pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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terça-feira, 5 de janeiro de 2021

"É nosso dever lutar por nossa liberdade": sobre a autobiografia de Assata Shakur


No dia 16 junho de 2017, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, participava de um evento na Pequena Havana, bairro de Miami onde moram cubanos exilados, com uma audiência formada por setores da comunidade cubana-estadunidense que o apoiaram durante o processo eleitoral. No discurso proferido, entre outras questões, mencionou o cancelamento das políticas de aproximação entre Cuba e os Estados Unidos, iniciada durante a presidência de Barack Obama. Trump também exigia a liberdade dos presos políticos cubanos e demandava o retorno de estadunidenses exilados naquele país, que nomeava como fugitivos. Uma menção em especial, com direito a ênfase e pausa dramática, chamou a atenção: “[…] return the fugitives from american justice — including the return of the cop-killer Joanne Chesimard” (“[…] entreguem os fugitivos do sistema de justiça estadunidense — incluindo a assassina de policiais Joanne Chesimard”).[nota 1]


Por que o presidente de uma das maiores potências econômicas do mundo publicamente nomeava essa mulher como um dos empecilhos para aproximação entre dois países? Quem é, afinal, Joanne Chesimard? O que havia de tão singular em torno dela?

“MEU NOME É ASSATA SHAKUR” [nota 2]

Joanne Chesimard é o nome civil de Assata Shakur, cuja trajetória representa os desejos e lutas por liberdade e autodeterminação para muitos movimentos de libertação negra em todo mundo. Ela é referência essencial para o movimento Black Lives Matter e seu livro Assata: An autobiography, lançado em 1987, é responsável por sua contínua e permanente circulação. No Brasil, de forma independente, os textos e o pensamento da autora já circulam há algum tempo entre setores do movimento negro, que a tem como referência. Em dezembro, está prevista o lançamento da edição brasileira do livro pela editora Pallas, com tradução de Carla Branco.

Como ocorreu com um número considerável de ativistas negros — que foram criminalizados, perseguidos, presos ou eliminados pelo Estado, em especial nas ações do Cointelpro [nota 3] —, Assata foi acusada de crimes que não cometeu, entre eles o assassinato de um policial no dia 2 maio de 1973, em uma carreteira na cidade Nova Jersey. [nota 4] O que seria mais um caso comum naquele contexto tornou-se excepcional quando ela conseguiu fugir do presídio, em 1979, e reapareceu em Cuba, na década seguinte, na condição de exilada política.

Assata Shakur nasceu na cidade de Nova York em 1947, mas passou a infância na Carolina do Norte, um estado sulista segregado. Retornou adolescente para o distrito do Queens, em sua cidade natal. Participou de algumas organizações negras que compuseram o movimento Black Power, militou no Partido dos Panteras Negras. Posteriormente, após a brutal investida do Estado americano para destruir o Partido, ela integrou o Exército da Libertação Negra, uma organização da qual pouco se sabe por conta de seu caráter clandestino — a própria autora menciona poucas informações sobre o assunto no livro.

No período que esteve no Partido dos Panteras Negras, não era uma liderança pública. Na verdade, ela, como outras mulheres negras, fazia parte da base do Partido, ainda que publicamente as principais lideranças fossem masculinas. As mulheres eram responsáveis, por exemplo, pela execução dos programas sociais para a comunidade, dos quais o mais famoso era o programa do café da manhã que alimentava crianças antes delas irem à escola — muitas das crianças, particularmente as negras, iam assistir aulas com fome e tinham dificuldades de aprendizagem. Um dos aspectos interessantes da autobiografia é o relato e análise da experiência cotidiana dos Panteras do ponto de vista de quem estava na base, longe dos holofotes.

AUTOBIOGRAFIA

A autobiografia de Assata Shakur é uma obra de referência lida nos mais variados contextos, de ativistas a acadêmicos. A razão de sua popularidade está no fato de a autora elaborar uma construção e apresentação de si profundamente conectadas a uma reflexão acerca do racismo e da supremacia branca na formação estrutural dos Estados Unidos, apontando elementos práticos para a ação política.

A obra compõe uma conhecida tradição de escritas autobiográficas feitas por integrantes dos movimentos de luta por libertação negra das décadas de 1960 e 1970, um campo narrativo no qual a escrita feita por mulheres negras ocupa um espaço tímido, mas contundente.[nota 5] No conjunto dessas publicações observa-se a característica comum de realizar um exercício de autorreflexividade, teorização e organização da própria trajetória. Elas servem como espaço de elaboração tanto de si como do contexto nos quais viveram e atuaram. Trata-se, também, de narrativas de disputa da própria História e de determinados acontecimentos que foram primeiramente apresentados por terceiros (imprensa ou governo, por exemplo) em campanhas de vilipendiações.

A autobiografia de Assata Shakur, contudo, amplia as características usuais do gênero por algumas razões. Suas singularidades verificam-se, por exemplo, nas experimentações literárias da obra, que acomoda gêneros como a poesia (a autora coloca seus próprios poemas na narrativa), algo incomum em publicações similares. Há, também, uma descontinuidade na estrutura cronológica da apresentação dos acontecimentos: os capítulos não estão organizados de forma linear, revelam alternâncias de temporalidades, idas e vindas na narrativa.

No entanto, o que a torna realmente singular é a acomodação do silêncio, a manutenção do segredo — e, ainda que o caso dela não tenha sido o único, é sem dúvida um dos mais instigantes e um dos que alcançaram grande visibilidade midiática. A trajetória da autora é envolvida em mistérios instigantes que não são resolvidos no livro; ou seja, o que gostaríamos de saber não nos é dito. Propositalmente, ela não nos conta como conseguiu escapar da prisão. Onde esteve durante sua clandestinidade? Como sobreviveu? Como chegou a Cuba? Assata não apresenta respostas para essas perguntas; antes, faz descrições vagas, sugere mais do que responde e, principalmente, mantém o silêncio sobre aquilo que não se pode revelar. Afinal, há segredos que devem ser preservados.[nota 6] Esse interdito torna a leitura menos óbvia e mais interessante pois, em lugar de satisfazer a curiosidade do público, a autora nos leva a outros caminhos. No livro, esses silêncios são expressivos porque compõem um espaço especulativo a respeito da possibilidade de futuros.

A busca pela liberdade e seus significados é um dos temas que mobilizaram as ações políticas e as reflexões teóricas de Assata. Não é casual que o pós-escrito da autobiografia a tenha como primeira palavra: “Liberdade. Eu não conseguia acreditar que aquilo realmente tinha acontecido, que o pesadelo havia acabado, que finalmente o sonho se tornou realidade.”

Também não é casual que a narrativa se encerre em Cuba, local onde a autora encontrou sua liberdade: afinal, o governo cubano tem assegurado e garantido sua segurança física. O final do livro traz o tão sonhado encontro entre as mulheres de sua família: a mãe, a tia e a filha que teve no período em que esteve encarcerada. Assata termina com as seguintes palavras: “Não havia dúvida, nosso povo um dia seria livre. Os cowboys e os bandidos não eram donos do mundo.”

