a pesquisa Julgando Tortura (2015)[4], os órgãos do sistema de justiça, sobretudo o Ministério Público e Poder Judiciário, atuam com rigor na apuração de casos de violência doméstica denunciados como tortura, mas não o fazem da mesma forma quando se tratam de ocorrências envolvendo agentes públicos como agressores, evidenciando falta de esforços por parte desses órgãos em apurar, processar e julgar esses casos.
Nesse sentido, longe de pensar em uma profunda reforma institucional, estes órgãos demandam mais privilégios, visando, sobretudo, a manutenção do seu status. Uma das consequências disso seria um distanciamento do Judiciário e do Ministério Público das populações historicamente vulneráveis, prejudicando a reversão do quadro altamente desigual e violador do País. Em suma, todo o cenário desenhado acima se reforça ainda mais a cada dia.
Nos últimos tempos, há uma série de projetos de emendas constitucionais e de leis que propõem o endurecimento das políticas, inclusive no campo dos direitos humanos. Áreas como saúde, educação e assistência social sentirão com severidade as consequências dessas propostas, principalmente com a possível aprovação no Senado Federal do Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 241. Se estas áreas, tão sensíveis em nossa sociedade, sofrerão os impactos de tais medidas, o que dizer do campo penal, cujas propostas que se apresentam são igualmente preocupantes e correspondem à ampliação dos riscos de maior incidência de violências institucionais, sobretudo da tortura.
Nessa linha, é importante destacar as seguintes medidas em cena: a redução da maioridade penal; o aumento do tempo de prisão e de internação de adolescentes e jovens em cumprimento de medida socioeducativa; a lei antiterrorismo; a admissão da execução da pena após condenação em segunda instância; o recrudescimento da política de drogas; e a privatização das prisões. Todas essas ações vêm sendo elencadas como essenciais para reverter os problemas de segurança pública que diariamente assolam o País. No entanto, ao contrário disso, como apontam estudiosos da questão prisional, gerariam efeitos drásticos à intensificação do encarceramento no Brasil, assim como o agravamento da criminalização das populações mais vulneráveis.
Dentro desse contexto, há que se ter precaução em relação aos possíveis rumos a serem trilhados pelo Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, criado em 2013. Esse Sistema Nacional é composto, entre outros órgãos, pelo Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. O Mecanismo Nacional, órgão autônomo, composto por peritos independes, está em funcionamento desde o início de 2015. O Comitê Nacional, por sua vez, é formado por doze instituições da sociedade civil e por onze órgãos do poder público federal. Uma das funções do Comitê é mapear casos de tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, bem como divulga-los e planejar ações e políticas preventivas. Iniciou suas atividades em meados de 2014 e encerrou o seu primeiro mandato ao final de julho de 2016, já tendo sido realizada a eleição de novos membros. No entanto, até o momento, a nova composição do Comitê Nacional não tomou posse, aguardando a nomeação a ser realizada pela Presidência da República. Em outras palavras, o Comitê Nacional está há mais de três meses sem funcionamento. Inclusive, o Ministério Público Federal já demandou ao Ministério da Justiça e Cidadania à instalação da nova composição do Comitê Nacional.
Outra frente prevista para o fortalecimento do Sistema Nacional é a implementação de Mecanismos e Comitês estaduais, cuja função se orienta para a prevenção à tortura em âmbito estadual. Atualmente, somente dois Mecanismos estaduais foram criados, no Rio de Janeiro e em Pernambuco, ao passo que 17 estados instituíram seus Comitês estaduais. Ou seja, urge que essa política seja reforçada e ampliada em todo o Brasil.
O que pode se perceber na coxia do cárcere é que a orientação e os rumos adotados pelo Estado brasileiro tendem a agravar ainda mais a situação lamentável em que vive parte significativa da população do país. Aposta-se cada vez mais na lógica policialesca, de encarceramento em massa, de guerra às drogas, bem como no desmonte de políticas e na fragilização delas. O caminho a ser seguido deveria ser justamente o oposto, já que o Estado deveria buscar saídas voltadas à redução da desigualdade e na democratização das instituições. Com isso, todo o cenário de violações projetado acima se desvaneceria, poupando a vida e a dignidade de muitas pessoas.


Bruna Angotti – Antropóloga e Membro do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, representante do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) no biênio 2014-2016
Catarina Pedroso – Psicóloga e Perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT)
Fernanda Machado Givisiez – Bacharel em Direito e Perita do MNPCT
Maria Gorete Marques de Jesus – Socióloga e Membro do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, representante do IBCCRIM no biênio 2014-2016
José de Ribamar de Araújo e Silva – Filósofo e Perito do MNPCT
Lucio Costa – Psicólogo e Perito do MNPCT
Thais Lemos Duarte – Socióloga e Perita do MNPCT
Esse artigo reflete opiniões pessoais e não as dos órgãos a que estão filiados os autores


[1] DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL. Levantamento Nacional de informações penitenciárias. INFOPEN – Junho de 2014. Brasília: Ministério da Justiça, 2014.
[3] CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crimes. Rio de Janeiro: Revan, 2011.


[4] A pesquisa foi realizada entre maio de 2011 e janeiro de 2015 por um conjunto de organizações, como Conectas Direitos Humanos, Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, Pastoral Carcerária, IBCCRIM e ACAT Brasil. Teve como objetivos construir um banco de dados de jurisprudência de tortura a partir de acórdãos coletados nos Tribunais de Justiça (TJs) dos estados brasileiros e analisar as decisões e compará-las. O relatório completo foi publicado em janeiro de 2015 e encontra-se disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/06/71c559732e6ec4d229f7e707fdab8700.pdf. Acessado em 27/10/2016.

