Para entendermos muitas das tragédias históricas que já vivemos no Brasil, inclusive a tragédia atual de um país em marcha batida para a irrelevância internacional, para a perda das conquistas sociais a duras penas conquistadas, entregue a um governo nascido de mais um golpe contra o Estado de direito, governo competente em realizar um projeto que atende interesses que não são os da maioria da população e nem do próprio país, é preciso que analisemos um traço persistente entre nossas elites, tanto políticas, quanto econômicas e intelectuais, traço que é compartilhado por amplos setores da população: a rejeição à modernidade. Embora apresente múltiplas facetas, a recusa à modernidade, a antimodernidade, é um traço que aproxima as elites políticas da direita das elites políticas da esquerda, aproxima o empresário do trabalhador, aproxima intelectuais e artistas que, aparentemente, estão postados em lados opostos nas escolhas estéticas e políticas. O antimoderno prevalece em nossas classes dirigentes e esteve na base da criação intelectual e artística de glórias de nossas letras e de nossas artes.
Mas o que é ser antimoderno? Primeiro é preciso deixar claro que ser antimoderno não é, necessariamente, recusar a modernização, recusar os avanços técnicos e tecnológicos. Um dos traços mais persistentes em nossas elites econômicas e empresariais é que elas são modernizadoras, mas não são modernas. Elas reivindicam e realizam, quase sempre, uma modernização conservadora, uma modernização que pretende não alterar radicalmente as estruturas sociais, as estruturas de poder e os valores e ideias dominantes. O usineiro, que veio substituir os senhores de engenho, no espaço que viria a ser o Nordeste, no início do século XX, era um modernizador mas, quase sempre, estava longe de ser um homem moderno. Muitos dos cafeicultores paulistas que se converteram em grandes nomes das finanças, do comércio ou da indústria, embora fossem agentes da modernização, do qual o crescimento da cidade de São Paulo foi uma resultante, não deixaram de ser homens conservadores e reativos quanto ao que era trazido pela modernidade. Muitos dos capitais que foram transformados em investimentos em serviços urbanos, em obras públicas, que alimentaram a emergência de nossos primeiros bancos, de muitas das primeiras grandes casas comerciais e firmas industrias advieram da acumulação ocorrida com a escravidão, surgiram da liberação de capitais ocorrida com o fim do tráfico negreiro e, depois, com a abolição, tendo, portanto, uma origem antimoderna. Esses capitais que foram indispensáveis para as reformas urbanas que transformaram e modernizaram a paisagem de várias cidades brasileiras, na passagem do Império para a República, como Rio de Janeiro, São Paulo e Recife, exerceram um papel modernizador, mas muito distante estiveram de exercer um papel modernizante.
Ser antimoderno não implica, também, necessariamente, em ser antimodernista. Muitos de nossos artistas e intelectuais foram modernistas na forma, mas antimodernos no conteúdo de suas obras. Isso pode parecer contraditório mas um antimoderno só pode sê-lo nos termos da própria modernidade. Uma pessoa antimoderna só é possível no interior da modernidade, como filho reativo ao mundo que o cria. Um político antimoderno terá que se expressar a partir do vocabulário e dos conceitos políticos trazidos pela modernidade, mesmo quando é para contestá-la. O mesmo vai se dar no campo intelectual e artístico. Os antimodernos vão lançar mão das linguagens, dos conceitos e das propostas estéticas e formais trazidas pela modernidade para emitir sua mensagem antimoderna. Um artista pode lançar mão da estética cubista, como fez o pintor pernambucano Lula Cardoso Ayres, para criar obras cujo conteúdo, cuja mensagem é antimoderna. Um cineasta, como Glauber Rocha, pôde usar uma conquista técnica da modernidade como o cinema e utilizar propostas estéticas de vanguarda para criar seus grandes épicos antimodernos. José Lins do Rêgo ou Jorge Amado, para citar duas glórias das letras nacionais, com posições políticas opostas, utilizaram da liberdade formal trazida pelo modernismo para criarem obras literárias de profundo significado antimoderno.
