pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Uma história sobre a revolução de um título

 


Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimiga. Seja a cuidadora de sua enfermeira. Vá a uma prisão e recrie a cena central de 
A revolução dos bichos.

Paul B. Preciado, em Um apartamento em urano (Zahar).

 

O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), criado em 1961 por um grupo de empresários do Rio de Janeiro e São Paulo e por oficiais que orbitavam em torno da Escola Superior de Guerra (ESG), foi (não só) disseminador de propaganda anticomunista e grupo de extrema-direita no Brasil, mas um núcleo golpista com agenda política própria. Ao lado dos militares, protagonizou o processo de ocupação da estrutura do Estado após (aquele!) março de 1964, funcionando regularmente até 1973.

A historiadora Heloisa Starling (UFMG), coautora de Brasil: uma biografia (Companhia das Letras)conta que o IPES sempre foi “uma organização de ingresso controlado e vida dupla”. Publicamente, se apresentava enquanto instituição de orientação política conservadora que se voltava para a realização de estudos e debates sobre o contexto sócio-histórico brasileiro. Reunia empresários e diretores de empresas multinacionais que tinham influência e atuação no país, dirigentes das principais associações de classe empresariais, militares, jornalistas e intelectuais. “Todos eram ostensivamente envolvidos em atividades de produção intelectual e de divulgação que contemplavam desde a edição de livros e filmes até a realização de palestras e pesquisas sobre a realidade brasileira”, pontua.

“O IPES agiu contra Goulart com uma política de duas vertentes. A primeira consistiu na preparação e execução de um bem orquestrado esforço de desestabilização do governo, que incluiu custear uma vigorosa campanha de propaganda anticomunista, bancar diversos tipos de manifestações públicas antigovernistas e escorar inclusive financeiramente grupos e associações de oposição ou de extrema direita. A segunda traçou estratégias de planejamento e de diretrizes para subsidiar um novo projeto de governo e de desenvolvimento para o país, aberto ao fluxo do capital internacional e vocação autoritária. Era um núcleo de conspiração golpista com agenda política própria; seus membros estavam estrategicamente informados e muito bem posicionados entre os conspiradores que derrubaram Goulart e durante o processo de ocupação da estrutura do Estado após março de 1964”, conclui Starling.

O instituto realizava edições, traduções, publicações e distribuía livros, revistas e folhetos. Comprava edições inteiras de livros publicados por outras editoras e tornava-as comercialmente viáveis, patrocinava feiras de livros com “literatura democrática” e tinha objetivo de atingir públicos variados. Um dos livros foi o Animal farm, conhecido pelo público brasileiro por A revolução dos bichos, de George Orwell (1903-1950). O livro é agora relançado pela Companhia das Letras com tradução de Paulo Henriques Britto e com o título de A fazenda dos animais.

Em conversa com Emilio Fraia, editor da Companhia das Letras, ele explica que essa nova edição pretende lançar luz sobre como A fazenda dos animais se tornou A revolução dos bichos quando lançado pela primeira vez no Brasil, em pleno 1964.

“Nossa ideia é contar esta história, abrindo um capítulo novo na trajetória brasileira deste livro tão importante — e pensamos que essa atualização/contextualização ganharia força se ao livro fosse devolvido o seu título original, A fazenda dos animais. A operação, a princípio, pode gerar alguma resistência (o título está há mais de cinquenta anos entre nós)”. Nas palavras de Fraia, o interesse é o de pensar o livro a partir de uma perspectiva diferente, a começar pelo título. “Como editor, espero que isso possa oxigenar a recepção da obra, sugerir novos caminhos críticos e de leitura”.

*

A história do livro é das mais conhecidas: os animais da Fazenda do Solar estão cansados da exploração a que são submetidos pelos humanos, se revoltam e tomam posse do lugar no intento de instituir um sistema cooperativo e igualitário. Não demora para que alguns bichos passem a usufruir de privilégios, fazendo com que o sistema de opressão que antes era elaborado pelos humanos passasse a existir de forma ainda mais forte e contraditória. Escrito durante a Segunda Guerra, A fazenda dos animais é uma grande sátira sobre governos autoritários, dispositivos de poder e suas formas sistemáticas e burocráticas de operação, ainda que tenha sido por tanto tempo considerado crítica fajuta ao regime soviético. 

Orwell sempre foi crítico ferrenho de qualquer tipo de totalitarismo. Teve várias decepções com o regime soviético e mesmo tendo continuado a ser socialista — acreditava, na verdade, que o mito soviético “atrapalhava” o socialismo ocidental –, acabou por ver seu livro verter-se em propaganda contra o socialismo.

Pernambuco conversou com Marcelo Pen, professor e doutor em teoria literária e literatura comparada pela USP e autor do posfácio desta nova edição, que explicou um pouco sobre o episódio um tanto orwelliano, diga-se, de como A fazenda dos animais tornou-se A revolução dos bichos e foi instrumentalizado como arma ideológica no Brasil.