Charge! Renato Aroeira via Facebook

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segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

"Não há dúvida de que "Macunaíma" é importante para entender o Brasil atual"


Nova edição do clássico de Mário de Andrade traz 520 notas explicativas buriladas pela escritora, professora e crítica literária Noemi Jaffe
A escritora, professora e crítica literária Noemi Jaffe (Foto: Alessandro Shinoda)
A escritora, professora e crítica literária Noemi Jaffe (Foto: Alessandro Shinoda)
Paulo Henrique Pompermaier
Da união de diversos mitos, folclores, músicas populares e lendas de todo Brasil nasceu Macunaíma (1928) do fundo do mato-virgem. Sua potência criativa, de explicar o brasileiro a partir dessa colagem cultural, no entanto, é frequentemente minada pela dificuldade do leitor penetrar na obra por sua complexidade lexical e morfológica.
Facilitar a aproximação com o livro, um dos mais importantes representantes do modernismo brasileiro, é o objetivo da nova edição de Macunaíma, que sai pela editora FTD. O livro traz notas e posfácio da professora doutora e escritora Noemi Jaffe, além de ilustrações de Mariana Zanetti.
São 520 notas de Jaffe que cobrem praticamente todos os aspectos do romance: as expressões indígenas e arcaicas, as referências folclóricas regionalistas, os erros propositais e até as repetições que podem ter algum significado para a interpretação final da obra.
“É uma edição que estimula o ensino e a leitura de Macunaíma não de forma mais fácil, mas com mais instrumentos de análise e interpretação”, explica Jaffe. Para a escritora, as notas podem contribuir para uma leitura mais profunda e complexa da obra, que muitas vezes é reduzida a nomes, datas e escolas literárias principalmente quando estudada no Ensino Médio.
Ilustração de Mariana Zanetti para a nova edição de Macunaíma
Ilustração de Mariana Zanetti para a nova edição de Macunaíma
Truques e cifras
A autora paulista, que já havia se debruçado sobre a obra de Mário de Andrade em Folha explica Macunaíma (2001), conta que teve duas principais fontes para o trabalho: o livro Roteiro de Macunaíma (1950), em que o crítico Cavalcanti Proença reúne diversas notas sobre a obra de Andrade; e as próprias indagações e percepções que teve durante o período em que lecionava literatura brasileira no Ensino Médio.
“[Macunaíma] é um livro cheio de truques, cifras que Mário de Andrade colocou ali com a intenção de dizer coisas subliminares. Então é importante o leitor comum ter um guia que possibilite uma leitura mais ativa do livro, não simplesmente passiva”, observa.
Falecido em 1945, novas edições da obra de Mário de Andrade começaram a se multiplicar desde o ano passado, quando seus escritos entraram em domínio público. E mesmo contando 89 anos desde sua publicação, Macunaíma ainda surge como uma figura contemporânea e explicativa. “Há ainda alguma dúvida de que [Macunaíma] é importante para conhecer o Brasil atual? É perfeito, como se nada tivesse mudado, ele está ai e é fundamental”, afirma Jaffe.
No posfácio, ao refletir sobre a importância de um ensino e leitura profunda de Macunaíma e seu significado para a cultura brasileira, ela ainda aponta duas correntes antagônicas de interpretação da obra: a argumentação de Haroldo de Campos, dizendo que a história de Macunaíma é vitoriosa por transmitir, como na tradição oral, uma memória enraizada do país; e a análise crítica de Gilda de Mello e Souza, que mostra como o antropófago do interior, os macunaímas da nação, foram devorados e derrotados pelos grandes capitalistas das emergentes cidades.
Concordando com ambas as leituras, Jaffe acredita que a “antropofagia ainda é uma forma muito eficaz de explicação de vários fenômenos políticos, sociais, econômicos e culturais do Brasil”. Para a professora, apesar de Macunaíma não ser um livro totalmente antropofágico, ele resvala na filosofia de Oswald, sendo um dos elementos que mostra como ela não se esgotou, mas está continuamente se atualizando.
capamacunaima Macunaíma – O herói sem nenhum caráter
 Mário de Andrade Notas e posfácio por Noemi Jaffe
FTD
R$: 52 – 248 págs.


(Publicado originalmente no site da revista Cult)

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Senhas fáceis para você memorizar e que nem a NAS conseguirá desvendar


Micah Lee
ESTÁ FICANDO CADA vez mais fácil proteger sua privacidade digital. Os iPhones agora criptografam grande parte de suas informações pessoais, seus discos rígidos no Mac e no Windows 8.1 são automaticamente bloqueados; e até mesmo o Facebook, que faturou uma fortuna com o compartilhamento aberto de informações, oferece criptografia de ponta a ponta na ferramenta de bate-papo WhatsApp. Mas nenhuma dessas tecnologias oferece a proteção esperada se você não souber criar uma frase secreta segura.
Uma frase secreta é como uma senha, apenas mais longa e mais segura. Funciona essencialmente como uma chave de criptografia que pode ser memorizada. Ao começar a se importar mais com sua privacidade e a aperfeiçoar seus hábitos de segurança no uso de computador, um dos primeiros desafios a ser enfrentado será a criação de uma frase secreta. Sem ela não é possível se proteger adequadamente.
Por exemplo, quando você criptografa seu disco rígido, um pendrive ou um documento em seu computador, a criptografia será tão segura quanto a sua frase secreta. Se optar por usar um banco de dados de senhas, ou um recurso de salvamento de senhas em seu navegador, crie uma frase secreta principal segura para protegê-los. Ao criptografar seus e-mails com PGP (Pretty Good Privacy – privacidade muito boa), sua chave privada é protegida com uma frase secreta. Em seu primeiro e-mail para Laura Poitras, Edward Snowden disse: “Confirme se ninguém teve acesso a uma cópia de sua chave privada e que ela usa uma frase secreta segura. Presuma que seu adversário é capaz de realizar um trilhão de tentativas por segundo”.
Neste artigo, descrevo uma forma simples de criar frases secretas extremamente seguras e fáceis de lembrar. É a última matéria de uma série em desenvolvimento de artigos que oferecem soluções — parciais e imperfeitas, mas úteis — para os muitos problemas relacionados à vigilância que investigamos agressivamente no The Intercept.
Acontece que criar uma frase secreta segura simplesmente pensando em uma é incrivelmente difícil e, se seu o adversário for realmente capaz de realizar um trilhão de tentativas por segundo, é provável que você não seja tão bem-sucedido. Se você usar uma sequência de caracteres completamente aleatória, a frase secreta pode ser segura, mas será angustiante memorizá-la (e, honestamente, um desperdício de energia cerebral).
Mas, felizmente, a dicotomia entre usabilidade e segurança é falsa. Há um método para gerar frases secretas impossíveis de serem adivinhadas até pelos adversários mais poderosos, mas possíveis de serem memorizadas por humanos. O método é chamado Diceware, e seu nome é baseado em um conceito matemático simples.