Mas, então, o que é ser antimoderno? Um antimoderno é aquele que contesta o mundo surgido das grandes transformações e revoluções ocorridas entre o século XVII e XVIII, na Europa. O antimoderno recusa ou critica o mundo surgido com a Revolução Industrial. Um mundo centrado no artifício, na máquina, no mecânico, na vida urbana, no trabalho fabril. Um mundo que teria trazido, com ele, a luta de classes, os movimentos sociais, as ideologias trabalhistas (o socialismo, o comunismo, o anarquismo), as organizações da classe trabalhadora. Um mundo utilitário, pragmático, centrado no dinheiro e na mercadoria. O antimoderno recusa ou critica o mundo surgido com a Revolução Francesa, símbolo máximo das revoluções burguesas. Um antimoderno recusa o mundo burguês, mesmo quando é filho da burguesia ou quando é alguém aburguesado. No Brasil, os filhos das elites agrárias, saudosos da vida aristocrática e monárquica do único Império que existiu nas Américas, devota um desprezo por tudo que seria burguês, desprezo que pode vir como uma reação conservadora ou como uma reação dita progressista e revolucionária: o mundo burguês será atacado pela direita e pela esquerda, resultando, como sabemos, na adesão de muitos à ideologias totalitárias, como o integralismo e o comunismo. A Revolução Francesa é o símbolo da desordem política para um antimoderno, que é, acima de tudo, um defensor da ordem. Ela representa o exemplo do que a entrega das decisões políticas às camadas populares pode significar: a barbárie e o terror. Normalmente os antimodernos desconfiam, por isso, da democracia, dita burguesa e liberal. Seja à direita ou à esquerda do espectro político, o antimoderno costuma ter uma visão instrumental da democracia, ela deve ser usada para se atingir objetivos que, se realizados, põem fim à democracia. Isso explica muito do porque a democracia no Brasil vive de curtos interregnos entre regimes de exceção.
Um antimoderno recusa a herança, no pensamento e na cultura, do Esclarecimento, do movimento Iluminista, da vitória do racionalismo, do cientificismo positivista. O primeiro grande movimento antimoderno no campo da cultura, o romantismo, não por mera coincidência esteve na base da elaboração dos discursos que iriam legitimar e dar identidade ao país, a nação recém tornada independente: o Brasil. O romantismo é um traço que atravessa e permanece presente em grande parte da produção cultural brasileira. A valorização dos afetos, das emoções, das sensações, dos corpos, em detrimento ou em conjunção com o elogio moderno à Razão, dará o tom à produção cultural brasileira. O Brasil é um país cuja narrativa da identidade destaca a carnalidade, a sexualidade, a sensualidade, a dimensão afetiva e cordial, a jovialidade, a afetividade, a emotividade, em detrimento de qualquer definição mais racionalista ou cerebral. A crítica das pretensões do racionalismo e do cientificismo positivista, base da modernidade burguesa, aparece mesmo num de nossos autores mais festejados por sua racionalidade e por seu cerebralismo: Machado de Assis. Já um Lima Barreto, vítima de uma das mais obscuras produções do racionalismo moderno, o manicômio, faz de seus livros uma denúncia da sociedade burguesa e dos mecanismos de exclusão que sua ciência e seus saberes são capazes de mobilizar. Mesmo um autor apaixonado pelo racionalismo positivista, como Euclides da Cunha, escreve um livro vingador contra os crimes que a modernidade pôde cometer, em sua arrogância, contra aqueles que representam o que se chama de atraso e de tradição.
A maioria de nossas elites políticas e intelectuais foram formadas por instituições católicas de ensino. O catolicismo sempre esteve na vanguarda da crítica à modernidade. Os intelectuais católicos foram muito importantes na formação de nosso pensamento e de nossa cultura. A antimodernidade de autores como Luís da Câmara Cascudo, Alceu de Amoroso Lima, Leonardo Motta, Murilo Mendes ou Ariano Suassuna tem seu lastro na formação católica e nos vínculos que mantiveram com a Igreja durante toda a sua trajetória de vida pública e intelectual. O catolicismo nunca aceitou a modernidade pois ela significou o fim da centralidade do divino como explicação do mundo. Os constantes choques entre o catolicismo e as descobertas científicas advém do fato de que elas solapam os dogmas e as bases intelectuais das explicações providencialistas do mundo. O que um filósofo antimoderno como o alemão Friedrich Nietzsche chamou da morte de Deus (que ele mais lamentava do que festejava) seria um dos principais acontecimentos da modernidade e motivo de sua recusa por boa parte de elites formadas pelo catolicismo e pelo cristianismo. A antimodernidade de setores cristãos na sociedade brasileira atual é uma continuação e uma radicalização dessa recusa do mundo moderno. Mesmo minoritários e, talvez por isso, os setores cristãos não católicos, desde os protestantes históricos até os protestantes neopentencostais recusaram ainda de forma mais radical a modernidade (também pensada como mundanidade). A atitude mais comum nas igrejas evangélicas no Brasil foi e ainda é em muitos casos, de recusa de tudo que se referia ao mundo moderno, tido como dessacralizado, mundano e até diabólico (proibição de ir ao cinema, ao circo, a jogos de futebol, de frequentar festas e parques de diversão, de ouvir rádio ou ver televisão, chegou a ser comum entre esses grupos). Por trás da recusa aos aparatos da modernização à recusa dos valores modernos que eles representariam. Se para Max Weber o protestantismo foi fundamental para o desenvolvimento de condições culturais e subjetivas para o surgimento do capitalismo, no Brasil as igrejas evangélicas vieram, quase sempre, reforçar a recusa à modernidade.