Pen conta sobre quando notou o longo intervalo entre o lançamento do original, em 1945, e o lançamento da edição brasileira em pleno 1964. “Me pus a ler sobre a história da recepção dessa obra, no exterior e aqui: o papel da CIA e do serviço secreto inglês, a atuação da viúva do Orwell, o filme de animação e a atuação do IPES/Ibad, aqui no Brasil etc etc”, ele comenta. Até mesmo a CIA ajudou a divulgar o livro e a espalhar a ideia de que toda revolução descamba em um regime de horrores. Àquela altura, Marcelo havia notado que nada dessa história de manipulações era novidade; os fatos haviam sido contados e documentados fartamente, mas ainda se encontravam muito dispersos.

O livro foi traduzido pelo capitão Heitor de Aquino Ferreira, auxiliar mais próximo do general Golbery do Couto e Silva e seu discípulo de vida – foi também secretário de Golbery de 1964 a 1967 e de Ernesto Geisel de 1971 a 1979. Os arquivos do IPES, que possuíam dados de cerca de 400 mil brasileiros, serviram de base para Golbery criar o Serviço Nacional de Informações (SNI), em junho de 1964. Golbery coordenava a elaboração de diretrizes, projetos e difusão de doutrina do IPES. E Heitor considerava A fazenda dos animais um livro eficiente como propaganda anticomunista; o traduziu e enviou para a Editora Globo, de Porto Alegre. O IPES se encarregou de comprar parte da edição. Mais tarde, em 1966, o instituto bancou também a publicação de 1984.

É interessante pensar que os fatos sobre esse contexto não foram escondidos: foram esquecidos, deixados de lado. O público passou a receber A revolução dos bichos como “a” grande obra de Orwell e já não se pensava mais no título ou mesmo no fato de que se trata de uma versão da obra, historicamente e politicamente elaborada, por sinal, no contexto da ascensão do regime ditatorial brasileiro.

 

Nova edição

A fazenda dos animais faz parte de um projeto de reedição pela Companhia das Letras junto com outra obra de Orwell, 1984, que ganhou nova e belíssima edição pela editora. A ideia, segundo Fraia, é dar ao leitor opções variadas para estas obras emblemáticas. “Até o fim deste ano, aliás, teremos: 1984 nas edições especiais, Penguin, trade [tipo de brochura] e graphic novel (adaptada por Fido Nesti); A revolução dos bichos nas edições trade graphic novel; e A fazenda dos Animais nas versões especial e Penguin”, diz.

“Acho que os leitores lerão a nova e ótima tradução do Paulo Henriques Britto e seguirão lendo A revolução dos bichos, na tradução do Heitor Aquino Ferreira. Novas edições com o título A revolução… fariam sentido hoje em dia? Não sei. Mas a tradução do Heitor, além de muito boa, é parte da história do livro, e a partir dela podemos pensar em aspectos importantes relacionados à política e literatura, tradução e política”, conclui Fraia. 

A obra de Orwell ainda será retomada por outras editoras nos próximos meses. A L&PM vai publicar A fazenda dos animais em 2021, também seguindo a ideia de manter o título original de Orwell, com tradução assinada por Denise Bottmann. A editora Autêntica também vai lançar o livro, com tradução de Fabio Bonillo, e a Antofágica encomendou uma versão da fábula em português a Rogerio Galindo, que será publicada em 2021, ainda sem uma decisão sobre que título vai estampar a capa do livro.

*

A partir de seus escritos, Orwell sempre pareceu almejar que as histórias viessem à tona, que os fatos não fossem ocultos ou escamoteados. A importância desta nova edição reside não só na possibilidade de elaboração de novas chaves de leituras críticas para nós – afinal, um livro que critica a opressão burocrática, em contextos sócio-históricos atravessados por autoritarismos e totalitarismos, faz com que Orwell seja leitura importante nesses tempos em que vivemos no Brasil –, também esboça lição valiosa: se, como aponta este aforismo foucaultiano, “a política é a guerra continuada por outros meios” – e se esses meios se elaboram pelo tensionamento conflitivo do discurso político –, resgatar a história desse título e de seu apagamento é investir contra a instrumentalização de narrativas – substância essencial do projeto literário do autor – em tempos em que a verdade, conceito-chave ao pensamento e às práticas democráticas, vem tornando-se algo cada vez mais fragilizado.

Ao realizar uma arqueologia da criação orwelliana e dos movimentos políticos que sua obra traça, a nova edição nos aponta os perigos daquilo que passa despercebido e a impossibilidade de se “esquecer” por decreto.

(Publicado originalmente no Suplemento Pernambuco)

 

Itamar Assumpção tem vida e obra celebrada em museu virtual

 Redação

Itamar Assumpção tem vida e obra celebradas em museu virtual
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Itamar Assumpção em 1987; museu virtual em homenagem ao artista abre hoje (Foto: Manoel Soares/Agência O Globo)

 

[Música] Museu Virtual Itamar Assumpção

Nesta sexta-feira (20) acontece a abertura do Museu Virtual Itamar Assumpção (MU.ITA) em homenagem ao cantor, compositor, escritor, instrumentista, ator e produtor paulista. Com direção geral de Anelis Assumpção, filha do artista, o museu conta com um acervo de mais de dois mil itens do músico, exibidos em uma mostra permanente. Além disso, o projeto também terá exposições de curta duração de artistas contemporâneos, loja exclusiva e um espaço dedicado a trabalhos relacionados a religiões de matriz africana, a Sala Serena. A curadoria é assinada por Anelis, Frederico Teixeira e Ana Maria Gonçalves.