As fundadoras do movimento Black Lives Matter mencionam com frequência a importância da autora para elas, repetindo com frequência a frase Assata taught me (“Assata me ensinou”). Em termos de liderança política, há uma particularidade a respeito do Black Lives Matter: é a primeira vez na história das lutas negras nos Estados Unidos que o protagonismo público não pertence aos homens negros, mas às mulheres negras. Assim, entende-se a importância de Assata como referência revolucionária feminina.[nota 7] Versos de sua autoria são constantemente citados por ativistas do movimento ao término de reuniões, atos e encontros, repetidos em conjunto como mantras que inspiram as gerações mais jovens a persistirem. Assim, seguem e mantêm a tradição de luta, levando-a até as próximas gerações:

É nosso dever lutar por nossa liberdade.
É nosso dever vencer.
Devemos nos amar e apoiar uns aos outros.
Não temos nada a perder, exceto nossas correntes: [nota 8]

Em 2013, Assata tornou-se a primeira mulher a entrar na lista de terroristas mais procurados do FBI. Atualmente, a recompensa por seu paradeiro, de acordo com o site do próprio FBI, é de um milhão de dólares. Não é sem razão que o presidente dos Estados Unidos, que sustenta abertamente a ideia da supremacia branca, a considere uma “questão internacional”. No entanto, para pessoas comprometidas com a luta contra o racismo e contra a supremacia branca, Assata Shakur é uma revolucionária.


NOTAS

[nota 1] A declaração de Trump está disponível em youtube.com/watch?v=7yNsiZbKd1s (em 24’12”).

[nota 2] A citação completa no original: “My name is Assata Shakur (slave name joanne chesimard), and I am a revolutionary. A Black revolutionary” (em Assata: An autobiography; Westport, Connecticut: Lawrence Hill Books, 1987, p. 49). As traduções das demais citações deste texto são de minha autoria.

[nota 3] Cointelpro foi um programa de contra inteligência do governo estadunidense que se dedicou a perseguir dissidentes políticos de forma ilegal. Sabe-se hoje, por meio de ampla documentação sigilosa liberada pelo próprio governo estadunidense, que movimentos e lideranças eram monitorados. Há evidências que provam o envolvimento do FBI e dos departamentos de polícias em assassinatos, e se envolveram na imputação de crimes a membros da chamada “esquerda radical” — particularmente, a militantes negros revolucionários, alguns dos quais se encontram presos até hoje.

[nota 4] O caso é bastante complexo. Em maio de 1973, Assata, Zayd Malik Shakur e Sundiata Acoli estavam em um carro que foi abordado pela polícia em uma rodovia com pedágio. A situação se transformou em um tiroteio no qual morreram Zayd e um policial. O julgamento ocorreu em 1977 e Assata foi condenada pelo assassinato do policial mesmo com as evidências médicas comprovando que seria impossível ela ter feito o disparo, uma vez que já se encontrava imobilizada em função de um tiro que recebeu de outro policial.

[nota 5] Além da autobiografia de Assata Shakur, outras duas escritas por mulheres negras ativistas são consideradas clássicos referenciais do gênero: a de Angela Davis, Uma autobiografia (Boitempo, 2019); e a escrita por Elaine Brown, A taste of power: A black woman’s story (Nova York: Doubleday, 1992). Abordei o assunto em artigo neste Pernambuco, na edição de março/2019, no qual discuti a autobiografia de Angela Davis.

[nota 6] Assata consegue a liberdade em uma ação considerada ilegal e que contou com a participação de muitas pessoas, algumas posteriormente presas e outras cujo envolvimento não se sabe ao certo.

[nota 7] Por essa filiação política, é frequente que conservadores e reacionários acusem o movimento de terrorista e violento. Uma das apresentações feitas pelas lideranças do Black Lives Matter está disponível em youtube.com/watch?v=dUZDZaWNOFg

[nota 8] No original: “It is our duty to fight for our freedom./. It is our duty to win./ We must love each other and support each other./ We have nothing to lose but our chains:

(Publicado originalmente no site do Suplemento Pernambuco)

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Madame Bovary e as Tiranias da Intimidade | Margareth Rago

Tijolinho: Oposição qualificada na Casa de José Mariano. Bom para a democracia.


O PSB pernambucano já começa a preparar o terreno para as eleições estaduais de 2022. Ao assumir a pasta de Desenvolvimento Econômico, confirma-se a nossa previsão de que o nome o ungido é mesmo do ex-prefeito do Recife, Geraldo Júlio(PSB), que vem de um sensível desgaste neste segundo mandato à frente do Palácio Antonio Farias. A expectativa dos socialistas é a de que o futuro prefeito, João Campos(PSB), possa fazer uma gestão bem-sucedida, contribuindo para que o eleitorado urbano possa melhorar a avaliação do partido como um todo, apagando a imagem de uma gestão que enfrentou muitos problemas. A secretaria de Desenvolvimento Econômico é uma secretaria estratégica, com capacidade de captação de grandes recursos privados, o que pode projetar o nome do seu titular, habilitando-o ao embate de 2022, que não será fácil, pois a oposição conta com uma safra de novos prefeitos, com grande capacidade de trabalho, reeleitos, com  capilaridade politica, administrando grandes redutos eleitorais, em alguns casos, numa linha direta com Brasília. 

Aqui no Recife, são enormes as dificuldades que deverá enfrentar o futuro prefeito, problemas que se acumulam durante décadas, como perda de competitividade, redução de investimentos privados, aumento sensível das desigualdades sociais, degradação do centro da cidade. Outro dia fiquei estupefato com um vídeo que assisti sobre a população em situação de rua que está ocupando o pátio da Matiz de Nossa Senhora do Carmo, um dos nossos cartões postais. Alguém me informou que o mesmo problema ocorre em outros logradouros, como o Pátio de São Pedro, a Praça Maciel Pinheiro, proximidade do Mercado de São José, entre outros. Os recursos são escassos e exige dos novos gestores muita sensibilidade e criatividade para empregá-los da melhor maneira possível, em função de um benefício coletivo. Recife tem um sério problema com as intervenções urbanas, sempre orientadas pelo interessse do capital, desde o século passado. Outro dia ficamos sabendo sobre uma dissertaçãode mestrado, defendida recentemente, tratando desta questão. Isso confirma uma tese que sempre enfatizamos por aqui, a partir de um grafite observado no muro do Hospital Ulisses Pernambucano, conhecido como Tamarineira: O arquiteto do Recife é o capital. 