Quais os elementos definidores da modernidade são comumente recusados pelas elites brasileiras? A democracia liberal, o sufrágio universal, o voto popular, são algumas delas. A saudade da monarquia, do voto censitário, do voto de gente de qualidade, do voto como monopólio dos melhores (que o elogio contemporâneo a meritocracia mal esconde) sempre esteve presente em nossa elite intelectual. A análise que o historiador José Murilo de Carvalho costuma fazer da República é filha de sua simpatia monarquista que vem acompanhada de uma clara desconfiança em relação a capacidade do povo de eleger os melhores governantes (afinal, eles assistiram a proclamação da República bestializados). Monarquistas foram grandes nomes das letras nacionais como Gustavo Barroso e Luís da Câmara Cascudo. Quando vemos hoje o príncipe herdeiro avisar que vai percorrer o país numa campanha para restaurar a monarquia e grupos a pedir o retorno do regime monárquico podemos avaliar o quanto o antimodernismo está arraigado em nosso pensamento político. As elites brasileiras sempre tiveram uma relação ambígua e instrumental com o regime democrático. Alegando que nos falta povo (houve tempos em que se queria regenerar nosso povo com ingestão de sangue estrangeiro para melhorar a raça, ideia que parece legitimar a pretensa superioridade da gente do sul sobre as do norte), que nosso povo não sabe votar (notadamente se for nordestino), que qualquer líder popular é um populista, ou seja, um manipulador dos desejos do povo, que todo político é um corrupto ou um ladrão (o que manifesta o desapreço ou o desprezo pela vida política parlamentar, sempre pensada como algo baixo ou rebaixado), nossas elites caminham para o apoio à regimes de exceção, à ditaduras, para o apoio à pretensas corporações escolhidas que sabem governar e dirigir (ontem e hoje os militares, hoje os homens de toga), para o apoio a chefetes que prometem regenerar o país à golpes de autoritarismo e violência, a partir de cima, do moralismo e do combate a desordem (ontem, a vassoura de Jânio Quadros ou Collor, o caçador de marajás, hoje, o exterminador dos gays, feministas, negros, comunistas, petistas, bolivarianos, Bolsonaro). No fundo o que temem é que o regime democrático possa trazer o questionamento de seus privilégios, que ele sirva de instrumento para que os interesses populares possam alcançar os parlamentos e os governos, que eles deixem de ser monopólios desses grupos dirigentes. Desqualificar o povo é uma forma de não o ouvir. Daí porque essas castas dominantes têm que punir violentamente aquele homem do povo que, através da democracia, conseguiu furar o bloqueio de acesso ao poder político por parte dessas elites antimodernas e, por isso mesmo, antidemocráticas, antipopulares, elitistas, defensoras de hierarquias e privilégios, defensoras de lugares e postos hereditários e estamentais.
Os antimodernos falam a língua da contrarrevolução, da defesa da ordem, da crítica a participação popular nas decisões. Eles temem as organizações populares, os movimentos sociais, eles recusam as ideologias que defendem o trabalho e o trabalhador. No Brasil, os antimodernos chegam a sentir saudade da escravidão, da vida senhorial, da ordem nobiliárquica. Abominam o que a cidade trouxe de modificação nas sociabilidades e nas sensibilidades. Sentem saudade da vida rural, mesmo quando nunca lá viveram. Possuem uma visão idílica da vida no campo, escondendo a violência das relações sociais e de trabalho no meio rural brasileiro, a pobreza da maioria de nossa população camponesa, a discricionariade dos costumes aí imperantes. A reforma trabalhista do governo Temer, a atuação da bancada ruralista, as teses que defende, mostram o caráter antimoderno desse governo surgido do golpe e dos grupos que o apoiam. O discurso anticomunista que se espalha nas redes sociais, o antipetismo, o ódio a Lula, são faces desse ódio ao moderno no campo da política, à presença das camadas trabalhadoras como agentes políticos. Muita gente ainda tem cabeça de Antigo Regime, preferiria que povo e trabalhador não fizessem parte da vida política, que essa fosse monopólio de escolhidos pelo sangue ou pelo pertencimento a dadas classes sociais (o dandismo elitista de gente como João Dória, o messianismo cristão de Marcelo Crivela, assim como o bomocismo chic de Luciano Hulk ou de um Aécio Neves, que estourou como bolha de sabão, o moralismo conservador de um Joaquim Barbosa ou de Alckmin, o moralismo e o romantismo verde de Marina Silva, são expressões de formas distintas desse elitismo reacionário). São todos apresentados como ungidos e escolhidos, pela fortuna, pela moral, pela fé, por ser santo ou por ser imaculado pela corrupção. Depois não entendem porque a maioria da população não se identifica com eles, mas com aquele que tem a sua cara e seus defeitos, o que reforça sua ojeriza ao povo e ao regime democrático.
