No contexto deste debate que promovemos por aqui, em torno das instituições democráticas brasileiras, nesta semana gostaríamos de sugerir a leitura de um livro, assim como propor uma reflexão a partir de um posicionamento do professor Daniel Aarão Reis, em sua página, acerca da "oportunidade perdida" pelos partidos e coalizões de governo que assumiram o poder após o processo de redemocratização política. No entender do professor, os flancos ficaram abertos ou desguarnecidos, colocando nossas instituições da democracia numa condição de vulnerabilidade, susceptíveis às investidas de caráter autoritário. Os tucanos, embora tivessem estabilizado a economia, celebraram alianças com partidos cevados nos estertores do regime militar, como o PFL, interditando avanços mais significativos no sentido de democratizar a democracia. A coalizão petista, por seu turno, embora tenha distribuído renda - um dado importante no que concerne à democracia substantiva - e ampliado as conquistas e reconhecido o direito de minorias, igualmente alinhavou-se como forças políticas conservadoras, impossibilitando a materialização de reformas importantes, assim como não mexeu nos interesses da banca, permitindo lucros estupendos ao setor financeiro.
Em linhas gerais, consoante as reflexões do professor, perdeu-se uma oportunidade de aperfeiçoar as instituições da democracia, assim como republicanizar o país, tornando-o infenso às investidas de caráter antidemocráticas. É a surrada conciliação de classe, que, no Brasil, significa não apenas não mexer nos espúrios interesses dessa elite política e econômica, assim como ficar a mercê das mesmas, tornando-se refém na primeira oportunidade, quando eles decidirem que a brincadeira deve acabar.
Está se tornando cada vez mais evidente o conflito entre as instituições da democracia e as novas formas de acumulação do capital. O mercado editorial brasileiro, nos últimos meses, foi literalmente inundado por publicações que tratam da crise da democracia aqui e alhures, uma vez que se trata de uma onda conservadora que varre o planeta. Mas, no tocante à recomendação de leitura que fiz no início deste editorial,o texto é de Ellen M. Wood, Democracia Contra o Capitalismo, editado no Brasil pela editora Boitempo. Registre-se, um excelente texto, onde evidencia-se os condicionantes dessas engrenagens acumulativas, cada vez mais incongruentes com a manutenção da engenharia da democracia liberal, ferindo de morte suas instituições.
Ao longo de séculos de existência, o capitalismo passou por algumas transformações, mas manteve, em essência, inabalável, a lógica que o caracteriza: o processo reprodutivo do capital, sob quaisquer circunstâncias. Se cometo alguma impropriedade aqui, peço desculpas ao senhor Karl Marx, que dedicou uma vida a estudar esse modo de produção. Essa lógica hoje implica entender que os indivíduos não consumidores podem ser perfeitamente descartados. Mas, até neste particular, essa lógica objetiva auferir algumas vantagens, ou seja, lucrar com esses descartes.O termo gore está associado a uma situação de extrema violência, ou seja, implica dizer que
o atual estágio de acumulação do capital traz, no seu bojo, algumas
características bem definidas, observadas em cidades que tem sido o
palco dessas barbáries, como é o caso da cidade de Tijuana, no México que
faz fronteira com os Estados Unidos, que ostenta taxas elevadíssimas de violência. Salvo melhor juízo, há uma serie da Netflix abordando a
violência nessa cidade Mexicana, onde os assassinatos são cometidos com
requintes de crueldade, daí o termo gore.
Convém registrar que esses
corpos inertes, meu caro Michel Foucault, traduzem, por assim dizer, uma identidade com a própria
dinâmica da economia nesses tempos de cólera, descrito pela autora
Sayang. O livro relata a experiência do estado mexicano com essa nova
modalidade de reprodução do capital, mas, como estamos num mundo globalizado, essa modalidade de capitalismo já começa a demonstrar seus
reflexos em cidades como o Rio de Janeiro, onde milícia, polícia, política e
Estado acabam se tornando a mesma coisa, com reflexos diretos sobre a
vida do cidadão comum. O mais grave é que a eliminação físicas de desafetos não ocorre apenas por suas teses - que contrariam os interesses desses grupos - mas pela tonalidade de sua pele, por sua opção sexual, por sua posição na pirâmide social. Custoso entender aqui que a militante Marielle Franco não morreu apenas por suas teses - que, de fato, incomodavam bastante - mas por ser mulher, negra, da favela e homossexual.
Outro dia li um artigo bastante interessante
sobre a origem das milícias no Rio de Janeiro. Contraditório observar
que o próprio poder público esteve diretamente ligado à formação desses
núcleos milicianos. As milícias surgiram na Zona Oeste, como simples
associações de moradores. Logo criariam tentáculos absurdos, impondo
suas diretrizes através de muita violência, o que inclui o assassinato de
desafetos. Saiu completamente do controle do poder público, com
negócios que vão desde transporte - ocupam o espaço onde a Uber não
entra -, extorsão de comerciantes, gás, energia elétrica, água, moradia
através da grilagem de terra, e, mais recentemente, a morte por
encomenda, assim como o trafico de drogas, o que as torna em
narcomilícias. Ainda mais grave, seus tentáculos penetraram no aparelho repressor do
Estado, assim como colocaram seus representantes no Executivo e no Legislativo, já que esses
contingentes habitacionais, onde essas milícias atuam, são responsáveis
pela eleição de parlamentares em todos os níveis. As teses levantadas
por Sayak Valência, assim como pelo pensador africano, Achille Mbembe, portanto,
se aplicam tanto à realidade do México quanto à realidade brasileira,
com seus componentes já observados em Estados como o Rio de Janeiro.
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