As possíveis mudanças nas diretrizes que regem as ZEIS - Zonas Especiais de Interesse Social - num processo de flexibilização legal permissivo, abrindo espaço para maior intervenção do capital, é algo que deve ser cuidado com bastante carinho, evitando posturas de caráter higienistas, facultando o acesso à cidade a apenas alguns poucos cidadãos privilegiados, com capacidade de consumo. Muito salutar, neste sentido que, logo na posse, a veradora eleita pelo PT, Liana Cirne, tenha exposto uma longa faixa na Casa de José Mariano, chamando a atenção do poder público para o problema. Liana Cirne, ao lado de Jairo Brito(PT), Ivan Morais(PSOL) Dani Portela(PSOL), a vereadora mais bem votada nas últimas eleiições - constitui-se numa safra de vereadores sérios, movidos pelo espírito público, preocupados com o bem comum, de perfil  republicano, que deverão fazer a diferença nos trabalhos daquela Casa. Embora o Partido dos Trabalhadores não assuma esta posição, tanto Liana quanto Jairo já assumiram que serão oposição.  

 

Editorial: Camilo Santana é a aposta do PSB para as eleições presidenciais de 2022



Um grande jornal paulista, ainda no dia de hoje, publicou um editorial acerca de um possível sectarismo do Partido dos Trabalhadores, numa referência às articulações em torno da Presidência da Câmara dos Deputados. Ora, esse termo, "sectarismo", era muito usado na década de 80 do século passado, quando se tentava caracterizar aquela agremiação política singular, surgida nas lutas sindicais e sociais, formada por lideranças do Novo Sindicalismo, setores que haviam pego em armas contra a Ditadura Militar, intelectuais de classe média, segmentos progressistas da Igreja Católica. Com o crescente processo de inserção daquele grêmio partidário nas regras do jogo da democracia representativa burguesa, gradativamente, o PT institucionalizou-se, celebrando alianças com grupos conservadores e acordos com o capital, perdendo, naturalmente, as características identitárias que marcaram o sua origem, entre elas o sectarismo. Não acredito que este seja hoje um termo dos mais felizes para ser impingido àquela agremiação política. 

O que percebemos como muito nítido, hoje, é a confirmação da tese do sociólogo alemão, Robert Michels, sobre o processo inevitável de oligarquização das origanizações sindicais e partidárias. No atual estágio, o partido possui suas tendências hegemônicas, capitaneadas por seus caciques, que, praticamente, controlam os órgãos deliberativos da legenda em cada estado da federação, mesmo enfrentando uma forte resistência dos setores mais jovens, orgânicos ou "radicais". Como dizia o cientista político italiano, Angelo Panebianco - numa referência às mudanças institucionais - por mais que uma instituição política mude ao longo de sua história, sempre haverá uma influência das cartas jogadas no início de sua formação. Haverá sempre esses grupos mais autênticos na agremiação, embora em situação de subalternização em relação aos chamados oligarcas. Aqui na província pernambucana, por exemplo, são esses grupos mais orgânicos e autênticos que exigem que o partido entregue os cargos no Governo Paulo Câmara(PSB) e volte a ser oposição. Principalmente depois do desgaste produzido pelas últimas eleições municipais. 

Não conheço em profundidade a realidade de outras praças, mas não seria improvável um diagnóstico de que a mesma situação ocorre, por exemplo, com o PT de Fortaleza, no Ceará. Ali, nas últmas eleições municipais, travou-se uma luta renhida entre as forças de oposição e setores conservadores, que perfilaram em apoio ao nome do capitão Wagner(Pros). O governador do PT, Camilo Santana, coerentemente, apoiou o nome indicado pelo PDT, Sarto Nogueira, que, no final, acabou vencendo aquelas eleições. Numa atitude, neste caso pouco compreensível, setores da agremiação decidiram que iriam fazer oposição ao futuro prefeito, algo que desgostou bastante o atual governador, Camilo Santana. Os rumores dão conta de que ele estaria de malas prontas para ingressar no Partido Socialista Brasileiro, numa articulação onde estaria em jogo as eleições presidenciais de 2022. Um dos artífices dessas articulações seria o governador de Pernambuco, Paulo Câmara(PSB), que, pelo visto, parece ter tomado gosto pela política depois do segundo mandato. Paulo Câmara foi um técnico alçado à condição de político pelo ex-governador Eduardo Campos. Além das articulações nacionais, prepara o terreno para fazer seu sucessor no Estado, nas eleições do próximo ano.  

O governador do Maranhão, Flávio Dino(PCdoB) também integraria essa composição. Isso talvez explique o acordo de cavalheiros com o PT local, que deve manter seus representantes no Governo do Estado, mesmo com forte resistência de integrantes e parlamentares da legenda, que já assumiram que farão oposição aos governos municipal e estadual dos socialistas. É preciso maiores informações para se tirar alguma conclusão mais específica sobre esse arranjo político, costurado com muito zelo pelas duas legendas. Como disse ontem no editorial, a plutocracia paulista petista, há muito tempo, faz uma dobradinha entre Lula e Fernando Haddad, ambos com juras de amor eterno. Uma relação de lealdade absoluta, o que é raro em política. Se Lula torna-se inviável por algum motivo, o bastão da disputa é entreque ao professor. Como já afirmamos antes, o PT tem capital político para levar uma eleição presidencial para o segundo turno - o que é importante - mas  torna-se alvo fácil para os adversários no segundo turno, em razão do desgaste proporcionado no imaginário social em razão da campanha sistemática de destruição de reputação. 

Principalmente aqui na região Nordeste, várias lideranças políticas do partido tem se projetado nacionalmente nas últimas décadas, como é o caso de Jacques Wagner e, naturalmente, Camilo Santana. Infelizmente, esse processo de oligarquização que passa a agremiação tem impedido que essas lideranças sejam testadas nacionalmente. São nomes menos desgastados, promissores, gestores bem-avaliados, que poderiam dar uma efetiva contribuição não apenas para oxigenar seus quadros, mas disputar em melhores condições as eleições. Antes, pesava bastante o argumentos dos grandes colégios eleitoriais, mas, sinceramente, não sei se hoje, este argumento seria assim determinante. Haddad é um dos "menudos de Lula", um conjunto de nomes forjados na luta política pele ex-presidente, depois da inviabilidade política de antigos companheiros, como José Dirceu, por exemplo. Talvez seja o momento de o PT pensar noutras alternativas e fechar seus flancos contra as investidas de outros partidos, mantendo nos seus quadros alguém com o perfil do governador Camilo Santana.  

Charge! Duke via O Tempo

 


domingo, 3 de janeiro de 2021

Tijolinho: Nova geração de prefeitos de olho no Campo das Princesas.




