pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: Crônica: Um muçulmano nos terreiros do Recife
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segunda-feira, 24 de junho de 2019

Crônica: Um muçulmano nos terreiros do Recife



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     José Luiz Gomes


    Ao seu biógrafo oficial, Edson Nery da Fonseca, Gilberto Freyre confidenciou algo curioso: chegou a concluir o livro Jazigos & Covas Rasas, aquele que completaria a tetralogia de sua obra, abordando como os habitantes da Casa Grande e da Senzala deixam o plano terrestre. Ao viajar ao exterior, deixou o livro envolto num pano vermelho e, ao voltar, não mais o encontrou. Apenas o prefácio da obra teria sido localizado. Trata-se, certamente, de uma perda irreparável não apenas para o sociólogo, sua família, mas para a cultura do país, que foi privada do acesso à análise do tema, produzida por um dos mais importantes intérpretes do país. 

    Este prólogo, leitores, é para chamar a atenção sobre um acervo recentemente doado à Fundação Joaquim Nabuco pela esposa do antropólogo Waldemar Valente. Waldemar Valente, ao lado de René Ribeiro, Mauro Motta e o próprio Gilberto Freyre formavam uma espécie de núcleo duro do então Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, depois Fundação Joaquim Nabuco. À época do então IJNPS, a despeito de enormes dificuldades, pesquisas importantíssimas foram realizadas, colocando a Instituição, nas palavras do próprio Gilberto, como uma instituição de excelência nos trópicos, numa perspectiva principalmente européia. Apesar dos tempos de estudos de Gilberto Freyre nos Estados Unidos, a Instituição nunca conseguiu ampliar seu capital simbólico naquele país. 

    Numa entrevista, Waldemar Valente fala daqueles tempos, relatando alguns fatos importantes de sua passagem pelo Instituto. Chama a atenção, por exemplo, entre outras tantas coisas, uma pesquisa realizada por ele sobre os terreiros do Recife e região metropolitana, num total, à época, salvo melhor juízo, de 4.500 terreiros dedicados aos cultos de matriz africana. Possivelmente um levantamento realizado entre as décadas de 40 e 60 do século passado, quando esses cultos foram bastante perseguidos na província, notadamente pelo Estado Novo. Mais ainda, um possível vídeo gravado por ele de um desses ritos, com o pai de santo em transe, vestido com uma indumentária muçulmana, falando línguas estranhas, como diriam os evangélicos. Algo inusitado. 

    Quando, recentemente, numa viagem a Salvador, no contexto de uma pesquisa inserida nos Programas Institucionais, relatamos o fato aos pesquisadores do CEAO, Centro de Estudos Afro-Orientais, eles ficaram curiosíssimos, pois são raríssimas as referências sobre a presença dos escravos muçulmanos naquele Estado. Essas referências foram completamente dizimados depois da Revolta dos Malês. O respeitado pesquisador João José Reis, por exemplo, levanta dúvidas até mesmo em torno da existência de Luísa Mahin, que supostamente liderou a revolta e depois refugiou-se na região do Recôncavo Baiano, precisamente na cidade de Cachoeira, tendo seu nome também associado à fundação da Irmandade da Boa Morte. João José Reis não encontrou nenhum documento que comprove a sua existência. Há de se perguntar: Seria mais uma dessas lendas? À exemplo da escrava Anastácia?

    Difícil saber se este tal vídeo encontra-se entre o acervo recentemente doado pela família de Waldemar Valente à Instituição. Se estiver, reputo-o já como numa dessas preciosidades que vem se juntar ao pré-sal de acervos da Fundação Joaquim Nabuco, numa expressão feliz de uma de suas servidoras.



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