Os antimodernos criticam a emergência da ideia de liberdade individual, de indivíduo, equiparada à prevalência do egoísmo e da falta de solidariedade e caridade cristãs. Tudo que daí adveio, como a liberdade de consciência, como a recusa a submeter seus hábitos, sua vida, seus costumes, seus gostos, seu corpo aos ditames ditos comunitários e coletivos é mal visto pelos antimodernos. Embora eles tenham sido fruto dessa cultura e desses valores, da própria possibilidade de constituírem-se como diferenças individuais, são saudosos da vida comunitária, da submissão dos filhos aos valores familiares e tradicionais (o movimento escola sem partido e a perseguição ao que se chama de ideologia de gênero entre nós nasce dessa recusa de que os filhos possam ser e pensar diferentes dos pais, que possam escolher livremente seus valores e posições políticas), da subordinação de seus valores aos ditames de uma religião, de uma Igreja. O familismo presente em obras clássicas da vida intelectual brasileira, como a de Gilberto Freyre, uma grande estrela da antimodernidade à brasileira, nasce dessa recusa da prevalência moderna do indivíduo em choque com as instituições, desafiando e transgredindo as instituições. As violentas diatribes bolsonarianas ou evangélicas contra o feminismo e a defesa dos direitos das mulheres, contra o movimento homossexual e contra a própria homoafetividade, contra as diferentes escolhas no campo da sexualidade, da moralidade, da religiosidade, das crenças políticas, das preferências estéticas, mostram a recusa a uma premissa fundamental da modernidade: a prevalência dos direitos individuais, do direito a aceitação da sua forma diferente de ser indivíduo.
O antimoderno é antidemocrático, é elitista, tem uma visão hierárquica e estamental do mundo, defende a ordem, é antitrabalhista, anticomunista, detesta e teme a revolução e transgressão, sonha com um mundo ressacralizado, guiado pelos ditames religiosos (mesmo que as religiões tenham modernamente se tornado mercadorias). O antimoderno é antiburguês e anticapitalista (por isso muito de nossos antimodernos foram e são de esquerda), por isso aderem à ideologias fascistas e totalitárias, pois no fundo temem o caráter revolucionário do próprio capitalismo que gera insegurança e desordem (por isso mesmo empresários se regem por visões de mundo aristocratizantes e senhoriais, quando não aderem e financiam movimentos de extrema-direita que prometem segurança e ordem, muitos estarão dispostos a apoiar Bolsonaro). O antimoderno vive de ilusões comunitaristas (os irmãos evangélicos e os companheiros do partido de esquerda), abominam manifestações do que seria o individualismo ou a singularidade individual (a perseguição moralista a homossexualidade tanto se dá nas igrejas como seu deu nos partidos de esquerda. Recentemente o jornalista Fernando Brito voltou a responsabilizar as lutas particularistas por direitos como as responsáveis pela crise das esquerdas que teriam perdido a capacidade de ofertarem projetos coletivos). O antimoderno é nostálgico, saudosista, encantado com um mundo rural idílico, com uma infância de harmonia e vida familiar, vida familiar e famílias que não mais existem, que não se encontram em lugar algum e que tentam restaurar por um retorno a modelos patriarcais e hierárquicos há muito contestados (por isso as feministas e as mulheres são vistas como agentes do mal e da dissolução da vida social, assim como o militante gay, trans, travesti). Essa é a cara das elites brasileiras, antimodernas, apesar de modernizadoras, moderninhas e até modernistas. Vivemos sob o império do brega, como um dia vivemos sob o império do cafona: na música, na televisão, na vida religiosa, na vida empresarial, nas sociabilidades de elites, no jornalismo, na intelectualidade consagrada e de bestseller, na crônica esportiva, etc. Temos um dos governos e um dos governantes mais bregas que já passou por aquele palácio, temos um Congresso atravancado de gente brega e um judiciário onde a breguice de toga nos é servida todo dia pela TV em doses cavalares. Essa é a face mais obscura de nossa antimodernidade. Há faces luminosas que falarei em outro momento, pois como tudo que é histórico e humano, a antimodernidade é ambivalente, é ambígua, mas isso é tema para outro artigo de opinião.