Seu macete para criar uma senha secreta não é inteligente

Com frequência, as pessoas escolhem frases baseadas na cultura pop — letras de músicas ou uma frase de um filme ou livro — e embaralham as letras ligeiramente, acrescentando maiúsculas, pontuação ou usando a primeira letra de cada palavra dessa frase. Algumas dessas frases secretas podem parecer seguras e completamente impossíveis de serem adivinhadas, mas é fácil subestimar a capacidade de quem se dispõe a adivinhá-las.
Imagine que seu adversário tenha obtido as letras de todas as músicas que já foram escritas, os roteiros de todos os filmes e programas de TV, os textos de todos os livros digitalizados até hoje e todas as páginas da Wikipedia, em todos os idiomas, e tenha usado esse material como base para sua lista de adivinhação de frases secretas. Sua frase resistiria?
Se você criou uma frase secreta tentando pensar em uma frase boa, há grandes chances de que ela não seja suficientemente segura para resistir a uma agência de espionagem. Por exemplo, você pode ter pensado em “Ser ou não ser/ ESSA é a Questão”. Se eu acertei, garanto que você não foi a primeira pessoa a usar essa frase batida de Shakespeare como frase secreta, e seu adversário sabe disso.
Passagens de Shakespeare não são seguras como frases secretas por conta de um fenômeno conhecido como entropia. Pense em entropia como se fosse aleatoriedade: um dos conceitos mais importantes em criptografia. Acontece que humanos são criaturas que seguem padrões e são incapazes de criar algo de forma verdadeiramente aleatória.
Mesmo se você não usar uma passagem de livro, mas criar uma frase em sua cabeça aleatoriamente, a frase estará longe de ser aleatória, porque a língua é previsível. Como explicou uma pesquisa sobre o assunto, “usuários não têm a capacidade de selecionar frases com palavras completamente aleatórias e são influenciados pela probabilidade de uma frase ocorrer na língua naturalmente”, ou seja, as frases secretas escolhidas por usuários não contêm o nível de entropia que você gostaria que tivessem. Seu cérebro tende a continuar a usar expressões e regras gramaticais comuns que reduzem a aleatoriedade da frase. Por exemplo, sua mente tende a colocar um advérbio depois de um verbo e vice-versa de forma desproporcional em relação à máquina, ou, para citar um dos casos da pesquisa mencionada acima, tende a colocar a palavra “maravilhosa” depois de “cidade”.
Frases secretas baseadas em cultura pop, fatos sobre sua vida ou qualquer coisa que venha diretamente de sua mente são muito mais fracas do que frases secretas embutidas de entropia verdadeira, coletada na natureza.
Esse vídeo curto, mas esclarecedor, da aula gratuita de criptografia da Khan Academy explica bem esse ponto.

Crie uma frase secreta segura com o Diceware

Apenas quando admitir que suas frases secretas antigas não são tão seguras quanto você imagina, você estará pronto para usar a técnica Diceware.
Primeiro, abra uma cópia da lista de palavras do sistema Diceware, que contém 7.776 palavras em português — 36 páginas que podem ser impressas em casa. No canto superior direito de cada página existem dois números separados por uma vírgula. Eles representam os dois primeiros resultados que determinarão a página a ser usada para selecionar aleatoriamente a primeira palavra. Os três resultados seguintes do lançamento de dados representarão a palavra a ser usada. Veja um exemplo na imagem abaixo:
Agora, pegue alguns dados de seis lados (isso mesmo, dados de verdade), lance-os diversas vezes e anote os números obtidos. Você precisa de cinco lançamentos de dados para chegar à primeira palavra da sua frase secreta. Dessa forma, você está gerando entropia, isto é, extraindo a mais pura aleatoriedade da natureza e a transformando em números.
Se lançar os dados e tirar 6,5,6,6,5, abra a lista de palavras Diceware na página 6,5, na linha 665 e chegará à palavra “vesgo”. (Ignore o acento para evitar problemas de configuração de teclado.) A palavra “vertice” será a primeira a compor sua frase secreta. Repita o processo acima. Você precisa de um frase secreta com sete palavras se estiver preocupado com a NSA, a Abin ou espiões chineses tentando adivinhar sua senha. (Veja mais detalhes sobre a lógica por trás desse número abaixo.)
Usando o Diceware, você chegará a uma frase secreta parecida com “vertice nutrir pardo paiol volupia”, “faringe caduco bulbo preciso voo afoito” ou “abade chiapas zunir olhado normal gestual arengar”. Se precisar de uma frase secreta mais segura, use mais palavras. Se uma frase secreta menos segura for aceitável para sua finalidade, você pode usar menos palavras.

As frases secretas do Diceware são suficientemente seguras?