O ex-governador João Lyra Neto assumiu o Governo do Estado por alguns meses, em razão do afastamento do cargo do então governador Eduardo Campos(PSB), que iria concorrer às eleições presidenciais de 2014. Fez uma gestão discreta, como manda o figurino dessas substituições, mas obteve alguns resultados positivos, o que o credenciaria a habilitar-se a concorrer às eleições estuduais de 2016, logo em seguida, projeto inviabilizado pelos arranjos políticos locais da legenda socialista, que tinha outros planos. Mágoas e ressentimentos ficaram, embora, quando governador, Eduardo Campos tenha contemplado bastante aquele município da região Agreste pernambucano. No final, aquela contemplação que, de fato, importava - que seria o endosso do nome dele para concorrer ao Governo do Estado - não saiu. Já com uma certa idade, o patriarca do grupo político dos Lyra recolheu-se aos seus aposentos e passou o bastão da disputa política às novas gerações do clá, neste caso, sua filha Raquel Lyra(PSDB). 

Eleita prefeita em 2016, Raquel Lyra(PSDB) tem feito uma gestão criativa e inovadora, dando nó em água, para empregar bem os recursos públicos nesse momento de escassez. Pelo o andar da carruagem política - uma vez que foi reeleita na eleição municipal de 2020- a princípio, pode-se concluir que o eleitorado está aprovando sua gestão à frente da edilidade municipal. Raquel foi eleita sem muitas dificuldades para um segundo mandato. João Lyra, que estava naquela fase de recolhimento político - não necessariamente o imposto pela pandemia - compareceu à posse da filha, prestigiando-a, cheio de orgulho da herdeira política, que não esconde os projetos de credenciar-se a uma candidatura ao Governo do Estado pela oposição, em 2022.

Raquel Lyra(PSDB), ao lado dos herdeiros políticos dos clãs Ferreira e Coelho, respectivamente Anderson Ferreira(PL) e Miguel Coelho(MDB), são as grandes apostas políticas da oposição para as eleições estaduais de 2022. Cada qual se movimenta como pode - alguns com articulações e capilaridades políticas mais azeitadas, como é o caso de Miguel Coelho, que tem um irmão representante na Câmara Federal, Fernando Filho(MDB), e o pai, Fernando Bezerra Coelho(MDB) no Senado Federal. Seu pai é líder do Governo Federal no Senado - Isso garante a ele melhores condições de negociações de recursos federais para o município de Patrolina, como uma verba já assegurada, obtida através de liberação de emenda parlamentar, para execução pelo DINIT, destinada à melhoria das condições da Rodovia 428, que liga o município ao Recife, obra muito importante para o escoamento da produção da fruticultra irrigada da região. Mesmo neste contexto, não se pode desprezar o capital político dos outros dois possíveis postulantes ao cargo pela oposição, sobretudo em se tratando de cidades estratégicas, com a desnsidade eleitoral de uma Joaboatão dos Guararapes ( Região Metropolitana) ou de uma Caruaru( Agreste).  

P.S.: Do Contexto Político: "Recolheu-se aos seus aposentos", aqui, é força de expressão. Na realidade, não reuni as condições de acompanhar as eleições em Caruaru neste último pleito, mas, quando de sua primeira eleição, em razão das indisposições políticas, o Palácio do Campo das Princesas jogou "pesado' para favorecer seus candidatos naquele município. João Lyra, com a sua experiência, foi o grande artífice da vitória da filha. Estaria cometendo uma injustiça se não reconhecesse este fato, assim como, acredito, que ele seja uma espécie de consultor informal da filha prefeita. 

Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo

 


segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Nós, os brancos, e a nova partilha discursiva

 


Nós, os brancos, e a nova partilha discursiva
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The Libraries Are Aprecciated, Jacob Lawrence, 1960 (Foto: Reprodução/Philadelphia Musem of Art)

 

Mesmo tendo que ser muito cuidadosos com a “cultura do linchamento” e do “cancelamento”, há questões muito importantes no debate suscitado por uma figura respeitada como Lilia Schwarcz em relação ao direito de qualquer um de nós analisarmos criticamente a produção cultural contemporânea para além e independentemente do nosso “lugar de fala”. No caso, a produção é o álbum visual Black is king, de Beyoncé.

Hoje, as controvérsias em torno da noção de “lugar de fala” e das “pautas identitárias” atualizam e repetem as reações hostis contra as cotas raciais reproduzidas por intelectuais brancos, utilizando argumentações muito semelhantes.

O célebre e criticado “Manifesto contra as cotas raciais”, publicado em maio de 2006, tinha como título: “Todos têm direitos iguais na República Democrática”. Endossado por artistas e intelectuais reconhecidos como Lilia Schwarcz – que, em 2019 publicou em seu Facebook um pedido de desculpas pela adesão ao documento -, o abaixo-assinado invocava o “direito universal” para se contrapor à política de cotas proposta pelo Estado brasileiro: “A adoção de identidades raciais não deve ser imposta e regulada pelo Estado. Políticas dirigidas a grupos ‘raciais’ estanques em nome da justiça social não eliminam o racismo e podem até mesmo produzir o efeito contrário, dando respaldo legal ao conceito de raça, e possibilitando o acirramento do conflito e da intolerância”.

O manifesto cristalizou uma argumentação falaciosa de que as cotas raciais “iriam introduzir o racismo no Brasil”. Diante da eficácia da política de cotas raciais nas universidades, tornada uma das mais transformadoras políticas de combate à desigualdade e ao racismo do Estado brasileiro, o documento é hoje considerado um equívoco por muitos que o assinaram. Um equívoco que se repete quando intelectuais brancos acusam os movimentos identitários de produzirem, por meio do debate público e da noção de “lugar de fala”, discursos supostamente radicalizados e irreconciliáveis, responsáveis por “acabar com a empatia”, por criar “polarizações e antagonismos” entre negros e brancos ou ainda por “calar” o debate. A inversão é problemática.

O que os brancos escandalizados não percebem é que sem um desequilíbrio estrutural no poder discursivo não teríamos uma “cota de fala” ainda limitada para os muitos e para os não-brancos, pois naturalizamos o homem branco como o sujeito do suposto saber e do suposto falar. Nós, os brancos, falamos e calamos, e se existe um “lugar de cala”, ele esteve explicitado e/ou invisível nesses séculos de grupos silenciados.

O que está em jogo nos movimentos identitários, no “lugar de fala” tal como nas cotas raciais, é o poder de modular privilégios (mesmo que de maneira ínfima ou simbólica). É essa “desvantagem” temporária no discurso que enfurece os brancos e que faz com que apelem, como no caso das cotas, para um direito universal abstrato que sempre tivemos: o de falar para todos no espaço público.

O comentariado

“Eu posso falar de tudo”. Sim, sempre pudemos, mesmo quando havia ou há pessoas mais habilitadas e com repertório para tal. Nós sempre estivemos nesse lugar central de fala e parece bem doloroso sair dele. Por séculos e décadas os intelectuais brancos se viram como intelectuais públicos e universais, autorizados a falar sobre tudo enquanto acumulam capital simbólico e real.

