Perguntamos ao psicanalista Christian Dunker: é possível ter empatia com aqueles que achamos repugnantes?
Paulo Werneck
23jul2019 11h32
O psicanalista Christian Dunker na Flip 2015
Escutar
o outro deveria ser uma premissa de qualquer atividade intelectual, em
particular a edição de revistas, jornais e livros e a curadoria de
festivais, debates e outras programações culturais. Quanto mais falamos
em escuta, no entanto, mais difícil vem se tornando praticá-la de
verdade em meio à intolerância que parece dominar o debate no Brasil de
hoje.
Escritores sofrem ameaças e têm cancelada a sua
participação em eventos literários por razões de segurança; autores
enfrentam potentes caixas de som e saraivadas de rojões enquanto tentam
se apresentar em Paraty. Conservadores “raiz” não se dizem representados
por essas hordas e clamam por espaço igualitário no debate. Assustados
com as ameaças do governo e de setores da população, artistas e
intelectuais progressistas se fecham em copas por não verem condições de
diálogo em meio à barbárie.
Hegemônica no mercado editorial e nas universidades brasileiras, a intelectualidade de “esquerda” tem sido cobrada, inclusive por textos publicados na Quatro Cinco Um, a abrir os ouvidos
para compreender de fato o câmbio ideológico na cultura e na política.
Mas haverá espaço para equilíbrio, compreensão e temperança intelectual
enquanto o bolsonarismo come solto? Muitos, como o colunista Paulo
Roberto Pires, não aceitam o adesismo de intelectuais “Nutella”
ao novo quadro mental do governo brasileiro e clamam em seus textos que
as coisas “sejam chamadas pelo nome”. Como desatar esse nó?
O psicanalista Christian Dunker esteve na Flip 2019, onde lançou, em programações paralelas, o seu novo livro: O psicanalista e o palhaço (Planeta),
escrito com o educador Claudio Thebas. Ambos estão costumados a
intervir em delicadas situações de conflito — tanto aqueles que afloram
no sigilo do consultório como os que explodem junto com as barragens de
Brumadinho e Mariana, deixando um rastro de lama e de traumas e dramas
humanos. Como se não bastasse observar tão de perto essas tragédias,
Dunker foi processado pelo escritor Olavo de Carvalho por causa de
críticas que fez a ele.
Para nos ajudar a nos situar nessa enxurrada de lama
ideológica que ameaça nos soterrar, convidamos Dunker para uma conversa
por email sobre lugares de fala e de escuta, palhaços e lideranças
políticas, empatia, fascismo, o que fazer no WhatsApp da família,
autores de esquerda e de direita que deveríamos escutar mais, na opinião
dele — e também, é claro, sobre a Flip, a Flipei, tins e bens e tais.
Qual é a diferença entre bagunçar o coreto e ver o circo pegar fogo?
“Bagunçar o coreto” é introduzir vozes dissonantes
na conversa, perturbar a ordem dos instrumentos que fazem parte da
banda, colocar a boca no trombone. Palhaços e psicanalistas adoram
bagunçar o coreto alheio, e de certa forma esta é a sua função enquanto
escutadores do mal-estar social e do sofrimento individual. Mas note que
o coreto continua lá, com os seus paramentos, no lugar central da
cidade.
“Ver o circo pegar fogo” é outra coisa, porque daí
você queima a lona, dissolve o encontro e deixa as pessoas com medo e
sem diversão. O coreto bagunçado é o que faz quase todo mundo rir, mas
quando o circo pega fogo, quase todo mundo chora, menos os que gostam de
olhar a desgraça alheia.
O que pensa do debate sobre ausência de autores conservadores na Flip?
Participei de quatro apresentações na Flip 2019 e
acompanhei outras tantas, em geral com o coreto tocando suas marchinhas e
chorinhos uma ou duas oitavas acima do usual. Quando quiseram calar a
fala do Glenn Greenwald com fogos de artifício, achei bem alegórico.