A segurança de uma frase secreta baseada na técnica Diceware depende de quantas palavras ela contém. Se você selecionar uma palavra (em uma lista de 7.776 palavras), as chances de um invasor adivinhá-la são da ordem de 1 para 7.776. Seu invasor precisará tentar ao menos uma vez, no máximo, 7.776 vezes, e, em média, 3.888 vezes (já que há uma chance de 50% do invasor adivinhar sua palavra quando chegar à metade da lista).
Mas se você escolher duas palavras para sua frase secreta, a extensão da lista de frases possíveis aumenta exponencialmente. A chance de o invasor adivinhar sua primeira palavra corretamente ainda é de 1 em 7.776, mas para cada primeira palavra possível, a chance de a segunda palavra ser adivinhada corretamente também é de 1 em 7.776. Além disso, o invasor não saberá se a primeira palavra está correta até que adivinhe a frase secreta completa.
Portanto, com duas palavras, há 7.776ou 60.466.176 frases secretas possíveis. Em média, uma frase secreta de duas palavras baseada na técnica Diceware pode ser adivinhada após 30 milhões de tentativas. Uma frase secreta com cinco palavras, que teria 7.7765 frases secretas possíveis, pode ser adivinhada após uma média de 14 quintilhões de tentativas. (O número 14 seguido de 18 zeros.)
A dimensão da aleatoriedade de uma frase secreta (ou de uma chave de criptografia, ou de qualquer tipo de informação) é medida através de bits de entropia. Você pode medir a segurança de sua frase secreta de acordo com quanto bits de entropia ela contém. Cada palavra na lista Diceware equivale a aproximadamente 12,92 bits de entropia, já que 212,92 é igual a 7.776, aproximadamente. Portanto, se você escolher sete palavras, chegará a uma frase secreta com aproximadamente 90,5 bits de entropia, já que 12,92 vezes 7 é igual a 90,5, aproximadamente.
Em outras palavras, se um invasor souber que você está usando uma frase secreta de sete palavras com base na técnica Diceware e selecionarem sete palavras aleatórias da lista Diceware, a cada tentativa, o invasor terá a chance de adivinhar sua frase secreta de 1 em 1.719.070.799.748.422.591.028.658.176 por tentativa.
De acordo com o alerta de Edward Snowden em janeiro de 2013, com a possibilidade de um trilhão de tentativas por segundo, essa frase secreta levaria 27 milhões de anos para ser adivinhada.
Nada mau para uma frase secreta como “abade chiapas zunir olhado normal gestual arengar”, que é perfeitamente possível de ser memorizada pela maioria das pessoas. Compare a frase secreta acima a “d07;oj7MgLz’%v”, uma senha aleatória que contém menos entropia do que a frase secreta de sete palavras com base na técnica Diceware, mas que é muito mais difícil de ser memorizada.
Uma frase secreta de cinco palavras, por sua vez, seria adivinhada em pouco menos de seis meses, enquanto uma frase secreta de seis palavras levaria, em média, 3.505 anos para ser adivinhada, com base em um trilhão de tentativas por segundo. Levando em consideração a Lei de Moore, a capacidade dos computadores cresce constantemente — em pouco tempo, um trilhão de tentativas por segundo será considerado um desempenho lento — portanto, é importante manter suas frases secretas um passo à frente dos avanços tecnológicos.
Com um sistema como esse, não importa a lista usada para escolher suas palavras. Nem mesmo as palavras em si importam (palavras com duas letras são tão seguras quanto palavras de seis letras). O importante é a extensão da lista de palavras e que cada palavra na lista seja única. A probabilidade de uma frase secreta composta por essas palavras selecionadas de forma aleatória ser adivinhada diminui exponencialmente a cada palavra acrescentada, logo, é possível criar frases secretas que nunca serão adivinhadas.

Preciso mesmo usar os dados?

Esse é um debate mais extenso, mas a resposta objetiva é: o uso de dados de verdade oferece uma garantia muito maior de que nada deu errado. Mas é uma tarefa demorada e entediante, e o uso de um computador para gerar números aleatórios é quase sempre suficiente.
Mas infelizmente, parece não haver softwares fáceis de usar disponíveis para ajudar na geração de frases secretas com base na técnica Diceware, apenas alguns projetos no GitHub capazes de gerar frases secretas Diceware com base em linhas de comando que podem servir a usuários avançados. Fique atento para um artigo futuro sobre isso.

Como memorizar sua frase secreta maluca (sem ficar maluco)

Após gerar sua frase secreta, o próximo passo é memorizá-la.
Recomendo que você anote sua nova frase secreta em um pedaço de papel e o carregue com você por quanto tempo for necessário. Cada vez que digitar a frase secreta, tente usar a memória primeiro, mas consulte a anotação se precisar. Supondo que você digite a frase secreta duas vezes por dia, não deve levar mais de dois ou três dias para que a anotação não seja mais necessária e, portanto, destruída.
Digitar sua frase secreta regularmente permite que você a memorize por meio de um processo conhecido como “repetição espaçada”, de acordo com uma pesquisa promissora sobre frases secretas de alta entropia.

Agora que você sabe como usar frases secretas, saiba quando evitá-las

As frases secretas do Diceware são ótimas para descriptografar algo localmente em seu computador, como seu disco rígido, sua chave privada PGP ou seu banco de dados de senhas.
Você não precisa tanto delas para entrar em um site na Internet. Para isso, o uso de frases secretas de alta entropia tem um benefício menor. Invasores nunca conseguiram executar um trilhão de tentativas por segundo se a cada tentativa for preciso entrar em contato com um servidor na Internet. Em alguns casos, os invasores controlam ou invadem servidores remotos — de forma que podem obter sua frase secreta assim que você a digitar, independente do nível de criptografia da frase.
Para entrar em sites e outros servidores, use um banco de dados de senhas. Eu gosto do KeePassX porque é gratuito, usa código aberto, funciona em diversas plataformas e nunca armazena nada na nuvem. Basta trancafiar todas as suas senhas com uma frase secreta gerada por meio do Diceware. Use seu gerenciador de senha para criar e armazenar senhas diferentes e aleatórias para cada site que você usa.