Os especialistas consultados, os colunistas, os donos de opiniões, foram durante séculos e décadas nós, os brancos, a despeito de existirem centenas de outros sujeitos sociais, acadêmicos, científicos (negros, mulheres, minorias) com as mesmas habilidades que nós, ou melhores. Falar sempre foi um lugar de poder. Opinar, analisar, publicar constitui capital simbólico e real passível inclusive de monetização. Quanto mais eu falo e me exponho, inclusive falando gratuitamente, mais tenho possibilidade que alguém me veja e me pague adiante.

O declínio desse intelectual público já vinha se dando com a ascensão da cultura digital e do comentariado: da massa que opina, publica, critica, dos intelectuais do Youtube, do Instagram, dos influenciadores e formadores de opinião do Twitter. Eles já colocavam em xeque a reserva de mercado de inteligência, opinião e análise do intelectual clássico, provocando uma redistribuição de capital simbólico.

Sim, o comentariado também produziu comportamento de manada, enxameamentos para o bem e para o mal, linchamentos, cancelamentos, destruição de reputações, desinformação global e fake news, um efeito colateral da cultura digital massiva imprevisível. Mas produz também outra desordem estrutural que possibilita uma nova partilha do sensível.

A emergência do comentariado e do cognitariado, essa nova força do capitalismo cognitivo, foi só a primeira ferida narcísica e abalo sísmico nos ambientes acadêmicos e entre os formadores de opinião e especialistas.

Beyoncé, influenciadores e os novos intelectuais

A noção política de “lugar de fala” e as pautas identitárias provocam uma nova partilha do sensível ao desnaturalizar e ao desnudar o privilégio branco de “falar sobre tudo” e “falar pelos outros” como sujeito universal de direitos e discursos.

O “lugar de fala” desequilibra as relações de poder que tem o homem branco universal como centro, daí provoca tanto escândalo e revolta. A primeira função do lugar de fala é se desalienar do lugar de onde falamos para entender as hierarquias, desigualdades e assimetrias que o nosso discurso produz, nega ou reproduz.

Então vamos combinar que a controvérsia em torno da análise de Lilia Schwarcz sobre o álbum visual de uma artista negra mainstream, Beyoncé, não é simplesmente o fato dela não ter gostado da linguagem da Disney ou de ter visto uma África clichê, ou ainda a “glamourização da negritude” com o uso de estampas de oncinha.

“Lugar de fala” é o que limita e expõe as perspectivas, justamente. Schwarcz viu clichês onde analistas e intelectuais negros e brancos viram um afrofuturismo potente, um ativismo mainstream, um imaginário colonial ressignificado e uma África mítica que performa a negritude na centralidade de um espetáculo suntuoso.

Da mesma forma que, no Carnaval, moradores de favelas se vestem de reis e rainhas, se cobrem de ouro, ou os remanescentes dos quilombos brasileiros festejam com as congadas a coroação de rainhas negras em cortejos majestosos, Beyoncé se apropria e “hackeia” a cultura colonial pop, remixando-a com infinitas tradições de matriz africana. Realezas tribais, outros reis e rainhas negras, outra nobreza popular, outras “monarquias” e reinados.

A questão, pois, dessa controvérsia está longe de se reduzir à análise propriamente dita: uma questão de linguagem, de gosto, de desinformação, se contém ou não racismo. A questão é que o intelectual branco não fala mais para seus pares com códigos cifrados e cumplicidade, fala para um comentariado que o desconhece (e desconhece a sua “reputação” e capital simbólico acumulado ou intocável); fala para os fãs fervorosos de Beyoncé, fala para movimentos ultrassofisticados que conceituaram o afrofuturismo, fala para outra intelectualidade negra que disputa a “reserva de mercado” do discurso acadêmico para brancos e que, sim, pode exigir outra partilha do sensível e dos discursos em que ser branco não seja mais uma vantagem discursiva. Nós, os brancos, e Beyoncé, falamos para intelectuais e ativistas que disputam narrativas.

The Library, Jacob Lawrence, 1978 (Reprodução)

O intelectual branco universal

Por isso pode soar tão “fora do lugar” a comoção de brancos com as críticas recebidas por Lilia Schwarcz, vindas de todos esses novos lugares e também dos movimentos negros e de intelectuais negros.

Caros amigos brancos, parem de se defender! É inútil repetir que todos têm “direitos iguais” de fazer crítica cultural sobre quaisquer objetos da cultura, e que uma intelectual branca não pode ser cerceada no seu direito, pois não é disso que se trata. Somos solidárias a Lilia e repudiamos as expressões ofensivas e violentas de alguns comentários, discursos de ódio que vão da extrema-direita ao campo das esquerdas. Mas é só isso: debate público com novos sujeitos do discurso e novos sujeitos políticos que analisam as limitações da brancocracia. Falar de “cancelamento” no caso de Lilia Schwarcz me parece um exagero de brancos. O “cancelamento” é uma estratégia que conforme a modulação pode ir de um honesto e necessário debate público até o seu extremo, que é o linchamento e destruição de reputações.

Qual o risco de “cancelamento” sofre uma intelectual branca, bem sucedida, autora prestigiada de livros acadêmicos e coordenadora de coleções que versam justamente sobre o antirracismo? Coleções e mercado editorial que só foram possíveis pela nova partilha do sensível e da luta dos movimentos antirracistas?

Lilia está longe de ser “cancelada” e seria deplorável se o fosse, já que soube muito bem se desculpar e aceitar as limitações discursivas apontadas. Não precisa de mais defensores brancos indignados reafirmado nossos direitos universais e nossa liberdade de expressão.

Intelectuais negros inventam linguagens

Quem são as novas e novos intelectuais negros e negras? Figuras como a filósofa Djamila Ribeiro popularizaram justamente a noção de “lugar de fala” e outros conceitos acadêmicos decisivos para esse debate. Autoras como Sueli Carneiro conceituaram o feminismo negro no Brasil. Conceição Evaristo traz para a academia e para a literatura a noção de “escrevivências” para contar, a partir de uma vivência e singularidade, uma história coletiva. Exatamente tudo que a tradição universitária nega como escrita científica ou acadêmica: conceitos e noções forjados em meio a lutas e não em território seguro e distanciado.

As intelectuais negras são frequentemente “reduzidas” ao discurso “militante” ou ativista, porque são sujeitos que, ao falar de si ou narrar uma trajetória, falam dos outros. Com uma escrita coletivizada de si, trazem uma real contribuição ao ensaísmo. Um encanto que ensina a nós, brancos acadêmicos universais, a nos narrar assumindo a nossa branquidade, branquitude ou brancocracia.

Pois sim, a minha trajetória de mulher branca, nascida em família de classe média periférica de Parintins, Amazonas, crescida em Rio Branco, Acre, com pais comerciantes que migraram em busca de melhores condições de vida, e minha vinda para o Rio de Janeiro, me proporcionaram uma trajetória de vida e construção de reputação – sem sobrenome, família ou status prévio no Rio – só possível pela minha entrada em uma universidade pública e gratuita, e pelo fato de ser branca. Me identifico com os “novos ricos” do capital simbólico por ter construído meu quinhão vinda das periferias do Brasil para os centros, e sabendo que ser branca me deu incontáveis privilégios, inclusive esse de ocupar um espaço de escrita.