Afinal, se tem alguma coisa que caracteriza o nosso momento político é a
pirotecnia nas declarações erráticas e toscas. O circo pegou fogo e nem
a Sabrina nem o Glenn conseguiram fazer sua parte no Barco Pirata. Não
dá para comparar com as vaias contra [a blogueira cubana anticastrista]
Yoani Sanchéz em uma livraria [em 2017, em São Paulo], ou o bloqueio da
apresentação do filme [documentário sobre Olavo de Carvalho] O Jardim das Aflições em
uma universidade [em 2017, em Recife], como se agora fôssemos contar as
arbitrariedades assim como antes contávamos quem matou mais, Hitler ou
Stálin, para ver quem está mais errado.
A Flip sempre teve uma participação minoritária de
pensadores à direita, mas de uma forma ou outra sempre fez questão de
chamar autores representativos como [Christopher] Hitchens, homenagear
literatos conservadores, como Nelson Rodrigues, e ecoar fenômenos de
repercussão mais popular como o Pondé, aliás presente nesta edição.
Nisso, estou misturando o coreto com o circo, e o barco com o palanque.
Estou considerando tanto a programação principal da como a Flipei, a Off
Flip e a gama cada vez mais variada de editoras independentes e
organizações culturais como o Sesc.
O que significa esse movimento?
Para alguns isso significa que ela se tornou mais
extensa, representativa e menos elitista, ou seja, ela está indo da
direita para a esquerda em um momento no qual o vento sobre o navio
nacional em sentido posto. A Flip tinha mais mulheres, mais negros e
mais indígenas no coreto. Isso significa que ela fechou-se num circo
vermelho? Ou que ela está tentando incluir melhor a nossa diversidade?
Aqui a questão toca no fervente debate sobre a
hegemonia da esquerda na cultura, na educação e nas universidades.
Deveria a Flip, dadas as condições do palanque cultural que vivemos,
convidar mais teólogos conservadores, economistas do Instituto Millenium
e novas vozes emergentes da direita, como digamos... Kim Kataguiri,
Caio Coppola, sem falar em alguns discípulos de Olavo de Carvalho? Seria
esta a via régia para sair da bolha?
Você tem empatia intelectual para com autores conservadores? Quais?
Tenho sim, e devo dizer que devo isso ao meu querido
avô. Como bom liberal formado no Canadá, ele ficou com medo quando
entrei na USP e comecei a trazer umas ideias estranhas para casa.
Sabendo da minha pobreza de estudante e minha cobiça por livros ele se
comprometeu a me dar uma grana extra semanal, se eu em troca fizesse uma
lição de casa extra lendo The Economist, Paulo Francis, quase todos os
articulistas do Estadão nos anos 1980, sem falar em gente como
Tocqueville, Rush Limbaugh e naturalmente o ídolo dele, “Bob Fields”, o
Roberto Campos.
Por isso venho perguntando há anos, em colunas e ao
vivo e em cores, quando posso: o que aconteceu com a nobre tradição de
pensamento conservador brasileira? Não vejo linha de continuidade nem
arqueologia possa existir entre Merquior, os jesuítas hegelianos, os
economistas desde Roberto Simonsen, até gente como Bruno Tolentino,
Miguel Reale ou Luiz Werneck Viana, com esta trupe liderada por Olavo de
Carvalho, Rodrigo Constantino, Leandro Narloch ou Nando Moura. Onde foi
parar a boa direita brasileira? É uma pergunta que faço, genuinamente,
como convite para a discussão organizada. Pondé chegou a me dizer
diretamente: “Você está diante dela...”. Critiquei Olavo de Carvalho com
argumentos e o sujeito me processa judicialmente (e perde).
E autores estrangeiros?
Fora do Brasil há vários pensadores de direita
interessantes: Marc Lilla, Onfray, Michael Oakeshott, Scruton é “not
more then fine”, gosto particularmente dos scholarsingleses,
insuperáveis quando tratam dos clássicos. Vargas Llosa é bem legível.
Penso que aconteceu um sequestro do pensamento de direita no Brasil, uma
verdadeira ocupação de ocasião do um espaço deixado vago, que pode
custar muito caro e fazer demorar mais ainda para que as coisas se
equilibrem mais por aqui.
Como escutar aqueles que nos causam repugnância?
Tenho dito que um erro clamoroso do campo
progressista foi recusar reconhecer e dar cidadania a seus adversários.