O museu traz uma perspectiva preta e afrofuturista para a história de Assumpção, principal nome da vanguarda paulista, e situa o seu legado em meio a trajetória de outros artistas e pensadores negros como Elza Soares, Jimi Hendrix e Abdias Nascimento. Na plataforma, ainda é possível ouvir todos os discos do músico, recentemente disponibilizados nas plataformas de streaming. O museu será também o primeiro no Brasil a disponibilizar traduções para o iorubá. Para celebrar a abertura, Anelis faz uma live hoje às 21h30 cantando músicas do pai. A transmissão acontece pelo site do museu.


[Cinema] Cine África

Até a próxima quinta (26) dá para assistir aos curtas-metragens da mostra Quartiers Lointains – Afrofuturismo, parte da programação do Cine África, exibido pelo Cine Sesc. Com curadoria de Claire Diao (Burkina Faso/França), a mostra exibe filmes que trazem a diversidade de narrativas que surgem da África em torno do universo do afrofuturismo. E daí se as cabras morrem? (Sofia Alaoui, França, Marrocos), Este foi para o mercado (Jim Chuchu, Quênia), Ethereality (Kantarama Gahigiri, Suíça, Ruanda), Hello, rain (C. J. Obasi, Nigéria) e Zumbis (Baloj, República Democrática do Congo, Bélgica) são os títulos em cartaz. Veja a programação completa e assista aos curtas pelo site do Sesc Digital.

[Dança] Dançadoras de Histórias

Nesta sexta (20) e na próxima (27), às 19h, a Ouvindo Passos Companhia de Dança apresenta o espetáculo Dançadoras de Histórias em parceria com o Centro de Referência da Dança da Cidade de São Paulo. As apresentações buscam valorizar as ancestralidades e oralidades negras por meio do corpo como peça central das conexões e atribuições de sentido entre as pessoas. As coreografias são criadas a partir de atividades de improvisação, inspiradas nas narrativas da arte educadora Beth Castro. Grátis, no Facebook da companhia.

[Bate-papo] Diálogos de Bastidores

Nesta sexta (20), às 19h30, os guitarristas Lupa Santiago e Ricardo Silveira participam de uma conversa sobre música, guitarra e produção musical no Brasil e no mundo. Promovido pelo Sesc 24 de Maio, o bate-papo faz parte da série Diálogos de Bastidores, que une músicos de gerações diferentes, mas que tocam o mesmo instrumento, para trocar ideias sobre o ramo. Grátis, no Youtube.

[Bate-papo] Programação Mês da Consciência Negra

A partir desta sexta (20) até o dia 30/11, o Sesc Rio apresenta uma série de lives em consonância com o Dia da Consciência Negra. Há conversas sobre reconstrução da identidade negra, cuidado com cabelos crespos, mercado editorial para autores negros, diálogos sobre o continente africano, entre outros temas. Veja a programação completa no site do SESC Rio.

[Música]  Encontros Tropicais

Neste sábado (21), às 20h, a cantora Iza e o maestro Letieres Leite, com sua Orkestra Rumpilezz, recebem Carlinhos Brown, Margareth Menezes, Larissa Luz, BNegão, Mateus Aleluia, ChicoCorrea, João Milet Meirelles e Lazzo Matumbi para celebrar a música preta brasileira. O espetáculo acontece no Museu do Ritmo, em Salvador, e será transmitido pelo Youtube da Devassa e pelo canal Multishow.

[Música] Orquestra Ouro Preto

Também neste sábado (21), às 20h30, a Orquestra Ouro Preto homenageia Fernando Brandt e Milton Nascimento com um repertório cheio de clássicos de Brandt interpretados por Milton. Estão no repertório canções como “Travessia”, “Milagre dos Peixes”, “Encontros e Despedidas”, “Canção da América” e “Maria Maria”. Com regência do Maestro Rodrigo Toffolo e participação da cantora Mariana Brandt, a apresentação acontece na Igreja Nossa Senhora do Carmo (sem plateia) e transmitido pelo Youtube da orquestra.

[Webinário] Encontro Paulista de Museus

A partir de segunda (23) até a próxima sexta (27) acontece a 11º edição do encontro, que neste ano trabalha o tema “Museus, Sociedade e Crise: do luto à luta” . Na programação diária de painéis e debates, discussões sobre o papel do público no futuro dos museus, a sustentabilidade e acessibilidade das instituições, entre outros temas. Na quarta (25), o público é convidado a responder à pergunta “O que você espera encontrar nos museus hoje?”. Grátis, no Youtube do SISEM-SP.