Durval Muniz de Albuquerque é historiador e professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(Texto publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem, aqui reproduzido com autorização do autor)
Mas o que é ser antimoderno? Primeiro é preciso deixar claro que ser antimoderno não é, necessariamente, recusar a modernização, recusar os avanços técnicos e tecnológicos. Um dos traços mais persistentes em nossas elites econômicas e empresariais é que elas são modernizadoras, mas não são modernas. Elas reivindicam e realizam, quase sempre, uma modernização conservadora, uma modernização que pretende não alterar radicalmente as estruturas sociais, as estruturas de poder e os valores e ideias dominantes. O usineiro, que veio substituir os senhores de engenho, no espaço que viria a ser o Nordeste, no início do século XX, era um modernizador mas, quase sempre, estava longe de ser um homem moderno. Muitos dos cafeicultores paulistas que se converteram em grandes nomes das finanças, do comércio ou da indústria, embora fossem agentes da modernização, do qual o crescimento da cidade de São Paulo foi uma resultante, não deixaram de ser homens conservadores e reativos quanto ao que era trazido pela modernidade. Muitos dos capitais que foram transformados em investimentos em serviços urbanos, em obras públicas, que alimentaram a emergência de nossos primeiros bancos, de muitas das primeiras grandes casas comerciais e firmas industrias advieram da acumulação ocorrida com a escravidão, surgiram da liberação de capitais ocorrida com o fim do tráfico negreiro e, depois, com a abolição, tendo, portanto, uma origem antimoderna. Esses capitais que foram indispensáveis para as reformas urbanas que transformaram e modernizaram a paisagem de várias cidades brasileiras, na passagem do Império para a República, como Rio de Janeiro, São Paulo e Recife, exerceram um papel modernizador, mas muito distante estiveram de exercer um papel modernizante.
Ser antimoderno não implica, também, necessariamente, em ser antimodernista. Muitos de nossos artistas e intelectuais foram modernistas na forma, mas antimodernos no conteúdo de suas obras. Isso pode parecer contraditório mas um antimoderno só pode sê-lo nos termos da própria modernidade. Uma pessoa antimoderna só é possível no interior da modernidade, como filho reativo ao mundo que o cria. Um político antimoderno terá que se expressar a partir do vocabulário e dos conceitos políticos trazidos pela modernidade, mesmo quando é para contestá-la. O mesmo vai se dar no campo intelectual e artístico. Os antimodernos vão lançar mão das linguagens, dos conceitos e das propostas estéticas e formais trazidas pela modernidade para emitir sua mensagem antimoderna. Um artista pode lançar mão da estética cubista, como fez o pintor pernambucano Lula Cardoso Ayres, para criar obras cujo conteúdo, cuja mensagem é antimoderna. Um cineasta, como Glauber Rocha, pôde usar uma conquista técnica da modernidade como o cinema e utilizar propostas estéticas de vanguarda para criar seus grandes épicos antimodernos. José Lins do Rêgo ou Jorge Amado, para citar duas glórias das letras nacionais, com posições políticas opostas, utilizaram da liberdade formal trazida pelo modernismo para criarem obras literárias de profundo significado antimoderno.
Mas, então, o que é ser antimoderno? Um antimoderno é aquele que contesta o mundo surgido das grandes transformações e revoluções ocorridas entre o século XVII e XVIII, na Europa. O antimoderno recusa ou critica o mundo surgido com a Revolução Industrial. Um mundo centrado no artifício, na máquina, no mecânico, na vida urbana, no trabalho fabril. Um mundo que teria trazido, com ele, a luta de classes, os movimentos sociais, as ideologias trabalhistas (o socialismo, o comunismo, o anarquismo), as organizações da classe trabalhadora. Um mundo utilitário, pragmático, centrado no dinheiro e na mercadoria. O antimoderno recusa ou critica o mundo surgido com a Revolução Francesa, símbolo máximo das revoluções burguesas. Um antimoderno recusa o mundo burguês, mesmo quando é filho da burguesia ou quando é alguém aburguesado. No Brasil, os filhos das elites agrárias, saudosos da vida aristocrática e monárquica do único Império que existiu nas Américas, devota um desprezo por tudo que seria burguês, desprezo que pode vir como uma reação conservadora ou como uma reação dita progressista e revolucionária: o mundo burguês será atacado pela direita e pela esquerda, resultando, como sabemos, na adesão de muitos à ideologias totalitárias, como o integralismo e o comunismo. A Revolução Francesa é o símbolo da desordem política para um antimoderno, que é, acima de tudo, um defensor da ordem. Ela representa o exemplo do que a entrega das decisões políticas às camadas populares pode significar: a barbárie e o terror. Normalmente os antimodernos desconfiam, por isso, da democracia, dita burguesa e liberal. Seja à direita ou à esquerda do espectro político, o antimoderno costuma ter uma visão instrumental da democracia, ela deve ser usada para se atingir objetivos que, se realizados, põem fim à democracia. Isso explica muito do porque a democracia no Brasil vive de curtos interregnos entre regimes de exceção.