Plutarco já dizia: é tão importante escolher seus amigos quanto seus
inimigos, e se você não o fizer eles farão por você, na pior hora e da
maneira mais cruel. Também, do ponto de vista psicopatológico, quando
deixamos de escutar a quem consideramos loucos, quando os deixamos falar
sozinhos, quando os destituímos de algum grão de verdade, o mais
provável é que ele comece a falar mais alto, mais convicto e mais bravo.
Depois de um tempo o sujeito está vociferando, amaldiçoando picadeiros e
coretos, colocando fogo na lona, simplesmente para dizer que ele quer
ver sua palavra reconhecida.
Nessa hora é preciso pensar se a nossa repugnância é
para com aquela pessoa ou com relação ao funcionamento de massa pelo
qual ela se deixou apossar. Daí a importância de, a mesmo tempo, ser
hospitaleiro e fazer uma geografia do hospital no qual estamos, contar
os mortos e feridos, as relações e os valores que deixamos queimar no
afã de ver alguma coisa diferente. Perguntar mais, ler mais (seus
opositores, biblicamente know thy enemies) e sobretudo entender a
geografia e história do debate.
As categorias como “esquerda” e “direita”,
“conservadorismo” e “progressismo”, “liberalismo” e “neoliberalismo”
volta e meia são postas em questão. Ainda valem para um debate como
esse?
Muita tolice sobre a dissolução de noções como
esquerda e direita foi evocada usando a geografia da Segunda Guerra
Mundial ou da guerra fria. Precisamos de mais do que isso. Precisamos
distinguir a direita liberal da direita neoliberal e da direita tosca.
Mas aqui há uma coisa importante a lembrar sobre o coreto. Ele tem uma
dupla função: vira palanque na época da eleição, mas na maior parte do
ano é o lugar de músicos. Por mais que existam músicos de direita e
músicos de esquerda, músico é músico. Na hora da festa o que importa é
como você toca seu instrumento e não só se você é amigo do prefeito. E
vamos lembrar que a Flip é uma festa, não uma feira ou um congresso
científico.
Uma comparação exagerada. Por que não temos mais
representantes de esquerda no encontro de Davos? Sempre que os
esquerdistas aparecem por lá eles vão para bagunçar o coreto ou para
tacar fogo no circo. Ora, para fazer parte da festa de Davos tem que
levar seu instrumento. Injusto que a esquerda vá tão pouco? Monte sua
festa alternativa em Porto Alegre! Essa seria uma narrativa na geografia
da direita. Ocorre que a esquerda cisma em dizer que a sua festa é
aberta, quando na verdade só entra músico profissional.
Como assim?
Faça você mesmo as contas sobre os homenageados da
Flip, desde que ela começou em 2003, volte na história e considere, no
crivo da época de cada um destes autores, se eles eram de direita ou de
esquerda. Se quiser troque por conservadores ou progressistas,
tradicionalistas ou liberais, ideológicos ou críticos: Vinícius de
Moraes, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Jorge Amado, Nelson
Rodrigues, Machado de Assis, Manuel Bandeira, Gilberto Freyre, Oswald de
Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Millôr
Fernandes, Mario de Andrade, Ana Cristina Cesar, Lima Barreto, Hilda
Hist e Euclides da Cunha.
Para mim esta contagem dá algo como 15 a 2, ou 14 a
3, mas podem os meus olhos, vermelhos... de sono. Isso pode significar
três coisas diferentes:
1. A Flip só escolhe parcialmente,
dentro da sua bolha narcísico-especular, portanto, esta lista não é uma
seleção representativa.
2. A hegemonia da esquerda nas
universidades, nas Flips e quejandos reflete a história da cultura
literária brasileira. Mas talvez não da economia, do direito ou do
pensamento de inflexão teológica.
3. O pensamento de direita tem o
tamanho que sempre teve, com a sua usual representação na Flip. Se agora
a direita está no poder, isso não implica que teriam assento garantido
no bonde da história, sem aprender a tocar um instrumento e formar uma
boa banda.
Existe empatia possível com o fascismo? E com fascistas?
Minha avó viveu na Alemanha na época do nazismo e
meu pai nasceu lá quando Hitler estava no poder. Sempre ouvi deles que
os nazistas eram pessoas vulgares e empobrecidas, com medo e que se
aproveitavam da situação para oprimir seus pequenos inimigos
históricos.