Como usamos o Diceware para proteger nossas senhas

The Intercept conta com o servidor SecureDrop, um sistema de envio de informações confidenciais de código aberto que facilita o contato conosco e protege o anonimato de nossas fontes.
Quando uma fonte de informações nova visita nosso site SecureDrop, recebe um codinome composto de sete palavras aleatórias. Após enviar mensagens ou documentos, eles podem usar o codinome para ler as possíveis respostas de nossos jornalistas.
Na verdade, esse codinome age como uma frase secreta de criptografia para a fonte gerada por meio do método Diceware com um gerador de números aleatórios provido de segurança digital criptográfica, em vez de se valer do lançamento de dados. O dicionário do SecureDrop tem apenas 6.800 palavras (algumas palavras foram removidas pelos desenvolvedores por serem potencialmente ofensivas) fazendo com que cada palavra tenha aproximadamente 12,73 bits de entropia. Mas isso é mais do que suficiente para impedir que alguém descubra o codinome de uma fonte, a menos que tenha acesso a recursos computacionais poderosíssimos e alguns milhões de anos em mãos.
Frases secretas simples e aleatórias, em outras palavras, são tão eficientes na proteção de nossas fontes quanto na segurança de seu computador. É uma pena vivermos em um mundo onde cidadãos comuns precisem de tamanha proteção, mas enquanto esse for o caso, o sistema Diceware permite que nos protejamos com uma segurança no nível da CIA, sem ter que passar por um treinamento secreto avançado.
Agradecimento a Garrett Robinson por conferir meus cálculos matemáticos e evitar que eu cometesse erros tolos.

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Micah Leemicah.lee@​theintercept.com@micahflee
(Publicado originalmente no site do Intercept Brasil)

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Como a amizade entre um morador de rua e seu cachorro pode salvar a vida de ambos

Glenn Greenwald
Este artigo, que acompanha o filme Birdie (“Passarinho”), de Heloísa Passos, para o projeto Field of Vision, integra uma série de duas partes. A segunda parte acompanha o filme Karollyne.
ASSIM COMO ACONTECE em diversas cidades do mundo ocidental, existem atualmente milhares de moradores de rua no Rio de Janeiro. Essa população inclui famílias, crianças, jovens, idosos, mulheres e homens solitários. Muitos deles são moradores de rua há anos, sem perspectiva de sair dessa situação, especialmente agora que o país enfrenta uma crise econômica deteriorante acompanhada de rigorosas medidas de austeridade. Os moradores de rua estão presentes em abundância em grande parte dos bairros, incluindo locais de classe alta frequentados por turistas.
Em muitos aspectos, a condição dos moradores de rua do Rio é praticamente idêntica à dos sem-teto de outras grandes cidades: ela representa uma carência material e emocional inimaginável, falta de esperança, invisibilidade social e isolamento absoluto. Mas existe um aspecto em que a população de moradores de rua do Rio se destaca das demais: grande parte dessas pessoas convive com cachorros que também vivem nas ruas.
Muitos vivem nas ruas com seus cachorros há anos. Esses animais são cuidados com a mesma dedicação que uma família normal de classe média dispensa aos seus animais de estimação, ou, muitas vezes, até maior. A profunda relação formada entre essas pessoas e seus cachorros é diferente de qualquer outra e, por isso, extremamente reveladora.
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Assista a Birdie (“Passarinho), um filme sobre moradores de rua do Rio de Janeiro e seus cachorros, de Heloísa Passos.
Existem diversas formas de convívio entre moradores de rua e seus cachorros. Anderson Bernardes Carneiro (“Passarinho”), o protagonista do filme da Field of Vision (clique em play no reprodutor acima para assistir, e clique aqui para ver uma entrevista com a diretora), é um vendedor de frutas de 35 anos do estado do Amazonas que passou 12 anos na prisão e agora vive uma vida solitária nas ruas do Rio com seus dois cachorros. Karollyne, a protagonista do outro filme do FOV desta semana, é uma mulher trans que tem o papel de matriarca de um acampamento de mendigos na floresta que, coletivamente, toma conta de 19 cachorros e quatro gatos, quase todos abandonados por pessoas que decidiram que não queriam mais esses animais e os deixaram no meio da floresta, sem alimentos.
Alguns desses moradores de rua são casais que cuidam de seus cachorros como se fossem filhos. Outros são protegidos pelos cachorros quando dormem em áreas perigosas, e ainda há casos de quem trabalha com o cachorro para pedir esmola ou realizar pequenos espetáculos em troca de dinheiro. Mas, em todos os casos, a brutalidade da situação dos desabrigados se une à forma especial com que cachorros se relacionam com humanos para criar uma conexão emocional e psicológica surpreendente, que muitas vezes salva a vida de ambos.
É evidente que o Rio não é a única cidade do mundo onde moradores de rua cuidam de cachorros abandonados. Leslie Irvine é uma professora de sociologia da Universidade do Colorado que dedicou grande parte do seu percurso acadêmico ao estudo dessa relação especial, incluindo o motivo pelo qual vários habitantes de rua dizem que ter um cachorro “mudou ou salvou suas vidas”. O livro recém-lançado que escreveu sobre o assunto, My Dog Always Eats First: Homeless People and Their Animals (“Meu cachorro sempre come primeiro: moradores de rua e seus animais”, sem tradução no Brasil), documenta como os “moradores de rua demonstram níveis de afeto perante seus animais que por vezes superam aqueles encontrados entre pessoas com domicílio”.
Há uma organização sem fins lucrativos nos EUA “totalmente dedicada a alimentar e fornecer tratamento veterinário de emergência aos animais de estimação dos moradores de rua”, e estima-se que pelo menos de 5 a 10% da população dos sem-teto dos EUA conviva com animais. Em algumas áreas, este número chega a 25%. Ocasionalmente, são divulgados relatórios nas mídias norte-americanas destacando a quantidade de moradores de rua que insistem que “seus companheiros animais são seus melhores amigos, o oxigênio que traz sentido às suas vidas”.
Mas há muito mais a aprender com essa situação. Examinar a forma como os moradores de rua se relacionam com seus cachorros é entender, como diz Irvine, “as relações únicas que são formadas com animais e as histórias únicas dos indivíduos que formam essas relações”.
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Assista ao trailer de Karollyne, um filme de Heloísa Passos.