A revolta de intelectuais brancos contra o “cancelamento” de Lilia Schwarcz diz também do “lugar de cala” secular exercido silenciosamente pelos brancos enquanto foi conveniente, da invisibilidade social e acadêmica de intelectuais negros, mulheres e outros. Não é mais e não somos nós que estamos sendo calados. Estamos em meio a uma emergência e “o lugar de fala” recentemente conquistado e performado pelos negros no Brasil é uma ferramenta, um conceito, um instrumento de luta para se celebrar.

a biblioteca, jacob lawrence
The Library, Jacob Lawrence, 1960 (Reprodução)

Ativismo mainstream

O problema na análise de Schwartcz sobre o álbum visual de Beyoncé é também o de certa intelectualidade branca. Existe uma dificuldade dos intelectuais e das esquerdas entenderem os ativismos mainstream que vêm atravessados por estratégias de marketing, marca, e que produzem efeitos extraordinários em termos de comportamento. É preciso entender o papel da cultura pop nas disputas conceituais e de comportamento.

As mulheres e atrizes e atores brancos e negros usaram Hollywood, a moda, o glamour e a grana para o combate ao machismo no movimento Me Too de forma extraordinária. Beyoncé usa uma estética pop, glamorosa e de apropriação do luxo para o ativismo mainstream negro. O luxo (afrofuturismo suntuoso) não combina com a estética negra ativista?

Para além da questão do lugar de fala – “intelectual branco ou branca dando lições aos movimentos negros e outros” –, hoje as falas acadêmicas são passíveis de serem refutadas ou refinadas no espaço público em diálogo com não intelectuais. Não havia esse espaço. Nós falávamos sozinhos ou entre pares. Então, antes de tudo, celebremos a inclusão conceitual dos não universitários e ativistas no debate público brasileiro.

O direito de ser “neutro”, científico e argumentar criticamente sobre tudo continua, caros amigos e amigas brancas. Mas apenas a “autoridade” intelectual ou o capital conceitual não bastam e não impedem mais que outros sujeitos do discurso digam de forma bem explícita: seus conceitos, suas análises “desinteressadas”, sua argumentação crítica e ilustrada, seu Foucault finíssimo, seu Deleuze sofisticado, seu (completem com todos os nomes maravilhosos que amamos tanto) não servem para a minha luta.

E pasmem, tenho sim visto a intelectualidade branca desqualificar os movimentos identitários ou reduzi-los a um “essencialismo” simplório com bases nos filósofos da diferença. Exatamente como antropólogos e antropólogas prestigiadas da UFRJ e de outras universidades usaram seu capital científico e acadêmico para se posicionarem contra as cotas raciais, desqualificando uma política pública urgente porque ela supostamente revertia e utilizava o conceito de “raças” para beneficiar um grupo.

Disseram os antropólogos no “Manifesto contra as cotas raciais” que “a invenção de raças oficiais tem tudo para semear esse perigoso tipo de racismo, como demonstram exemplos históricos e contemporâneos. E ainda bloquear o caminho para a resolução real dos problemas de desigualdades”.

Conceitos não estão “acima” das lutas, e as lutas forjam, revertem, ressignificam, se apropriam de conceitos, como diz meu filósofo branco preferido, Gilles Deleuze, ou serão caixas de ferramentas ou ficarão em um céu de ideias fixas. E aqui uso e cito os intelectuais brancos que me formaram (Deleuze, Foucault, Negri etc.) sabendo que ao serem relidos ou criticados, não estão sendo “cancelados”, mas ampliados, potencializados por intelectuais negros como Achille Mbembe, por um pensador trans como Paul B. Preciado ou deixados de lado por outra tradição intelectual que prefere partir de outras matrizes conceituais mais enegrecidas.

Bem vindos ao início do fim da “reserva de mercado da inteligência” para nós, os intelectuais universitários brancos “acima” das urgências do presente. Elas sempre existiram, mas muitos de nós preferimos produzir papers destinados a pontuar nosso Currículo Lattes ou a dialogar em congressos de pares, espaços tão gentilmente mudos. Estivemos falando sozinhos durante séculos ou para “os mesmos”, por isso não fomos mais refutados e questionados.

Celebremos a ruidocracia e o embate conceitual, de valores, celebremos! Precisamos tanto de conceitos e análises gourmets, quanto de mais filmes de Beyoncé. 

Ivana Bentes é pesquisadora do Programa de Pós Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Duke em O Tempo

 


quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Charge! Duke via O Tempo

 


Desconfinar o amor

 

O Ocidente aprisionou-o na esfera privada. Porém, como força social, ele é transgressor, inconformista, hostil à Razão de um mundo insensível. Para libertar seu erotismo subversivo, será preciso vivê-lo como experiência comunitária

Por Antoni Aguiló, no Público | Tradução: Rôney Rodrigues

Em O mal-estar da civilização, Freud defendeu que a sociedade europeia dos princípios do século XX era uma sociedade reprimida e repressora. Reprimida porque praticava um moralismo hipócrita baseado na inibição sexual e afetiva. Repressora porque criou uma mentalidade e alguns códigos de conduta com a intenção de vigiar e punir a satisfação das pulsões eróticas que fossem além da norma estabelecida. No entanto, nos últimos tempos a sociedade reprimida se transformou em uma sociedade hipersexualizada, onde o amor e o sexo se converteram em produtos descartáveis do consumo de massas.

Apesar das mudanças, seguimos vivendo em uma sociedade fortemente repressora. Sistemas de poder como o capitalismo, o patriarcado e o heterossexismo reprimem potencial humano. Os homens, por exemplo, fomos confinados emocionalmente pelo heteropatriarcado. A masculinidade tóxica nos ensinou a ser psicologicamente (ou patologicamente?) fortes, a não sentir, a não sofrer em público. Nosso valor se reduz a quanta merda podemos engolir sem derramar uma só lágrima. Algumas vezes, devido a preconceitos homofóbicos ainda existentes, quando meninos expressam determinados sentimentos e preferências, se exerce contra eles um tipo de violência psicológica que lhes infunde sentimentos de culpa ou vergonha. Nos educam para dominar, para controlar, para fingir, para competir e acumular riqueza e poder às custas dos outros – não para amar, cuidar ou compartilhar.