[Arte visuais] Linhas da Vida

A partir desta segunda (23) a mostra reúne trabalhos de diferentes períodos da artista japonesa Chiharu Shiota, cujas obras tratam de temas relacionados à memória, vida e a morte por meio de objetos do cotidiano e fios de lã. Grátis, no CCBB Brasília no Google Arts and Culture. Para os brasilienses, a mostra acontece presencialmente no CCBB até 6/12. É preciso reservar ingressos pelo Eventim.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)


Charge! Benett via Folha de São Paulo


 

terça-feira, 24 de novembro de 2020

A privatização da água e o discurso da escassez

 


Eis a tática dos especuladores: amplificar a crise hídrica, culpando o consumidor doméstico. Alegar que, por se tratar de produto escasso e de alto valor, sua gestão deve ser “desestatizada”. Omitir, sempre, o consumo desenfreado do agronegócio

Por Flávio José Rocha1

Soa cada vez mais alto o alarme da escassez da água no planeta. O seu som estridente alcança a população global de forma cada vez mais efetiva. Mas, afinal, o que é verídico nestes acordes catastróficos que ouvimos sem cessar nos últimos anos? Será real que logo não teremos água suficiente para todas as pessoas e estaremos envoltos em guerras já anunciadas por artigos, matérias de jornais, reportagens televisivas, documentários e postagens nas redes sociais? É óbvio que há escassez em algumas regiões do planeta. Sempre houve e haverá, e isso não negamos. Não há dúvida, no entanto, que há interesses econômicos por parte daqueles que amplificam o som alarmante da questão da escassez da água. O alarme soa tão ensurdecedor que já começa a abafar qualquer ruído que se contraponha a ele e questione as saídas apontadas para favorecer o Mercado da Água. Criar pânico facilita o convencimento dos que não veem outra possibilidade a não ser abraçar algumas soluções oferecidas diante da iminente sede que se aproxima. Não por coincidência, estas soluções são apresentadas por algumas das pessoas que alertam sobre a escassez propondo tornar a água uma mercadoria como outra qualquer e administrada pela lógica de mercado.

Refletindo sobre a Ideologia da água e privatização dos serviços de saneamento, José Eduardo de Campos Siqueira (2005, p. 40) menciona que “De maneira mais ou menos sutil, introduz-se, como consequência lógica, a justificação da mercantilização da água, na medida em que a escassez lhe agrega, necessariamente, valor econômico.” Vale lembrar que “o argumento da escassez remonta, principalmente, às formulações malthusianas que legitimam a desigualdade e a miséria como forma corretiva de crescimento populacional.” (FLORES; MISOCZKY, 2015, p. 242-243). Como vemos, o argumento não é novo, mas o seu alvo sim: a água.

O discurso da escassez é utilizado para amedrontar a população mundial e apresentar a privatização da água como solução mais eficaz para evitá-la. Em sua defesa, afirma-se que há muito desperdício no planeta e, ao pagar (e pagar caro) pela água, haverá menos gasto. Aqui vale ressaltar que não sou contra negócios privados. Porém, com a água não é possível negociar o seu valor como Bem Comum, pois dela não dependem apenas os seres humanos, mas toda e qualquer espécie do nosso planeta.

A escassez é real em várias partes do globo, como já afirmamos anteriormente. O que apontamos aqui é que existe uma amplificação da crise fazendo confundir falta de acesso (fato que acontece com várias populações das periferias urbanas e populações rurais) com a sua escassez. É mais uma tática dos defensores da privatização e mercantilização da água. No discurso propagado pelos neoliberais sobre este tema, não há referências ao fato de que 70% da água doce no planeta são gastos pelo agronegócio. A grande mídia, muitas vezes, manipula o discurso sem tocar em exemplos de mananciais que sofreram grandes perdas de volume por causa do agronegócio, a exemplo do Mar de Aral, na Ásia Central, e do Mar Morto, em Israel, que não recebem a mesma quantidade de água dos rios que neles deságuam como antes. No entanto, abundam campanhas contra o desperdício direcionadas para os usuários domésticos, incutindo até mesmo nas mentes das crianças a culpa por um banho mais demorado. Não que não devamos economizar água, longe disso. O problema é a culpabilização apenas do consumidor doméstico quando ele não é o vilão nesta história, utilizando esta narrativa como uma cortina de fumaça para esconder quem realmente está colocando as nossas reservas hídricas superficiais e subterrâneas em perigo pela exploração descontrolada.

Há um outro aspecto com a ampliação do discurso sobre a escassez que beneficia o Mercado da Água. Anunciada como uma mercadoria escassa, o seu valor cresce exponencialmente. Assim, ressaltam Flores e Misoczky (2015, p. 2420, “o conceito de escassez é um conceito muito caro às concepções teóricas que legitimam as relações capitalistas em termos de apropriação da natureza.” Se um elemento natural é abundante, ele perde a sua aura de mercadoria valiosa, já que é necessário que a sua procura supere a sua oferta para tornar-se mais caro e lucrativo. Como bem afirma Erik Swyngedouw (2004, p, 39), “sem a escassez, soluções ou mecanismos baseados no mercado simplesmente não funcionariam. Se necessário, portanto, a ‘escassez’ será eficientemente produzida, socialmente projetada.”

Muitos não sabem, mas está em tramitação no Senado o Projeto de Lei (PL) 495/20172, de autoria do Senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) e que tem como relator o Senador José Serra (PSDB-SP), que cria os mercados de águas no Brasil. Leis como esta podem criar os chamados Especuladores da Água, situação já vivenciada em países como a Austrália e os Estados Unidos3. Essas leis foram aprovadas com a justificativa de que promoveriam uma “gestão eficiente dos recursos hídricos”. Não por coincidência, vejam o que diz a ementa deste PL: “Altera a Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997, para introduzir os mercados de água como instrumento destinado a promover alocação mais eficiente dos recursos hídricos.”