Um antimoderno recusa a herança, no pensamento e na cultura, do Esclarecimento, do movimento Iluminista, da vitória do racionalismo, do cientificismo positivista. O primeiro grande movimento antimoderno no campo da cultura, o romantismo, não por mera coincidência esteve na base da elaboração dos discursos que iriam legitimar e dar identidade ao país, a nação recém tornada independente: o Brasil. O romantismo é um traço que atravessa e permanece presente em grande parte da produção cultural brasileira. A valorização dos afetos, das emoções, das sensações, dos corpos, em detrimento ou em conjunção com o elogio moderno à Razão, dará o tom à produção cultural brasileira. O Brasil é um país cuja narrativa da identidade destaca a carnalidade, a sexualidade, a sensualidade, a dimensão afetiva e cordial, a jovialidade, a afetividade, a emotividade, em detrimento de qualquer definição mais racionalista ou cerebral. A crítica das pretensões do racionalismo e do cientificismo positivista, base da modernidade burguesa, aparece mesmo num de nossos autores mais festejados por sua racionalidade e por seu cerebralismo: Machado de Assis. Já um Lima Barreto, vítima de uma das mais obscuras produções do racionalismo moderno, o manicômio, faz de seus livros uma denúncia da sociedade burguesa e dos mecanismos de exclusão que sua ciência e seus saberes são capazes de mobilizar. Mesmo um autor apaixonado pelo racionalismo positivista, como Euclides da Cunha, escreve um livro vingador contra os crimes que a modernidade pôde cometer, em sua arrogância, contra aqueles que representam o que se chama de atraso e de tradição.
A maioria de nossas elites políticas e intelectuais foram formadas por instituições católicas de ensino. O catolicismo sempre esteve na vanguarda da crítica à modernidade. Os intelectuais católicos foram muito importantes na formação de nosso pensamento e de nossa cultura. A antimodernidade de autores como Luís da Câmara Cascudo, Alceu de Amoroso Lima, Leonardo Motta, Murilo Mendes ou Ariano Suassuna tem seu lastro na formação católica e nos vínculos que mantiveram com a Igreja durante toda a sua trajetória de vida pública e intelectual. O catolicismo nunca aceitou a modernidade pois ela significou o fim da centralidade do divino como explicação do mundo. Os constantes choques entre o catolicismo e as descobertas científicas advém do fato de que elas solapam os dogmas e as bases intelectuais das explicações providencialistas do mundo. O que um filósofo antimoderno como o alemão Friedrich Nietzsche chamou da morte de Deus (que ele mais lamentava do que festejava) seria um dos principais acontecimentos da modernidade e motivo de sua recusa por boa parte de elites formadas pelo catolicismo e pelo cristianismo. A antimodernidade de setores cristãos na sociedade brasileira atual é uma continuação e uma radicalização dessa recusa do mundo moderno. Mesmo minoritários e, talvez por isso, os setores cristãos não católicos, desde os protestantes históricos até os protestantes neopentencostais recusaram ainda de forma mais radical a modernidade (também pensada como mundanidade). A atitude mais comum nas igrejas evangélicas no Brasil foi e ainda é em muitos casos, de recusa de tudo que se referia ao mundo moderno, tido como dessacralizado, mundano e até diabólico (proibição de ir ao cinema, ao circo, a jogos de futebol, de frequentar festas e parques de diversão, de ouvir rádio ou ver televisão, chegou a ser comum entre esses grupos). Por trás da recusa aos aparatos da modernização à recusa dos valores modernos que eles representariam. Se para Max Weber o protestantismo foi fundamental para o desenvolvimento de condições culturais e subjetivas para o surgimento do capitalismo, no Brasil as igrejas evangélicas vieram, quase sempre, reforçar a recusa à modernidade.