Nenhuma empatia com o fascismo, porque é fascismo é
um discurso e uma forma de vida covarde. Muita empatia com a maior parte
dos encapuzados, escondidos no coreto fascista, sentindo-se intimidados
pela retórica das armas e batendo bumbo para não escutar seus
fantasmas. Há verdadeiros fascistas no Brasil, mas eles são muito menos
do que os eleitores de Bolsonaro.
Tenho empatia pelos possuídos. Pelos que funcionam
em estrutura de “churrasco fascista”, protegendo-se uns aos outros em
ódio comum a um terceiro. Mas quando deitam no divã mostram-se como todo
mundo, falsos corajosos, valentes de ocasião e em geral pessoas que
precisam gritar mais alto, xingar os outros e partir para a baixaria,
para continuar acreditando, mais ainda, em suas pequenas certezas.
Como ter certeza de que as nossas discussões
sobre “lugar de fala” e “escuta” não estão sendo repetidas em loop para
a mesma bolha?
A teoria da bolha é muito aproximativa. Se quiser
falar em condomínios reais, com seus shoppings centers conexos e seus
muros de verdade, eu aceito. Bolhas se dissolvem no ar, como aquilo que
antes era sólido. Bolhas deixam ver de forma translúcidas quem está fora
e quem está dentro. Não saberia dizer se as bolhas brasileiras são
fenômenos reativos de retorno à excessiva exposição de diversidade, que
o Brasil efetivamente viveu nos últimos quinze anos, ou se são,
primeiras edições de um novo tipo de xenofobia digital.
Penso que os ganhos e excessos da prática do lugar
de fala foram percebidos fora da bolha, e infelizmente mal percebidos:
“se você pode ser feminista eu posso ser machista”, “se você pode ser a
favor da equidade de negros ou posso defender minha superioridade
branca”. Este tipo de justiçamento imaginário é muitas vezes confundido
com escutar os outros. Como dizemos em nosso livro: escutar não é
obedecer, nem representar, muito menos realizar uma comunicação perfeita
por meio de uma linguagem comum e benevolente.
Haveria então um “lugar de escuta” a ser mais valorizado?
Propomos, Claudio Thebas e eu, que ao lugar de fala
deve corresponder o lugar de escuta. Uma chamada para acolher o
antagonismo e organizar a contradição, não para dissolvê-la. Por outro
lado, sim, a teoria sobre isso pode ser feita em um contexto específico,
com maior ou menor densidade ética ou política. Mas a prática que estas
duas noções implicam é o que é mais importante.
A disposição a falar fora de lugar é o que define a
prática dos intelectuais, por isso há intelectuais nos coletivos, nas
periferias, nas universidades para as quais não foram convidados ou se
sentem estrangeiros. É nesta situação infamiliar que nos pomos a pensar,
o que pode acontecer numa festa literária ou no quintal da sua casa. Se
você leva sua casa bolha onde você vai? É sempre possível que isso
aconteça. Mas não vá colocar a culpa na agência de viagens.
E se estivermos falando apenas com a nossa turma, qual é o problema? Existe alternativa?
Existe alternativa a esta sensação de fechamento
sobre si e seu mundo. Chama-se boa literatura, mas pode ser também
reflexão crítica, práticas transformativas, e se quiser, pode ser
psicanálise também. Deveríamos ter aprendido com a nossa incrível
experiência de inclusão levada a cabo nas escolas brasileiras, mas
também pelas cotas nas universidades, nos aeroportos que se tornaram
mais diversos, nossas propagandas que se tornaram mais coloridas.
Deveríamos ter percebido que colocar muita gente que
viveu em currais e condomínios por tempo demais, de repente juntas, não
cria por si só uma comunidade. É preciso mediação, é preciso narrativa,
novos pactos, sacrifícios e enfrentamento de temores identitários. Mas
nunca em caso algum este processo poderia ter ocorrido como uma reta
triunfal de ganhos acumulados contínuos.
A alternativa à bolha está aí, chama-se realidade, e
nós tivemos doses excessivas dela, daí que estejamos sonhando e nos
refugiando e temendo bolhas. Creio que existe uma tensão entre novas
formas de comunidade e antigas equações institucionais que foram bem
aproveitadas por um projeto errático de poder e uma expressão tosca de
nossa própria cultura. Realmente o Brasil é muito mais do que isso, e
também muito menos do que isso.
