O
Brasil, na realidade, tem muitos intérpretes. Alguns deles, como Gilberto
Freyre, Caio Prado e Sérgio Buarque de Holanda, cada um a partir de um
paradigma de análise social específico, se tornariam famosos ao se debruçarem
sobre a empresa de entender o país. Mas, a constelação de grandes intérpretes
da realidade social brasileira é bem mais ampla, permitindo o ingresso,
certamente, de um Roberto DaMatta, de um Celso Furtado, de um Darcy Ribeiro, de
um Josué de Castro, observando que não há um rigor absoluto nessa listagem,
fazendo justiça às possíveis ausências. Antes de falecer, o professor Manuel Correia
de Andrade organizava um seminário na UFPE com o objetivo de debater exatamente
a obra desses grandes intérpretes da nacionalidade. Uma iniciativa bastante
interessante, mas que se foi com o autor de A
Terra e o Homem no Nordeste.
Entre
outras razões, a partir das suas escolhas metodológicas, torna-se perfeitamente
possível observar de onde esses autores lançaram seus olhares sobre a nossa
realidade, se a partir dos sobrados e casas grandes ou a partir das senzalas,
mocambos e palafitas. Josué de Castro, por exemplo, arregaçou a camisa e foi
conhecer a realidade dos alagados do Recife, dos bairros de Afogados, Pina, do
Coque, da Ilha de Deus, experiência que o tornaram um dos maiores conhecedores
do problema da fome no mundo.
Outro
dia, um leitor, fazendo uma observação sobre um artigo nosso, publicado num
site nacional, mencionou que eu estava se referindo ao cansativo tema dos 512
anos de atraso do país. Em certa medida ele tem razão, se considerarmos que,
desses 512 anos, aproximadamente 385 anos foram de um regime escravocrata e o
restante está relacionado às suas consequências nefastas para a sociedade
brasileira, traduzida no racismo, na intolerância, na histórica injustiça
social. O Brasil é um país que insiste em manter os seus muros, quando deveria
construir pontes que nos aproximassem, enquanto uma nação, e não como um
arremedo de convivência entre a sua elite e o seu povo, com escaramuças
cotidianas indisfarçáveis.
O
resultado é que somos um país sem identidade, sem um projeto de nação, do
eterno de vir. Um país do futuro, mas que, na realidade, já encruou. Possuímos
um sistema político secularmente hegemonizado por oligarquias ou grupelhos que
apenas defendem seus interesses no interior do Estado. Uma democracia
representativa capenga, eivadas de vícios solenemente conhecidos de todos os
brasileiros. Um país extremamente polarizado, hierarquizado, desigual e, em
virtude de tudo isso, necessariamente com um viés susceptível ao autoritarismo.
Praticamente não há diálogo entre o andar de cima e o andar de baixo.
Sempre
que o andar de baixo vai às ruas, seus atos são tipicamente tratados como de “vandalismo”
ou de “baderna”, sem sequer entrar no mérito de suas reivindicações. A elite
utiliza com maestria seus “aparelhos” para reprimir a violência disfuncional,
ou seja, aquela que atenta contra seus interesses cristalizados. Na chamada
grande mídia, nenhuma indignação contra os pretos, putas e pobres eliminados
diariamente numa espécie de “cordão sanitário” para proteger a “dinâmica” da
nossa organização social. A chamada violência funcional, fundamental para
preservar os interesses e privilégios da burguesia.
Isso
cria problemas para ambas as partes: temos uma elite insensível, preconceituosa,
que só admite o Estado atuando de acordos com os seus interesses. Uma
intelectualidade forjada nos estratos de classe média, média alta, cooptável,
perfeitamente integrada à burocracia e aos negócios de Estado. Alguns deles até
levantando - apenas como discurso - bandeiras de esquerda, mas muito bem
acomodados em gabinetes de alguma repartição pública, com ar-condicionado e
cafezinhos, articulando suas redes. Afinal, como já observou um digníssimo
sociólogo, nossa intelectualidade sente um fetiche irresistível pelo Estado.