Diante deste quadro, podemos propor algumas perguntas desafiadoras: que papel o amor pode exercer no atual contexto de crise sanitária global, em que a sobrevivência física e emocional se torna cada vez mais precária? Por acaso, em tempos de incerteza, em que se corre o risco de se recolher em si mesmo e desconfiar do outro, o amor não seria mais que “um fósforo queimado descendo pelo vaso sanitário”, como escreveu Hart Crane? Há lugar para o amor no espaço público organizado sob os parâmetros da nova normalidade, onde os corpos e os afetos obedecem o imperativo do distanciamento interpessoal e grande parte de nossa vida se desenvolve na internet? Como tomar medidas de proteção social e individual sem erodir os laços de cooperação e solidariedade?

O problema é que, no Ocidente moderno, o amor sempre ocupou uma posição subordinada em nossas vidas. O patriarcado se encarregou de confiná-lo na esfera privada. Tende-se, assim, a vê-lo como um sentimento que não vai além do apetite sensível e das emoções individuais, não como um fator de transformação social e espiritual.

Como força social, o amor é um sentimento transgressor, capaz de alimentar o inconformismo, despojar os poderosos de seus privilégios e enriquecer aquilo que é público. É preciso recuperar a ideia de que o amor é uma prática ética e política, de que o emocional é político. Nessa afirmação reside grande parte do poder transformador dos movimentos LGBTI+, feministas e antirracistas. O “eros alado” com que Alexandra Kollontai combateu a discriminação das mulheres trabalhadoras pelo machismo proletário; o amor integrador com que sonhou Luther King, que expôs a realidade crua do racismo e da supremacia branca; e o “amor eficaz” pregado por Camilo Torres, que mostrou sua opção preferencial pelos pobres, são exemplos que apontam nesta direção.

Com força espiritual, o amor é uma energia que existe no interior de cada um e que lhe permite expandir-se para além do eu individual, criar comunidade e fazer surgir em nós um sentido transcendental de união. Necessitamos de uma sabedoria que faça do amor uma experiência enraizada no comunitário. Sobonfu Somé explica que, para o povo dagara, o amor é um fenômeno que se vive coletivamente. A intimidade, o amor e o cuidado são inseparáveis de um mundo cósmico e natural em que tudo está interconectado: a água, o fogo, a terra, o mineral etc. “O avô costumava chamar a chuva de ritual erótico entre o céu e a terra”, explica. Justamente é essa interação entre o ser humanos e os elementos cósmicos o que gera e transmite o amor comunitário.

Assim o entenderam também feministas como Gloria Anzaldúa e Audre Lorde, que nos ensinaram a descobrir a presença de uma espiritualidade erótica na vida cotidiana. “Da mesma forma que meu corpo se abre à música, respondendo a ela, e escuta com atenção seus mais profundos ritmos, assim também o que sinto pode abrir-se a uma experiência eroticamente plena, seja ela dançar, construir uma estante, escrever um poema, examinar uma ideia”, afirma Lorde.

Porém, para grande parte da cultura ocidental, espiritualidade é uma palavra que gera sentimentos de rechaço, devido ao preconceito racionalista que a considera um fenômeno oposto à razão e à realidade material, em nada relacionada ao erotismo. De fato, a indústria do sexo habilmente nos enganou para confundir o erótico com o pornográfico.

Trata-se nos nos liberarmos das heranças emocionais que dificultam amar(-nos). Arundhati Roy afirmou recentemente que a pandemia é “um portal, uma porta entre um mundo e o seguinte”. Podemos escolher manter a porta fechada e confinar o amor nas estreitas margens em que fomos socializados. Ou podemos escolher abrir a porta para transitar para uma experiência mais enriquecedora do amor, uma experiência que resgate as possibilidades esquecidas. Parece-me a melhor escolha para começar a desconfinar o amor no cenário da “nova normalidade”, que, desconfio, pode ser bem pouco amorosa.

(Publicado originalmente no site Outras Palavras)

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Tijolinho: As reuniões mineiras do PT pernambucano.

Ficou célebre no folclore político uma expressão para designar aquelas reuniões arranjadas de véspera, que fogem de pautas importantes, onde tudo parece ser acertado com antecedência para evitar surpresas. É assim que começo a ver as reuniões programadas pelo Partido dos Trabalhadores aqui em Pernambuco. Há uma reunião programada para esta segunda-feira, mas a situação de apoio ou não ao Governo Paulo Câmara(PSB-PE) não entraria na pauta dos debates. O PT foge dessa discussão como o Diabo foge da cruz. E olha que citei aqui o Diabo e não os seus secretários. Mais uma vez elogio aqui a postura assumida pela Juventude do Partido, que, sem muitos rodeios ou tergiversações, se pronunciou sobre os petistas que abandonaram a candidatura do partido para continuarem no Governo Paulo Câmara. Concluiu que, se eles desejarem continuar com o Governo, que peçam,antes, desfiliação do partido. Nada mais coerente. O que não se pode permitir é que, uma vez o partido tendo um candidato oficial, haja esse tipo de postura por parte de alguns dos membros da legenda. 

Escrevi recentmentee um longo editorial sobre possíveis críticas à candidata Marília Arraes, em função de uma visita sua ao prefeito Anderson Ferreira, do PL, prefeito de Jaboatão dos Guararapes. Tenho profundas diferenças com esse grupo político, mas, sinceramente, eles foram mais confiáveis à então candidata do que certos integrantes do partido que, durante a campanha, até pronunciamento fizeram contra Marília Arraes. Como diria o velho Dr. Miguel Arraes de Alencar, pelo admiração que tenho por ela, não gostaria que Marília entrasse nesse "mal caminho". Por outro lado, para uma pessoa que parece-nos que alimenta ambições majoritárias, seus pleitos dentro da agremiação serão sempre solapados. Como afirmo naquele editorial, Marília é uma espécie de estranha no ninho petista. Há um grupo bastante satisfeito com a condição de força auxiliar dos socialistas no Estado, o que significa dizer que estão priorizando interesses individuais em detrimento do interesse coletivo.  

Velho estudioso do partido, observo que uma das marcas "daquele PT de outrora" era a coerência. Ao longo desse período, o partido oligarquizou-se e perdeu bastante em termos de manutenção de uma linha de coerência que o diferenciava em relação a outros grêmios partidários. Hoje são poucos os atores políticos do partido que se mantém fiéis a essa característica. Salvo, talvez, por um texto que li recentemente, onde um integrante da legenda lembrava a incoerência de o partido apoiar o nome indicado pelo atual presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, que teve sua origem no PFL, hoje no DEM, cujo grêmio  apoiou todas as manobras antidemocráticas em período recente da história política do país. Este talvez seja daquela cota que ainda sabe o significado dessa expressão. Aquele radical que se defende, informando ao seus opositores que "radical" são aqueles que vão até às raizes. Um adendo: Não é pernambucano, muito menos da ala que dá sustentação ao Governo Paulo Câmara(PSB-PE).   

domingo, 20 de dezembro de 2020

Tijolinho: Automação é morte.

