Ao
seu biógrafo oficial, Edson Nery da Fonseca, Gilberto Freyre
confidenciou algo curioso: chegou a concluir o livro Jazigos & Covas
Rasas, aquele que completaria a tetralogia de sua obra, abordando como
os habitantes da Casa Grande e da Senzala deixam o plano terrestre. Ao
viajar ao exterior, deixou o livro envolto num pano vermelho e, ao
voltar, não mais o encontrou. Apenas o prefácio da obra teria sido
localizado. Trata-se, certamente, de uma perda irreparável não apenas
para o sociólogo, sua família, mas para a cultura do país, que foi
privada do acesso à análise do tema, produzida por um dos mais importantes intérpretes
do país.
Este prólogo, leitores, é para chamar a atenção sobre um acervo
recentemente doado à Fundação Joaquim Nabuco pela esposa do antropólogo
Waldemar Valente. Waldemar Valente, ao lado de René Ribeiro, Mauro Motta
e o próprio Gilberto Freyre formavam uma espécie de núcleo duro do
então Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, depois Fundação
Joaquim Nabuco. À época do então IJNPS, a despeito de enormes
dificuldades, pesquisas importantíssimas foram realizadas, colocando a
Instituição, nas palavras do próprio Gilberto, como uma instituição de
excelência nos trópicos, numa perspectiva principalmente européia. Apesar dos tempos de estudos de Gilberto Freyre nos Estados Unidos, a Instituição nunca conseguiu ampliar seu capital simbólico naquele país.
Numa
entrevista, Waldemar Valente fala daqueles tempos, relatando alguns
fatos importantes de sua passagem pelo Instituto. Chama a atenção, por
exemplo, entre outras tantas coisas, uma pesquisa realizada por ele
sobre os terreiros do Recife e região metropolitana, num total, à época, salvo melhor juízo, de 4.500 terreiros dedicados aos cultos de matriz africana. Possivelmente um levantamento realizado entre as décadas de 40 e 60 do século passado, quando esses cultos foram bastante perseguidos na província, notadamente pelo Estado Novo. Mais ainda, um
possível vídeo gravado por ele de um desses ritos, com o pai de santo em
transe, vestido com uma indumentária muçulmana, falando línguas estranhas, como diriam os evangélicos. Algo inusitado.
Quando,
recentemente, numa viagem a Salvador, no contexto de uma pesquisa inserida nos Programas Institucionais, relatamos o fato aos pesquisadores do CEAO, Centro de Estudos Afro-Orientais, eles ficaram curiosíssimos, pois
são raríssimas as referências sobre a presença dos escravos muçulmanos
naquele Estado. Essas referências foram completamente dizimados depois da Revolta dos Malês. O respeitado pesquisador João José Reis, por exemplo, levanta
dúvidas até mesmo em torno da existência de Luísa Mahin, que
supostamente liderou a revolta e depois refugiou-se na região do Recôncavo Baiano,
precisamente na cidade de Cachoeira, tendo seu nome também associado à fundação da Irmandade da Boa Morte. João José Reis não encontrou nenhum documento que comprove a sua existência. Há de se perguntar: Seria mais uma dessas lendas? À exemplo da escrava Anastácia?
Difícil saber se este tal vídeo
encontra-se entre o acervo recentemente doado pela família de Waldemar
Valente à Instituição. Se estiver, reputo-o já como numa dessas
preciosidades que vem se juntar ao pré-sal de acervos da Fundação Joaquim Nabuco, numa expressão feliz de uma de suas servidoras.
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