Palavras como gestão são repetidas como mantra quando se fala de água em nossos dias. A gestão reivindicada pelos privatistas da água não é a comunitária ou a que coloca os seres vivos como prioridade, mas a que está alicerçada em princípios técnico-mercadológicos. Já os termos recursos hídricos e água são defendidos pelos neoliberais como coisas separadas. A justificativa para esta diferenciação é que água é quando não é utilizada, o que não acontece com os recursos hídricos que são classificados como bens econômicos e por isso podem ser precificados. Sim, parece sem sentido, e é, já que a água, mesmo quando não captada para algum uso, regula a temperatura, mantém os ecossistemas (alguns estudiosos já falam em fluviofelicidade ou hidrofelicidade como resultado apenas de estarmos próximos aos rios e lagos). E assim, como afirma Siqueira (2005, p. p. 40), “a escassez geral ou abstrata surge como ideia determinante e geradora de um novo modelo global de gestão a ser adotado por todos os países em todas as situações.” Estes argumentos favorecem o entendimento sobre a água como algo a ser mercantilizado até mesmo onde existe em abundância como em países da Europa ou em estados do Sul do Brasil.

O medo de não poder usufruir deste líquido essencial pode nos colocar em genuflexão diante do Mercado da Água como um fiel diante de uma divindade que nos salvará da iminente catástrofe. O pânico se apossa de mentes que, distante de uma reflexão mais aprofundada, aceitam os remédios prescritos para a doença sem a devida atenção para as contraindicações. Mas o remédio somente remedia a situação, sem realmente curá-la. Para lidar com a escassez é preciso investigar se a sua causa é natural ou resultado das intervenções humanas e isso não interessa aos que querem irrigar as suas contas bancárias.

Há mudanças no Mercado da Água atualmente que devem nos deixar atentos. Se antes as privatizações se davam na forma do repasse total da estatal para o poder privado, isso já não interessa às transnacionais do setor, dado o quão complicado é o elemento natural água com a imprevisibilidade climática, seu transporte e tratamento, as questões políticas, culturais e até mesmo espirituais que a envolvem. Sendo assim, veremos cada vez mais a presença das transnacionais da água através do Capital Misto e das Parcerias Público-Privadas, as famosas PPPs, nas empresas públicas de saneamento. Estas permanecerão oficialmente estatais, mas serão administradas como uma empresa privada e não orientadas como prestadoras de serviço público, função para a qual foram criadas. Agregue-se a este fato que, não sendo oficialmente as donas das empresas, as transnacionais da água não serão responsabilizadas caso haja crises como a que foi vivenciada pelo estado de São Paulo nos últimos anos, embora possam continuar a impor o seu modelo de gerenciamento e lucrar com os repasses dos dividendos4. Este fato pode ser claramente entendido observando o caso da Sabesp, como é relatado por Schapiro e Marinho (2018, p. 1428) que afirmam: “No limite a Sabesp revelaria um caso de uma privatização funcional, isto é, uma colonização da empresa pelos interesses privados sem que tenha havido uma mudança estrutural de controle.”

Baseado nas premissas acima, devemos primeiro desconfiar de todas as notícias que divulgam uma guerra iminente pela água em todo o planeta. Em seguida, devemos nos perguntar se o discurso propagado de que somente a eficiência do setor privado será capaz de nos prevenir da Guerra da Água provocada por sua possível escassez no planeta é verdadeiro ou esconde os interesses para privatizá-la. Não esqueçamos de que o Brasil é a “Arábia Saudita da água” e possibilitar que as transnacionais controlem as nossas águas, é colocar a soberania do país em perigo sem a garantia de que as populações mais vulneráveis corram o risco de ter cada vez menos acesso a um direito humano inegociável.

Bibliografia:

FLORES, Rafael Kruter; MISOCZKY, Marcia Ceci. Dos antagonismos na apropriação capitalista da água à sua concepção como Bem Comum. In Revista Urbanização e sociedade UFBA. V. 22 Nº 73. Abril-Junho. 2015, p. 242-243. Acessível em https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-92302015000200237

SCHAPIRO, M. G. e MARINHO, S. M. M. Conflito de interesses nas empresas estatais: uma análise dos casos Eletrobrás e Sabesp. Revista Direito & Praxis. Rio de Janeiro, Vol. 9, N. 3. 2018. p. 1424-1461. https://orcid.org/0000-0002-6762-2731.

SILVA. Flávio José Rocha da. Vendo água privatizada. João Pessoa: Edições do Autor. 2020. https://issuu.com/abatalhapelasfolhassagradas/docs/vendo__gua_privatizada

SIQUEIRA, José Eduardo de Campos. Ideologia da água e privatização dos serviços de saneamento. In DOWBOR, L. e TAGNIN, R. A. (Orgs). Administrando a água como se fosse importante: gestão ambiental e sustentabilidade. São Paulo: Editora Senac. 2005. p. 37-46.

SWINGEDOUW, Erik. Privatizado o H2O: transformando águas locais em dinheiro global. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais. V. 6, N. 1. 2004. p. 33-53. DOI: https://doi.org/10.22296/2317-1529.2004v6n1p33


1 Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP com Pós doutorado no Instituto de Energia e Ambiente da USP.