Ao entrarmos de cabeça neste fenômeno, aprendemos mais sobre a capacidade de empatia e sacrifício pessoal do ser humano, mesmo nas situações de mais extremo sofrimento.

Esse assunto também nos permite compreender melhor a busca universal do ser humano por amor, companheirismo e integração social; a natureza perniciosamente falsa de estereótipos que aceitamos implicitamente sobre moradores de rua; e a capacidade especial dos cachorros de penetrar, integrar e preencher exatamente os campos emocionais e psicológicos que os humanos protegem com mais vigilância.
Para que possamos estar abertos a essas conclusões, precisamos nos livrar de diversos preconceitos. Irvine relembra o cinismo, e até mesmo o ódio, que sentiu após sua primeira interação com um morador de rua e seu cachorro. Preocupada com a exposição do cachorro ao calor intenso do Colorado e presumindo que o animal não teria comida ou água suficiente para sobreviver, Irvine primeiro tentou “salvar” o cachorro oferecendo dinheiro ao morador de rua para comprá-lo. Quando ele recusou furiosamente o seu dinheiro, ela entrou em contato com o Centro de Controle de Zoonoses para que eles pudessem “resgatar” o animal, mas logo descobriu que, uma vez que o cachorro não estava sendo vítima de maus tratos, não havia nada que eles pudessem fazer.
Foi só mais tarde, após ter começado a estudar esse relacionamento, que Irvine descobriu que os cachorros são mais importantes para os moradores de rua do que para quem tem um domicílio e, por isso, recebem melhores cuidados. Essa devoção é tão intensa que muitos moradores de rua se recusam a solicitar alojamento em abrigos se a instituição não permitir a entrada do cachorro. Eles preferem dormir nas ruas com seu cachorro do que em uma cama sem ele.
Para os cachorros, viver nas ruas com um companheiro humano dedicado por vezes implica pouca ou nenhuma carência. Casas são uma invenção humana, e não canina. “É evidente que os cachorros precisam de alimentos, cuidados médicos e proteção contra intempéries”, disse Irvine, “mas eles não precisam de uma casa. O que eles mais precisam é do companheirismo humano, e isso é algo que recebem mais frequentemente de moradores de rua do que de quem vive em uma casa”.
Passarinho insiste que os cachorros que vivem nas ruas com um companheiro humano são “mais felizes” do que aqueles forçados a viver dentro de uma casa. “O cachorro nas ruas fica mais à vontade, mais ágil, mais ousado”, diz ele. “Ele brinca e se arrisca mais”.
Quando, há muitos anos, eu comecei a reparar na quantidade de moradores de rua do Rio que tinham cachorros, minha primeira reação também foi marcada pelo cinismo. Eu presumi implicitamente que se tratava de um artifício para extrair mais simpatia e, consequentemente, mais esmolas dos amantes de animais. Essa terrível suposição se dissipou rapidamente quando comecei a conversar com esses moradores e observar aqueles que, sem reparar que alguém estava olhando, alimentavam seus cachorros com as mãos, lhes davam remédios, brincavam com eles alegremente, os beijavam ou eram beijados por eles ou dormiam abraçados com os seus parceiros caninos.
Os humanos apreciam mais aquilo que para eles é importante e, para aqueles que vivem nas ruas sem nada ou ninguém, sua devoção principal é seu cachorro. E essa devoção é retribuída pelo cachorro, que também não tem nada.

Karollyne e um de seus cachorros.

O que primeiramente criou meu interesse por essa relação foram as reações às minhas primeiras ofertas de ajuda.