Quais os elementos definidores da modernidade são comumente recusados pelas elites brasileiras? A democracia liberal, o sufrágio universal, o voto popular, são algumas delas. A saudade da monarquia, do voto censitário, do voto de gente de qualidade, do voto como monopólio dos melhores (que o elogio contemporâneo a meritocracia mal esconde) sempre esteve presente em nossa elite intelectual. A análise que o historiador José Murilo de Carvalho costuma fazer da República é filha de sua simpatia monarquista que vem acompanhada de uma clara desconfiança em relação a capacidade do povo de eleger os melhores governantes (afinal, eles assistiram a proclamação da República bestializados). Monarquistas foram grandes nomes das letras nacionais como Gustavo Barroso e Luís da Câmara Cascudo. Quando vemos hoje o príncipe herdeiro avisar que vai percorrer o país numa campanha para restaurar a monarquia e grupos a pedir o retorno do regime monárquico podemos avaliar o quanto o antimodernismo está arraigado em nosso pensamento político. As elites brasileiras sempre tiveram uma relação ambígua e instrumental com o regime democrático. Alegando que nos falta povo (houve tempos em que se queria regenerar nosso povo com ingestão de sangue estrangeiro para melhorar a raça, ideia que parece legitimar a pretensa superioridade da gente do sul sobre as do norte), que nosso povo não sabe votar (notadamente se for nordestino), que qualquer líder popular é um populista, ou seja, um manipulador dos desejos do povo, que todo político é um corrupto ou um ladrão (o que manifesta o desapreço ou o desprezo pela vida política parlamentar, sempre pensada como algo baixo ou rebaixado), nossas elites caminham para o apoio à regimes de exceção, à ditaduras, para o apoio à pretensas corporações escolhidas que sabem governar e dirigir (ontem e hoje os militares, hoje os homens de toga), para o apoio a chefetes que prometem regenerar o país à golpes de autoritarismo e violência, a partir de cima, do moralismo e do combate a desordem (ontem, a vassoura de Jânio Quadros ou Collor, o caçador de marajás, hoje, o exterminador dos gays, feministas, negros, comunistas, petistas, bolivarianos, Bolsonaro). No fundo o que temem é que o regime democrático possa trazer o questionamento de seus privilégios, que ele sirva de instrumento para que os interesses populares possam alcançar os parlamentos e os governos, que eles deixem de ser monopólios desses grupos dirigentes. Desqualificar o povo é uma forma de não o ouvir. Daí porque essas castas dominantes têm que punir violentamente aquele homem do povo que, através da democracia, conseguiu furar o bloqueio de acesso ao poder político por parte dessas elites antimodernas e, por isso mesmo, antidemocráticas, antipopulares, elitistas, defensoras de hierarquias e privilégios, defensoras de lugares e postos hereditários e estamentais.
Os antimodernos falam a língua da contrarrevolução, da defesa da ordem, da crítica a participação popular nas decisões. Eles temem as organizações populares, os movimentos sociais, eles recusam as ideologias que defendem o trabalho e o trabalhador. No Brasil, os antimodernos chegam a sentir saudade da escravidão, da vida senhorial, da ordem nobiliárquica. Abominam o que a cidade trouxe de modificação nas sociabilidades e nas sensibilidades. Sentem saudade da vida rural, mesmo quando nunca lá viveram. Possuem uma visão idílica da vida no campo, escondendo a violência das relações sociais e de trabalho no meio rural brasileiro, a pobreza da maioria de nossa população camponesa, a discricionariade dos costumes aí imperantes. A reforma trabalhista do governo Temer, a atuação da bancada ruralista, as teses que defende, mostram o caráter antimoderno desse governo surgido do golpe e dos grupos que o apoiam. O discurso anticomunista que se espalha nas redes sociais, o antipetismo, o ódio a Lula, são faces desse ódio ao moderno no campo da política, à presença das camadas trabalhadoras como agentes políticos. Muita gente ainda tem cabeça de Antigo Regime, preferiria que povo e trabalhador não fizessem parte da vida política, que essa fosse monopólio de escolhidos pelo sangue ou pelo pertencimento a dadas classes sociais (o dandismo elitista de gente como João Dória, o messianismo cristão de Marcelo Crivela, assim como o bomocismo chic de Luciano Hulk ou de um Aécio Neves, que estourou como bolha de sabão, o moralismo conservador de um Joaquim Barbosa ou de Alckmin, o moralismo e o romantismo verde de Marina Silva, são expressões de formas distintas desse elitismo reacionário). São todos apresentados como ungidos e escolhidos, pela fortuna, pela moral, pela fé, por ser santo ou por ser imaculado pela corrupção. Depois não entendem porque a maioria da população não se identifica com eles, mas com aquele que tem a sua cara e seus defeitos, o que reforça sua ojeriza ao povo e ao regime democrático.