2 Conheça o PL 495/2017 que pretende criar os mercados de água no Brasil acessando o link https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/131906

3 Atualmente grupos que defendem o Rio Colorado denunciam como as suas águas estão sendo vendidas por especuladores de outros estados daquele país. Veja reportagem do Colorado Newsline em https://coloradonewsline.com/2020/09/12/water-speculators-could-face-more-obstacles-based-on-work-by-new-group/

4 “Em 2014, por exemplo, a Sabesp ao pagar o valor aproximado de 500 milhões de reais, a título de dividendos, acabou por distribuir cerca de 60% do seu lucro líquido para os seus acionistas” (SCHAPIRO; MARINHO, 2018, p. 1444)

(Publicado originalmente no site Outras Palavras)

Lançamento


 Lançamento, dia 04 de dezembro, Sexta-Feira, 17h:00, Livraria Jaqueira, Paço Alfândega. 

J BORGES - O MESTRE DA XILOGRAVURA E DO CORDEL

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

A herança de Mestre Vitalino 🏜️

Crônica: Não fechem Jampa, por favor! ( somente se for estritamente necessário)



Como sou um apaixonado por Jampa, costumo acompanhar o que ocorre naquela cidade, com regularidade, sobretudo em momentos decisivos como este, de eleições. O interesse tornou-se ainda maior, depois das náuseas provacadas pelo baixo nível da campanha eleitoral do Recife.  Ainda hoje, conversei com o comendador sobre as eleições do segundo turno, naquela cidade, depois de acompanhar o debate entre os candidatos Cícero Lucena(PP) e Nilvan Ferreira(MDB), veiculado pelo Sistema Correio de Comunicação. Infelizmente, o candidato do comendador já está fora do páreo e ele não demonstrou grande entusiasmo sobre o resultado desse pleito. Ou seja, não tem preferência por este ou aquele candidato. 

Gostaria de registrar aqui, inclusive, uma inovação no formato do programa, antes com regras tão rígidas que tornaram esses debates burocráticos e enfadonhos. Num dos blocos, abre-se um espaço de tempo de 10 minutos para cada candidato apresentar suas propostas ao eleitorado, com a possibiolidade de ser interrompido pelo oponente. Mesmo assim, 10 minutos de televisão é uma eternidade e, se o candidato estiver realmente preparado, pode passar o seu recado ao eleitorado, discutindo, de fato, suas propostas com mais desenvoltura, demonstrando ou não o domínio sobre o seu programa de governo,  os reais problemas da cidade, assim como sua espetise sobre como enfrentá-los. Isso é muito importante para o eleitorado que está em casa, acompanhado o debate, fazer suas escolhas de forma consciente, que seria o objetivo principal desses encontros. 

Hoje, aliás, depois dessa longa conversa com o comendador, fiquei triste com a possibilidade de um possível lockdown em Jampa novamente, a partir dos próximos dias, em razão da segunda onda desta maldita Covid-19. Até entendo as razões - irei respeitá-las - mas como ficar privado das frutas do mercado de Tambaú? jacas, mangas rosas e espadas dessa época do ano? Das postas de camorim e do camarão fresco da peixaria da beira-mar? Do sorvete de chocolate africano da sorveteria Friberg, a melhor de Jampa? Dos almoços no Mangai, com sua culinária tradicional acompanhada das jarras de sucos tropicais? Dos passeios na orla, aos finais de tarde, alugando uma daquelas bicicletas familiares? Das trilhas na Bica, nos manhãs frequinhas dos domingos de janeiro? Com sorte, ainda encontramos por ali um sorvete caseiro produzido na cidade de Pilar, terra do grande escritor José Lins do Rego. E o espetáculo da florada dos Ipês do Parque Solon de Lucena? 

Muito triste com tudo isso. Nosso projeto de um registro dos lugares românticos e bucólicos de Jampa ficam sensivelmente comprometido. Como o comendador irá nos guiar por aqueles recantos que ele conhece como ninguém? Mais um lockdown e não sabemos quando possamos concluir esse trabalho, que já foi profundamente afetado pelas primei ras medidas restritivas. Agora, então, além do trabalho do livro, ainda ficaremos privados das comidas caseiras dos redutos tradicionais de Jampa, dos becos e vielas que não teríamos  a chance de conhecer sozinho. - Zé, hoje vou levar você a um boteco onde é servido o melhor sarapetel da cidade. Depois vou te mostrar a antiga casa de pensão de Nininha, hoje transformada numa casa de bons constumes. E, assim, aos poucos, bairro por bairro, rua por rua, fomos conhecendo a cidade. Claro que, de forma consciente, vamos entender as razões sanitárias e de saúde pública que sugerem um novo lockdown. Países europeus já começaram a adotar essas medidas. No Brasil, há um avanço de casos e mortes pela Covid-19. Entendo, sim, as razões e irei respeitá-las. Mas que vou sentir muita falta, ah isso vou! 


José Luiz Gomes

 

O voto feminista é revolucionário

 


O voto feminista é revolucionário
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Manifestação 8M em Belo Horizonte, 2020 (Foto: Catarina Barbosa)

 

O voto feminista emancipa as mulheres de forma arrebatadora. É um romper de silêncios profundos, do esmagamento cotidiano, do quase não existir. É a possibilidade de escrever de próprio punho o projeto de vida (de rua, de cidade, de país) onde a justiça social seja meta primeira e a agenda sócio-político-econômica tenha um sentido concreto na vida das mulheres, especialmente as mais vulneráveis, mas não somente elas; que seja palpável na realidade cotidiana de todas as pessoas. Da megalópole à cidadezinha mais distante.