Separar-se permanentemente do seu cachorro é o pesadelo de qualquer amante desses animais. Como resultado, eu normalmente me voluntariaria para comprar uma coleira. As reações eram quase universais: “Eu não preciso disso. O cachorro me segue para onde quer que eu vá. Quase nunca nos separamos. E, quando temos que nos separar, ela espera por mim até o meu retorno”. A conexão entre cachorro e ser humano no universo dos moradores de rua é marcada por uma unidade total, resultando em um vínculo físico e mental tão confiável quanto uma coleira.
Em vez de um pedaço de corda desnecessário, eles normalmente pedem alimentos ou remédios de que o cachorro pode precisar. Nos casos que eu observei, não houve um único morador de rua que tenha tentado converter uma oferta para comprar algo para o cachorro em algo que beneficiasse a si próprio: os pedidos eram feitos separadamente. Em pouco tempo ficou claro que o bem-estar do cachorro é a maior prioridade e a preocupação mais urgente dos sem-teto. Em outras palavras, aqueles com mais necessidades pessoais são simultaneamente motivados por níveis incalculáveis de autossacrifício por outro ser vivo.
É comum ver moradores de rua pegando pratos de comida doados por alguém e, mesmo sofrendo de fome, dividindo-os instantaneamente em duas partes e dando uma delas para o seu cachorro (vem daí o nome do livro de Irvine: “Meu Cachorro Sempre Come Primeiro”). Também é comum ver um sem-teto com vestes imundas sentado perto de um cachorro bem tratado. Muitos cachorros ficam acordados enquanto o dono dorme para protegê-lo de ladrões e outras ameaças, um benefício valiosos em muitas áreas do Rio. A pessoa sem-teto e o cachorro sem-teto encontram-se e compartilham um vínculo de privação e autossacrifício mútuos, atendendo a necessidades que, em circunstâncias diferentes, seriam completamente negligenciadas. Os cuidados não são só oferecidos de uma parte para a outra; trata-se de uma relação recíproca.
Quando falam a respeito de seu relacionamento com seus cachorros, os moradores de rua demonstram ter plena consciência do seu valor. Vários deles, senão mesmo a maioria, identificam como a pior parte da sua condição o isolamento e a invisibilidade social, e não as dificuldades materiais. Movidas por uma combinação de culpa e medo, a maioria das pessoas simplesmente finge que os moradores de rua não existem, passando por eles nas ruas sem reconhecer sua presença. Trata-se de desumanização na sua forma mais pura: Eles não são nem sequer visíveis para outros seres humanos, quanto mais dignos de interação. Eles não têm nenhuma função ou papel dentro da sociedade; é um isolamento total.
Os cachorros servem como substitutos do contato humano, que é tão necessário para um indivíduo quanto água ou alimentos (é por isso que o confinamento solitário é uma tortura, ocasionando inevitavelmente distúrbios mentais). Os amantes de animais normalmente se preocupam primeiro com os cachorros sem-teto, e só depois reconhecem os humanos indigentes que tomam conta deles. O fato de que aquele amante de animais é um morador de rua se torna rapidamente irrelevante.
Pessoas de contextos socioeconômicos radicalmente diferentes normalmente se consideram quase extraterrestres, sem nada em comum. O oposto acontece com animais. Os cachorros que vivem nas ruas têm mais semelhanças do que diferenças com cachorros que vivem com famílias de classe média ou alta. Não se trata de uma verdade absoluta, mas, no geral, os fatores que criam hierarquias rígidas entre os humanos não influenciam cachorros. “Até o bicho aceita o outro bicho”, diz Passarinho. “Ser humano não aceita o outro”.
Assim sendo, não só é fácil, como também inevitável para um amante de animais, seja qual for o contexto social de onde venha, encontrar experiências, perspectivas e emoções em comum com um morador de rua para quem os cachorros também são importantes. A experiência de cuidar e amar seu cachorro transforma-se assim em um dos poucos pontos de contato entre os sem-teto e a sociedade geral que os isolou. Por vezes, é o único ponto de contato.
Para sociólogos como Irvine, os cachorros servem de “facilitadores sociais”, ou fatores que unem pessoas que, em outras circunstâncias, jamais estariam em contato. “Quando as pessoas falam a respeito dos seus cachorros”, disse ela, “todas as diferenças desaparecem, e todos estão em pé de igualdade. Para um sem-teto, cuja existência sempre foi ignorada, isso é de um valor incomparável”.
Passarinho descreve sua experiência da seguinte forma: “Se me deitar ali na calçada, ninguém fala comigo. Passam, cortam até caminho. Mas se os cachorros estiverem brincando como estão aqui, eles dizem: ‘nossa, tão bonitinho!’”. Mesmo sabendo que foram os cachorros, e não ele, que motivaram a interação, a importância de ser visto não é ignorada. Essa relação com seus cachorros permite a satisfação de uma necessidade humana fundamental: ser reconhecido por outros seres humanos.

Passarinho em uma praia no Rio.

Mas esse vínculo proporciona muito mais do que o benefício pragmático da integração social.

Um dos aspectos mais surpreendentes dos testemunhos que ouvimos é a frequência com que se diz que esses cachorros literalmente salvaram a vida de pessoas. Os cachorros normalmente são os catalisadores que os libertam de comportamentos autodestrutivos como abuso de álcool ou drogas, ou reprimem a vontade de se suicidarem, ou atenuam a depressão, ou criam uma determinação de estabilizar e melhorar suas vidas. De acordo com Irvine, “Esse é o valor redentor do relacionamento, de que ouvimos várias vezes quando falamos com os sem-teto”.
Como o relacionamento com um cachorro pode atingir um sucesso tão monumental em uma área onde a psicologia, e medicina e o simples desejo humano falham com tanta frequência? Uma explicação é que a responsabilidade de tomar conta de outro ser vivo proporciona objetivo, foco e, consequentemente, autoestima — todas elas necessidades humanas essenciais. Outro aspecto é a validação e a autovalorização que adquirimos com o amor demonstrado pelo cachorro. Ou, conforme diz Irvine: “Construímos uma ideia dos cachorros como seres ideais — eles amam incondicionalmente, eles não mentem, eles não julgam os outros — então, se um ser tão nobre assim nos ama, alguma coisa temos para oferecer”.
A qualidade de não julgar dos cachorros é fundamental. Quem vive nas ruas sofre uma condenação implícita e constante. Os moradores de rua sabem exatamente o que a sociedade pensa deles. Eles veem essa atitude implícita em cada tentativa de evasão, em cada expressão de suspeição da polícia, em cada gesto de condescendência e incômodo — mesmo entre aqueles que param para dar dinheiro. Há quem lhes diga que eles não merecem nem ter animais de estimação.
Os cachorros não carregam nenhum desses julgamentos. Para um cachorro, tudo isso não passa de valores artificiais: Eles simplesmente amam e protegem aqueles que os tratam bem. Como diz Passarinho no filme: “Se o outro é mais bonito ou mais feio, mais pobre ou mais rico, sempre alguém fala um do outro, né?” Cachorro não”. Para um morador de rua, receber uma quantidade tão grande de amor, afeto e apreço pode significar uma mudança de vida, e muitos deles só recebem isso dos seus cachorros.
Nós não compreendemos plenamente a relação entre humanos e cachorros porque nós não compreendemos plenamente os cachorros, e nem poderíamos. Eles percebem o mundo de uma forma diferente, pensam o mundo de uma forma diferente e reagem ao mundo de uma forma diferente. E é indiscutível que eles respondem aos humanos de uma forma muito diferente de qualquer outro humano.
Sabemos ainda menos a respeito dessa relação no universo dos moradores de rua. Como diz Irvine: “Os estudiosos de hoje entendem muito melhor a dinâmica dos relacionamentos entre humanos e animais, mas até agora a pesquisa se concentrou principalmente na manifestação dessa dinâmica em contextos de classe média. Sabemos pouco sobre como esses relacionamentos ocorrem nas margens da sociedade, entre aqueles que não vivem em casas, mas sim nas ruas”.
Mas o que sabemos é que os cachorros evoluíram vivendo como fiéis companheiros dos homens por milhares de anos. A essência de um cachorro está intimamente ligada à sua relação com os humanos. Como Irvine me explicou, “Muitas pesquisas comprovam que os cachorros precisam do nosso contato visual, que eles olham para onde estamos apontando porque querem saber para onde estamos olhando. Isso demonstra que eles compartilham uma intersubjetividade, o sentimento de ‘eu quero saber o que ele está pensando’”.
Uma vez que eles são predispostos a ter esse relacionamento social com humanos, várias de suas características — expressões faciais, linguagem corporal, sensações tácteis, formas de expressar emoções — podem suscitar respostas psicológicas e emocionais que, para várias pessoas, são inacessíveis por outros meios. Nas sociedades ocidentais da era industrial, as funções tradicionais de caça e pastoreio dos cachorros diminuiu, mas a relação entre cachorros e humanos se tornou cada vez mais popular e mais priorizada (o Brasil e os EUA estão na vanguarda dessa tendência). Isso acontece porque os cachorros são os únicos seres capazes de fornecer algo que é profundamente valioso para os humanos.
A ideia de se “fortalecer” é tentadora para qualquer ser humano, de construir uma rígida camada autoprotetora em torno das nossas necessidades emocionais e psicológicas mais vulneráveis em uma tentativa fútil de fazê-las desaparecer, eliminando assim a dor proveniente de não satisfazê-las. Esse esforço é sempre vão, pois essas necessidades são intrínsecas ao ser humano e não desaparecem quando queremos; o que esse processo de “fortalecimento” produz é medo, ressentimento, isolamento e frustração. A tentação de se autoproteger desta forma é particularmente forte entre aqueles que vivem nas ruas e não têm nenhuma perspectiva de satisfazer suas necessidades psicológicas e emocionais.
Os cachorros ajudam com tudo isso. Eles dão vida aos aspectos psíquicos e emocionais dos seres humanos que normalmente são mais negligenciados. Para aqueles que vivem em um estado de privação extrema, esse é um benefício inestimável, que gera felicidade e gratidão. Por sua vez, essas emoções geram o seu próprio conjunto de benefícios para os vira-latas que começam a acompanhar os moradores de rua, criando um ciclo recíproco e autossustentável de assistência e afeto mútuos que fortifica constantemente o vínculo.
Podemos obviamente aprender muito a respeito de cachorros e moradores de rua assistindo fragmentos da vida de pessoas como Passarinho e Karollyne. Mas também podemos tirar conclusões importantes sobre nós próprios.
Veja Birdie aqui, e leia uma entrevista com a diretora (em inglês) aqui.