Os antimodernos criticam a emergência da ideia de liberdade individual, de indivíduo, equiparada à prevalência do egoísmo e da falta de solidariedade e caridade cristãs. Tudo que daí adveio, como a liberdade de consciência, como a recusa a submeter seus hábitos, sua vida, seus costumes, seus gostos, seu corpo aos ditames ditos comunitários e coletivos é mal visto pelos antimodernos. Embora eles tenham sido fruto dessa cultura e desses valores, da própria possibilidade de constituírem-se como diferenças individuais, são saudosos da vida comunitária, da submissão dos filhos aos valores familiares e tradicionais (o movimento escola sem partido e a perseguição ao que se chama de ideologia de gênero entre nós nasce dessa recusa de que os filhos possam ser e pensar diferentes dos pais, que possam escolher livremente seus valores e posições políticas), da subordinação de seus valores aos ditames de uma religião, de uma Igreja. O familismo presente em obras clássicas da vida intelectual brasileira, como a de Gilberto Freyre, uma grande estrela da antimodernidade à brasileira, nasce dessa recusa da prevalência moderna do indivíduo em choque com as instituições, desafiando e transgredindo as instituições. As violentas diatribes bolsonarianas ou evangélicas contra o feminismo e a defesa dos direitos das mulheres, contra o movimento homossexual e contra a própria homoafetividade, contra as diferentes escolhas no campo da sexualidade, da moralidade, da religiosidade, das crenças políticas, das preferências estéticas, mostram a recusa a uma premissa fundamental da modernidade: a prevalência dos direitos individuais, do direito a aceitação da sua forma diferente de ser indivíduo.
O antimoderno é antidemocrático, é elitista, tem uma visão hierárquica e estamental do mundo, defende a ordem, é antitrabalhista, anticomunista, detesta e teme a revolução e transgressão, sonha com um mundo ressacralizado, guiado pelos ditames religiosos (mesmo que as religiões tenham modernamente se tornado mercadorias). O antimoderno é antiburguês e anticapitalista (por isso muito de nossos antimodernos foram e são de esquerda), por isso aderem à ideologias fascistas e totalitárias, pois no fundo temem o caráter revolucionário do próprio capitalismo que gera insegurança e desordem (por isso mesmo empresários se regem por visões de mundo aristocratizantes e senhoriais, quando não aderem e financiam movimentos de extrema-direita que prometem segurança e ordem, muitos estarão dispostos a apoiar Bolsonaro). O antimoderno vive de ilusões comunitaristas (os irmãos evangélicos e os companheiros do partido de esquerda), abominam manifestações do que seria o individualismo ou a singularidade individual (a perseguição moralista a homossexualidade tanto se dá nas igrejas como seu deu nos partidos de esquerda. Recentemente o jornalista Fernando Brito voltou a responsabilizar as lutas particularistas por direitos como as responsáveis pela crise das esquerdas que teriam perdido a capacidade de ofertarem projetos coletivos). O antimoderno é nostálgico, saudosista, encantado com um mundo rural idílico, com uma infância de harmonia e vida familiar, vida familiar e famílias que não mais existem, que não se encontram em lugar algum e que tentam restaurar por um retorno a modelos patriarcais e hierárquicos há muito contestados (por isso as feministas e as mulheres são vistas como agentes do mal e da dissolução da vida social, assim como o militante gay, trans, travesti). Essa é a cara das elites brasileiras, antimodernas, apesar de modernizadoras, moderninhas e até modernistas. Vivemos sob o império do brega, como um dia vivemos sob o império do cafona: na música, na televisão, na vida religiosa, na vida empresarial, nas sociabilidades de elites, no jornalismo, na intelectualidade consagrada e de bestseller, na crônica esportiva, etc. Temos um dos governos e um dos governantes mais bregas que já passou por aquele palácio, temos um Congresso atravancado de gente brega e um judiciário onde a breguice de toga nos é servida todo dia pela TV em doses cavalares. Essa é a face mais obscura de nossa antimodernidade. Há faces luminosas que falarei em outro momento, pois como tudo que é histórico e humano, a antimodernidade é ambivalente, é ambígua, mas isso é tema para outro artigo de opinião.
Durval Muniz de Albuquerque é historiador e professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(Texto publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem, aqui reproduzido com autorização do autor)
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