Remeto
a essas observações para analisar o mérito das recentes vaias e xingamentos
dirigidos aos médicos cubanos, na cidade de Fortaleza, orquestradas por uma
galera de médicas patricinhas (ou seriam coxinhas) formadas em nossas
universidades públicas, mas que prestaram juramento ao capital. Atos de racismo
explícito, que poderiam, inclusive, ser passível de enquadramento e punição
rigorosa. Os currículos dessa rapaziada deselegante todos já conhecem.
Estudaram em bons colégios e reuniram condições de passar na peneira de concorridíssimos
vestibulares para ingressarem em universidades públicas, financiada com
dinheiro público, entre os quais os impostos daqueles que não reuniriam as
condições de cursá-las. O perfil social? Notadamente a classe média alta
tradicional.
Esse
“ranço” era mais do que previsível no contexto de um país com as nossas
características e, se desejam acrescentar, o célere processo de privatização da
medicina brasileira, onde os hospitais públicos estão sendo geridos por
organizações da iniciativa privada, e estão se formando verdadeiros cartéis de
planos de saúde, cujos atendimentos – para aqueles que podem custeá-los – vai tudo
bem até suas necessidades não ultrapassarem os rotineiros exames de fezes periódicos.
Por essas épocas, os laboroatórios especializados ficam aborrotados de vendedoras de "perfumes". Nunca vi tantas sacolas de produtos da Natura ou da Avon.Na Ilha do Leite, um dos maiores pólos médicos do país, a grande maioria dos
leitos de UTI’s, podem pesquisar, estão sendo ocupados em função de liminares
concedidas pela Justiça. Nas favelas que circundam o bairro, certa vez, um cidadão precisou transportar sua esposa, que sofrera um enfarto, através de um carrinho de mão, até o Hospital da Restauração. A senhora faleceu. Eis aqui um ato de "vandalismo".
Essa
urticária da elite não se restringe apenas aos médicos cubanos que estão chegando
para atuarem no Brasil. O ódio também é destilado aos programas como Bolsa
Família, o programa de cotas de ingresso nas universidades, a PEC das
empregadas domésticas, assim como todas as políticas públicas que se propõem a
atender as demandas do andar de baixo. O Bolsa Família transformou-se no maior
e melhor programa de transferência de renda do mundo. Estudos irrefutáveis,
realizados por pesquisadores idôneos, contribuem para debelar todos os esteriótipos
dirigidos ao programa. Nos últimos anos, por exemplo, 1,6 milhões de pessoas
saírem espontaneamente do programa. Agora, por ocasião da grande estiagem no
Nordeste, como lembrou o jornalista Bob Fernandes, sobretudo em razão do
programa, não foram verificados problemas de saques na região.
As
cotas e o Prouni foram responsáveis pelo maior ingresso de jovens de estratos
sociais desfavorecidos, entre 18 e 22 anos, no ensino superior nos últimos
anos, desmistificando tudo que se afirmava a respeito. O Brasil possui 700
municípios onde não existe sequer um único médico. Prioritariamente, é para lá que
irão os médicos cubanos, formados numa educação socialista, ou seja, onde se aprende
para contribuir socialmente com a melhoria da qualidade de vida da população. A
lógica do capital é bem diferente. Essas localidades ficam, por razões
históricas já elencadas no início do texto, em regiões como a Norte e o
Nordeste e no Vale do Jequitinhonha, um bolsão de miséria nos grotões do país,
que essas patricinhas talvez nem sequer tenham ouvido falar.
Aliás,
senhor Aloízio Mercadante, precisamos mudar urgentemente o desenho curricular
dos nossos cursos de medicina. Em entrevista concedida a um determinado blog, a
principal liderança envolvida nas hostilidades contra os médicos cubanos, em Fortaleza,
afirmou um monte de bobagens que, na realidade, não depõe apenas contra o seu
preconceito latente, mas, igualmente, evidencia sua precária formação
acadêmica, além da absuluta ausência de educação doméstica, como diria nossas avós.
José Luiz Gomes Silva
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