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Glenn Greenwaldglenn.greenwald@​theintercept.com@ggreenwald

domingo, 1 de janeiro de 2017

Os filisteus e a universidade pública em chamas

                               
 


É verdadeiramente desconcertante vê e ouvir a reação dos desavisados que se defrontam hoje com as imagens de salas quebradas, livros desarrumados, equipamentos fora de lugar, sujeira, pichação e a desordem reinante nas salas de aula do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH). Triste fama tem esse instituto de ciências humanas: de local preferido dos suicidas a pardieiro universitário. A quem cabe a responsabilidade de tamanha desolação? – Aos estudantes, que lutaram bravamente (e sozinhos) contra a aprovação da PEC da morte (da morte do ensino, da morte da saúde, da morte do investimento público etc.)? – Aos professores, que abandonaram a instituição, quando se decretou a greve dos docentes e a ocupação dos institutos? – A direita universitária – hoje representada publicamente por um indivíduo chamado de Jungmann e que incrimina o reitor pela sua leniência? – Aos infiltrados da polícia no movimento das ocupações para desmoralizar o movimento? À própria polícia que vem se acostumando a invadir o campus, desrespeitando a autonomia universitária, ao primeiro ruído de conflito? – Aos empresários do ensino pago, que torcem pelo fim da universidade pública?  Ou ao próprio governo federal, que não nega – através de seu ministro avicultor – a sua má vontade para com o financiamento da Universidade Pública?

Ao invés de, simplesmente “emprenharem” pelos olhos e os ouvidos – como dizia a minha velha professora de Português – tudo aquilo que escutam ou pensam que viram através do cenário da destruição, deviam ter um pouco de senso crítico e não fazer coro com os que declaradamente ou não, querem usar o movimento estudantil  como arma contra a Universidade Pública, inflamando os ânimos dos “idiotas da objetividade” que só sabem repetir o óbvio e os chavões do senso comum: estudante é para estudar, estudante não é baderneiro, vândalo, bandido ou coisa do gênero. Belos professores esses. Omitem-se diante da crise e tomam posição contra as vítimas da incúria governamental. Devem ser da marca dos filisteus de Nietzsche que só enxergam os pontos do “curriculum Lattes” (aquele que não morde), e nada mais. Não se interessam pelo que se passa no entorno da instituição universitária, e acham que os protestos são casos de polícia. Isso até perderem seus empregos, seus salários, suas aposentadorias e as próprias salas de aula, com o fim da universidade pública.

Com docentes como esses que veem nos estudantes seus inimigos, a Universidade Pública não precisa de inimigos. Já os tem bem instalados em suas entranhas. Corporativismo, alienação, conformismo, medo e espírito de vingança contra os estudantes. Universidade minada, por dentro e fora. Só os estudantes são os que ainda podem salvar o patrimônio público, de lutar por ele, se sacrificar por ele. Seus professores estão confortavelmente sentados nas poltronas da iniquidade e da cegueira, na condição de juízes de instrução ou de carrascos.
.” Viva los Estudiantes!”, como dizia uma velha canção. Eles são o sal da universidade pública, que a protege da podridão moral e política que campeia no campus universitário.

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE.