Dennis de Oliveira
O filósofo Frantz Fanon (Arte Andreia Freire / Reprodução)
No dia 11 de maio, participei de um debate com o professor Deivison Nkosi, no lançamento do seu livro, Frantz Fanon: um revolucionário particularmente negro (Ciclo Contínuo Editorial). Impressionou-me o número de pessoas presentes, demonstrando que há uma demanda importante por reflexões densas sobre as relações raciais.
Não vou discorrer em detalhes o debate e nem sobre o livro do grande Deivison Nkosi. Apenas destaco a importância de recuperar o pensamento de Fanon, um intelectual revolucionário pouco estudado e conhecido nos meios acadêmicos, inclusive na própria “esquerda”, particularmente por ser negro.
E a importância de Frantz Fanon reside justamente nas possibilidades que as suas reflexões possibilitam para compreender os potenciais (e limites) do que Hohmi Bhabha chama de “tempos liminares das minorias” em que estratégias de narrativas da diferença impedem a total cristalização da hegemonia do sistema vigente – e, aí, se inserem as pressões exercidas pelas narrativas identitárias aos discursos dominantes que, em determinados momentos pontuais (“tempos liminares”), acolhem parte das reivindicações – como foi o caso da película Os Panteras Negras (2015). Mas, além disto, destaco que o pensamento fanoniano também possibilita a articulação do antirracismo com o projeto descolonial.
Tal possibilidade é importantíssima tendo em vista que há uma tendência em vários expoentes do pensamento progressista em querer “periferizar” a temática do combate ao racismo, restringindo a questão da reivindicação identitária ou de direitos humanos. A leitura atenta de Fanon demonstra que a agenda antirracista vai muito além disto. E, inclusive, o ir além disto está presente nas suas críticas a um identitarismo fechado em si mesmo, razão pela qual o pensador da Martinica critica os movimentos da negritude de Aime Cesáire e Leopold Senghor.
Para Fanon, existe uma reificação da opressão na formação das subjetividades negras que só pode ser rompido à medida que se estabelece uma perspectiva de superação da ambiência de opressão racial. Assim, a superação do racismo para Fanon passa pela conscientização da população negra não de uma pretensa essencialidade positiva sua, mas na práxis de combate permanente aos mecanismos de opressão. Na mesma linha, Stuart Hall afirma que a ação dos grupos discriminados no “tempo liminar das minorias” se impede a total cristalização do poder instituído, obrigando-o a constantes negociações e deslocamentos, também “não são capazes de inaugurar formas totalmente distintas de vida”, isto é, não funcionam segundo a noção de uma superação dialética totalizante, nos dizeres de Hall.
Em uma sociedade da inflação das informações, percebe-se que esta disputa de narrativas se transforma em um cenário onde há uma atuação intensa deste tempo liminar das minorias, ou da differance no sentido dado por Jacques Derrida, que é apropriado de forma lateral nas propostas políticas alternativas. Entretanto, Fanon alerta para esta reificação e assujeitamento que ocorre pela manutenção de uma ambiência opressiva – que pode ser bem demonstrada pela exibição do filme Pantera Negra (2018) e das campanhas contra o racismo na Globo e na Copa do Mundo de futebol que, no entanto, acontecem sempre em paralelo com os crescentes assassinatos de jovens negros nas periferias.
Entender esta articulação entre as estratégias da differance e da descolonialidade do poder tem no pensamento de Fanon um suporte importantíssimo.
Primeiro, porque Fanon entende que a construção do sujeito é um processo realizado dialeticamente entre a subjetividade e as ambiências sociais. Por esta razão, Deivison Nkosi alerta que um conceito central em Fanon é a de sociogenia que se diferencia da ontogenia de Sigmund Freud (a constituição do ser humano particular em seu próprio tempo de vida e desenvolvimento) e da filogenia (as particularidades humanas como produto de uma universalização da espécie). Assim, as subjetividades são construtos realizados na práxis social, na qual as estratégias da differance também são incluídas.
Segundo, porque a completa humanização do ser negro só se realiza quando se estabelece uma ambiência de não opressão. O humanismo é, assim, um devir, um vir-a-ser para o sujeito negro, ele se realiza constantemente no enfrentamento das opressões sociais. É por esta razão que Fanon rejeita uma prática política que parte de uma dimensão particular (a identidade negra) direcionada apenas para a sua afirmação (cristalização de uma essencialidade negra como parte de um universo múltiplo) mas defende que ela sinalize para uma universalidade de uma dimensão de não opressão que possibilite a real humanização do ser negro. E isto passa, necessariamente, pela descolonialidade do poder instituído pelo sistema-mundo desde os tempos da colonização. É a descolonização das mentes.
No atual ecossistema comunicativo da sociedade da inflação das informações, em que a monopolização se direciona para as plataformas distributivas, possibilitando às estruturas hegemônicas apropriarem-se das narrativas da diferença, o pensamento de Fanon pode apresentar pistas interessantes para a reflexão das estratégias da differance exercidas nas redes sociais. Ou até mesmo pensar que este aparente caos informativo tem uma direção que espiona de forma esgueira, mas eficiente.
(Publicado originalmente no site da revista Cult)
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