Como lidar com o WhatsApp da família?
Nunca saia do WhatsApp. Há presenças que ainda que
silenciosas são muito importantes para manter o senso de que “as
crianças estão olhando” e impedir que a barbárie prospere em sua soberba
ignorância. Precisa variar o discurso, precisa entender a
recristianização do Brasil, exigir as explicações e justificativas
teológicas para colocar Cristo atrás da arma, que para meu espanto
existe sim, por São Isaías.
Precisa alternar o rigor e a paciência com conversas
longas. Quem xinga e grita geralmente está ficando nervoso porque a
conversa não terminou nos dois parágrafos iniciais. Leve em conta que
muito do que se diz não é exatamente para você, mas para a projeção
imaginária que você representa. E quando perceber que isso está
acontecendo, saia do lugar, responda de outro lugar. Não dê lição de
moral, nem menospreze, peça razões e prepare-se para ser xingado. Se
você leva a sério é porque há ainda um grão de pequeno fascista em você
mesmo.
O escutador profissional é como um canibal, ele
sempre quer devorar tios mais gordos e tias mais execráveis, como um
esporte de longo prazo. Quando começar a se repetir ou perder a calma,
saia e desanuvie. Pense que o desafio não é contra o outro, mas contra
você mesmo: a arte cavalheiresca de manter-se respirando.
Se você conseguir manter o humor com todos contra
você acredite, isso vai trazer alguns pontos para sua saúdem mental,
acredite. Não banque o herói nem o professor, as pessoas respeitam muito
quem está realmente a fim de escutar. Esteja preparado para enfrenar a
turma do deixa-disso, gente que vai aparecer de todos os lados querendo
manter as aparências e o Natal feliz.
Não, o Natal nunca mais será aquele. Aquele que
apanhou não esquece, o que bateu vai dizer para si mesmo: “Mas era só
política”. O silêncio e algumas notícias de jornal fazem milagres.
Nunca, em tempo algum diga: “Eu avisei”. (Isso fará a pessoa te odiar
para sempre, por uma razão que ela jamais vai admitir para você, e vai
trocar a sua razão pelo juízo de que você é arrogante e metido a
superior). Deixe a realidade impor-se soberana... lentamente. Nunca
diga: “eu sabia!” ou “tá vendo?”. Mas pensar, pode.
Obama foi retratado por direitistas com a
maquiagem do Coringa, Trump é visto como um clown, Boris Johnson segue o
mesmo caminho e Bolsonaro é chamado de Bozo. Por que o palhaço aparece
de forma tão sinistra em todas essas situações?
O palhaço é um símbolo de nossas ilusões infantis,
ele representa o adulto no qual não podemos confiar porque ele põe fogo
no circo ou balança o coreto. Só depois que descobrimos que os adultos
mentem, particularmente sobre sexo, morte e violência, nos reconciliamos
com o palhaço assassino da primeira infância e aprendemos a usá-lo para
tratar e suportar a hipocrisia representada pelo convívio humano.
Se isso é o que o imaginário do palhaço evoca, ele
mesmo, como palhaço real, simboliza a nossa condição perdedora, errante,
despossuída, o fato de que, olhando bem, estamos todos meio fora do
jogo dos interesses e das máscaras de poder. Os novos líderes populistas
são bem chamados de palhaços porque eles combinam estas duas
disposições, mas de maneira invertida. Eles encantam e amedrontam os
eleitores infantilizados à procura de um pai protetor, e que portanto
tem que ser um adulto que nos engana quando se apresenta como não
mentiroso.
Por outro lado, são o contrário dos palhaços reais e
despossuídos, eles nos vendem a promessa de que podemos voltar a ser
grandes, grandes como achávamos que éramos quando crianças e os nossos
pais nos enganavam prometendo-nos que tínhamos superpoderes. Afinal, se
os palhaços... e os psicanalistas são uma função de recusa e de ironizar
o exercício do poder, nada mais justo do que ofender os que foram
possuídos pela loucura do poder com esta alcunha.
(Publicado originalmente no site do Jornal Quatro Cinco Um)
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