Em 23% das câmaras municipais não houve vereadoras eleitas em 2016, segundo dados do TSE. É um dano social gigantesco, que penaliza ainda mais as mulheres e todo o seu entorno. O exemplo da creche é simbólico, pois ela altera imediatamente a vida da mulher e das crianças. A médio prazo, mexe na vida de toda a rua, e por fim, da cidade inteira. Com creche qualificada, uma mulher pode trabalhar, conquistar o valioso tempo da reflexão, aumentar sua renda, estudar, fazer circular a economia do bairro. A criança, bem cuidada, aprende mais, melhor, cria raízes positivas na comunidade e chega na escola com muito mais preparo, desfazendo uma desigualdade que era quase destino. Pois bem, a quem interessam as creches? Quem vai mais lutar por elas?

A força do voto das mulheres pode ser medida pela resistência a ele. Somente em 1932 o Congresso brasileiro aprovou o voto feminino, nos primeiros anos ainda parcial, com a inaceitável exigência de autorização do marido ou do pai. Hoje, em 2020, toda mulher é livre na cabine eleitoral. Não é um pormenor. Ali, de cara com a urna, talvez mais do que em qualquer outro momento da vida cotidiana, o poder, o sonho e a autonomia ocupam a mesma frase, o mesmo espaço. É revolucionário o poder de poder!

Ainda há mulheres que chegam no dia das eleições com o voto determinado, no “cabresto”, pela ala masculina da família ou das relações sociais, como se estivéssemos nos anos 1920, quando ao universo feminino só cabia obedecer, executar e silenciar. É um tempo passado que é presente, e essas mulheres merecem toda a acolhida… sabemos o quanto as violências paralisam.

A elas, dois lembretes: 1. na cabine eleitoral transformamos números na esperança de ser livre também fora dela. 2. Lutamos pela emancipação de todas, incluindo as que nem nasceram, as que ainda não conseguem, as que não querem – pois no fundo entendemos que esse “não querer” é um provável desejo ensinado para sustentar o estado de coisas. Como sentencia Rebecca Solnit: “o que chamamos de boa educação, muitas vezes significa aprender que o bem-estar alheio é mais importante”.

Todas serão feministas, é só uma questão de tempo. O processo de conscientização sobre as injustiças, no entanto, é dolorido e exige maturação. Do tempo da troca e da reflexão – quando a dor individual e moralizante se mostra coletiva e politizada; e do tempo contínuo, do assentamento dos saberes, da transformação interna na nova pessoa que nasce ressignificando o corpo, a narrativa e o contexto que anteriormente existiam. A tomada de consciência – semente do feminismo –, tal qual uma nova alfabetização sobre a nossa existência no mundo, é irreversível e avassaladora. Nos move contra o curso do rio, impelidas a construir uma estrutura social que seja mais justa e democrática. Que nos caiba, que nos enxergue.

E é possível. Pesquisas mostram que, onde há prefeitas, é menor o número de mortes de crianças, pois a atenção a políticas voltadas à primeira infância é mais consistente. As mulheres conseguem captar mais recursos, fazer mais parcerias. Estudos também mostram que em gestões femininas há menos corrupção e processos por fraude. São gestões competentes, de superação, da busca por soluções criativas, dialogadas. Claro, o gênero não determina a boa gestão ou o caráter. O que os números indicam é que não há motivos para não eleger prefeitas e vereadoras.

 

Essa explosão de vontade
consciente, coordenada,
compromissada e qualificada
emoldura o voto feminista.

 

 

Um voto que está na urna, mas principalmente fora dela, na ação política do cotidiano, de resistência em várias frentes pela emancipação de todas, superando o bem-viver para chegar no que a ativista feminista boliviana Julieta Paredes prefere chamar de viver bem, fazendo com maestria uso da semântica como estratégia política para narrar o mundo como o queremos:

“Dizemos viver bem pois primeiro vem o viver, depois o bem. O ‘viver’ envolve a água, o pão, a tapioca, como dizem aqui. Primeiro é necessário cuidar da vida. E depois, construir o ‘bem’, que é com todos e com todas, não somente com a humanidade, mas também com a mãe e irmã natureza. E não é o “Viver Bem” de uma pessoa. Você não pode viver bem se ao seu lado tiver uma comunidade, um vizinho, um irmão ou pessoas na rua passando fome”.

Novos reconhecimentos sobre a realidade exigem uma nova linguagem, uma outra postura. Um voto feminista. A linguagem-ação do corpo, da prática política, das estratégias de luta, o poder em disputa, tudo precisa ser essencialmente diferente para mover a pesada engrenagem cultural. Sem uma vigorosa agenda antissistêmica, o pouco que sai do lugar é empurrado de volta.

Votar com convicção numa mulher feminista, acreditando em seu compromisso, na sua competência e no projeto político que ela carrega é empurrar a pedra com toda a força. Imagina a engrenagem sendo empurrada milímetro a milímetro em cada voto feminista! O impacto cumulativo é de uma potência inigualável.

É uma jornada inconclusa, em curso, fundada na experiência feminista que vem de longe e nos transcende, convocando à ação. Por todas e por cada uma, pela radicalidade – da raiz – sem intransigência. Para que as mulheres, em toda a sua diversidade, negras, LBTQI+, brancas, latinas, com deficiência, periféricas sejam atrizes múltiplas da política: como eleitoras, candidatas eleitas, cidadãs, profissionais, ativistas. Para que todas possam comandar a gestão de uma sociedade mais justa, democrática e livre.

 

O voto feminista é uma rasteira
nas certezas cristalizadas como
leis da natureza. É nó em pingo
d’água para desconstruir o castelo
de superioridades descabidas.

 

 

Não haverá vida digna sem o enfrentamento dessas desigualdades, que tendem a se perpetuar até que a tomada de consciência seja amplamente coletiva e o voto feminista alcance a massa crítica, que é aquele número mínimo a ser atingido para que grupos desfavorecidos consigam somar uma força capaz de se manter e ampliar suas condições de disputa

Com 30% de mulheres diversas eleitas para as câmaras municipais e as prefeituras (e em todas as esferas de poder) é possível alterar a correlação de forças, ainda em bastante desvantagem, porém não mais em desamparo ou exclusão. A onda do voto feminista nessas eleições pode acelerar o lento crescimento feminino nos poderes executivo e legislativo.

De 1995, quando tiveram início as frágeis iniciativas institucionais para reduzir a assustadora disparidade de gênero na política, chegamos à exigência de preenchimento do mínimo de 30% e máximo de 70% de candidaturas de cada gênero, além das determinações para direcionamento de 30% do fundo de campanhas, do tempo de TV e rádio, e a recente definição pela distribuição de recursos com base na proporcionalidade racial. São avanços vindos de muita luta dos movimentos de mulheres e organizações sociais diversas, mas, ainda assim, os dados nos chocam: em 2016 foram eleitas apenas 11,5% de mulheres para as prefeituras e 13,5% para as câmaras municipais.

Sabemos o que fazer: “tá na hora de reagir, entender que somos gigantes, ocupar o nosso lugar. Acolher nossas almas”, canta, contundente, Flaira Ferro. O voto feminista é capaz de reduzir as violências do processo eleitoral para as mulheres, especialmente as negras e periféricas, que pela série de exclusões são as mais desconhecidas e distantes do mínimo apoio.

O voto feminista é capaz de representar uma mensagem-repúdio aos partidos que fraudam o sistema eleitoral, burlam as cotas e desviam (ou barram) recursos para impedir a presença competitiva de mulheres e manter uma vantagem ilícita na disputa pelo poder. Votar nelas é uma reação pessoal, social e política contra as violências econômicas, partidárias e simbólicas que fraturam a democracia e excluem as mulheres dos espaços onde tudo sobre nossas vidas é decidido.

 

O voto feminista é capaz de eleger
mais vereadoras e prefeitas e com
elas remar para equilibrar corpos,
agendas e direitos na política.

 

 

Não é mágica e nem começou agora, mas no nosso tempo histórico podemos alavancar a retomada da verdadeira democracia feminista, que é para todas as pessoas.

É uma agenda de luta que de tão imensa parece (querem que pareça) abstrata. Mas não é. Está entrelaçada com todos os contextos do viver, num fio condutor irradiado pela política institucional, que por sua vez está relacionada ao voto de domingo (e a todos os que já demos), à postura do guarda de trânsito, ao contrato de aluguel, à definição do orçamento público, ao livro indicado na sala de aula, à linguagem, ao preço do pão.

Está relacionada ao sucateamento da rede pública de saúde, ao assédio no transporte público (e fora dele), às pesquisas sobre células tronco, à falta de creche, à nossa aposentadoria, ao feminicídio, às mulheres na América Latina, ao poste na rua, à internet que usamos, à sentença de estupro culposo, à programação da TV, à água que não chega e até ao lamento do jogador Robinho pela existência do feminismo, numa lista simplesmente infinita.

A condução da cidade, lugar de vivência, experiência, dores e alegrias, precisa estar a serviço da democracia e do Estado de Direito. Garantir a viabilidade das pautas historicamente reivindicadas pelas mulheres, passando necessariamente pelo seu direito de escolha, pela autonomia sobre seu corpo e o direito à vida.

Vamos juntas nessa jornada? Vai ser com emoção, coração batendo forte e muita vontade de atingir a paridade ao lado das Hermanas da América Latina e construir um mundo novo.

Meu Voto Será Feminista

O projeto-ação Meu Voto Será Feminista potencializa lideranças feministas a atuarem nos espaços de poder de modo cada vez mais qualificado, coletivo, solidário e conectado às demandas sociais das mulheres. Funcionamos como uma mandala: incidência política – pesquisa – apoio e fortalecimento das eleitas – fomento ao debate sobre a participação política feminina – impulsionamento de campanhas. O círculo gira a cada processo eleitoral, num momento-pulsão para viabilizar a chegada ao poder de forma multiplicada, em soma às que já exercem a luta nos espaços institucionais, e ativando as demais ações do projeto.

Juliana Romão é jornalista, mestra em comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), pesquisadora da inclusão de gênero na linguagem, membra da PartidA e co-criadora do projeto Meu Voto Será Feminista.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

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