Há dois grandes estudiosos cujos trabalhos e reflexões, não raro, se complementam entre si. Um faz uma análise mais geral da conjuntura política, enquanto o outro se detém nos reflexos dessa conjuntura sobre o mundo do trabalho. Muito embora que, para debruçar-se sobre esse recorte, faz-se necessário entender a conjuntura mais complexa. Ambos são sociólogos. Um português e um brasileiro. Os leitores mais perspicazes já devem ter matado a charada. Estamos nos referindo a Boaventura de Souza Santos e ao professor Ricardo Antunes, decano da Universidade de Campinas, a maior autoridade acadêmica brasileira sobre o mundo do trabalho. Outro dia li um texto dele, publicado num site conhecido, onde ele faz um resumo da equação da barbárie de nosso tempo, um tempo onde as forças conscientes e consequentes do campo progressista procedem uma grande reflexão sobre um modelo de sociedade que supere o capitalismo. Salvo melhor juízo, a equação é esta: Tecnologia(automação) +capitalismo: morte.

Os pernambucanos que leram os jornais de hoje se depararam com uma queda de braço entre a categoria dos rodoviários e o Governo do Estado, com uma previsão de decretação de greve a partir da terça-feira, em plena semana natalina, quando os recifenses menos cuidadosos não relutariam em sair para as compras do período, mesmo em meio ao agravamento dos problemas relacionados ao Coronavírus. Para comprovar essa tese, basta acompnhar os jornais televisivos, com suas imagens aéreas, mostrando as aglomerações nos grandes centros de compras do país. Há outros itens na pauta dos rodoviários, mas a questão mais crucial é um impasse em relação à automação dos serviços de cobrança de passagens, o que implicaria numa demissão em massa de cobradores, o que já vem ocorrendo em outras praças do país. Salvo melhor juízo, até o poder judiciário já se pronunciou sobre este assunto, defendendo, coerentemetne, o serviço físico, realizado por outro profissional - que não o motorista - até por uma questão de segurança. 

O Governo do Estado foi bastante contundente em sua resposta aos rodoviários. Não vou aqui entrar no mérito no tocante a quem tem razão sobre o assunto, até porque não tenho acompanhado essa pendenga de forma mais efetiva. Mas convergimos aqui com a mesma preocupação do grande Ricardo Antunes, ou seja, num momento crítico como este que estamos vivendo, medidas que representam o desemprego em massa de profissionais devem ser repelidas. Outro dia citei o caso aqui das chamadas portarias remotas, que igualmente irá representar a demissão de milhares de profissionais que trabalham nas portarias dos prédios. Na condição de um ator político de responsabilidade pública, de caráter coletivo, na autonomia que lhe compete, penso que o Poder Público deve intensificar esforços no sentido de impedr essa manobra do capital, que, em última análise como alerta Antunes, pode significar a morte em sua forma mais cruel.


A paixão não autoriza visitas rápidas


Julián Fuks


É um livro que cumpre todos os requisitos de um clássico, eu poderia afirmar, parafraseando Calvino para dizer que clássico é o que reconhecemos como íntimo já na primeira leitura, e então se faz indomável e desconhecido nas leituras sucessivas. Pois o que um clássico tem a dizer, eu continuaria, é a um só tempo algo de ancestral e novo, algo de elementar e assombroso — o que neste caso é seguido à risca. Para enfatizar a grandeza, para tentar atribuir à autora sua justa e imensurável medida, eu a equipararia a grandes nomes da História, ainda que masculinos — diria que é uma espécie de Dostoiévski que não apela à sordidez, Beckett que não se livra do sentido, Kafka que nunca cede à desumanização plena.

Mas não. Se quero falar de Clarice Lispector, de A paixão segundo G.H., não posso me render à tentação de começar pela generalidade, pela comparação imprecisa, de definir o livro por aquilo que não é. Tão certeiro é o romance, tão disposto a chegar ao cerne, à carne, que lhe seria incompatível um texto crítico que começasse pelo desvio. E, no entanto, é a própria autora quem o concede no início, o que o livro narra parece nos exigir algum adiamento, ou a compreensão de que “a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente — atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar.”

É um livro a ser lido “apenas por pessoas de alma já formada”, é a autora quem determina, nos deixando desconfortáveis de partida, já que nunca saberemos se nossa alma está formada o bastante para tal radicalidade. Da primeira vez que o li, acho que me faltava alma, ou me sobrava uma ansiedade juvenil, e atravessei as páginas com alguma pressa à procura da barata. Ou melhor, à procura da mulher tão tomada por seus pensamentos vertiginosos, pela necessidade de ordenar seu caos particular, que, num impulso muito ponderado, acaba por comer a barata — fazendo do argumento do livro uma anedota. A pressa era desnecessária, mas a leitura foi um arrebato.

Agora, para escrever este texto, achei que bastaria folhear o livro e reencontrar os grifos passados, relembrar a experiência e registrá-la. Mas não, a casa de G.H. não autoriza visitas rápidas, e contemplar a imensidão de seu espaço, que se reduz e nos tranca no quarto dos fundos, é sempre uma experiência nova, um novo arrebato. Desta vez pude observar melhor o resto da casa, a sala em que tudo “é réplica elegante, irônica e espirituosa de uma vida que nunca existiu”, a casa onde “tudo está entre aspas”. Pensei assim entender algo mais sobre essa mulher que também é citação de uma inexistente pessoa, que conserva uma aspa à esquerda e outra à direita de si mesma, que percebe “uma vida inexistente” que a possui e que a ocupa toda.

E então deixei que aquela vida inexistente me ocupasse e me fechei com ela no quarto dos fundos. E, ali, antes mesmo da aparição da barata, foi que se revelou a maior novidade da leitura — novidade nenhuma, claro, pois cristalina desde o primeiro contato, presente desde sempre naquelas páginas e decerto conhecida por muitos. A evidência de que aquele não é um quarto dos fundos, vazio, abandonado, e sim o quarto da empregada: o quarto da mulher que G.H. demitiu dias antes de sua experiência transformadora. “O quarto era o oposto do que eu criara em minha casa”, diz G.H., “era uma violentação das minhas aspas”.

G.H. estremece por um instante, dispõe do rosto da mulher com quem conviveu em sua própria casa, mas não se lembra de seu nome. E, quando enfim se lembra, Janair, com o nome lhe vem a aguda percepção de que a mulher a odiara, de que só podia tê-la odiado. G.H., essa pessoa que é a citação de tantas pessoas da classe alta, usara Janair “como se ela não tivesse presença”, e é isso o que ela agora encara no quarto nem um pouco abandonado. “Sob o pequeno avental, vestia-se sempre de marrom escuro ou de preto, o que a tornava toda escura e invisível — arrepiei-me ao descobrir que até agora eu não havia percebido que aquela mulher era uma invisível.”

Com G.H. nos arrepiamos, com sua descoberta da presença pujante da outra mulher no quarto, onde ela ainda se manifesta em cada detalhe. Na parede desenhada, no colchão com “suas largas manchas desbotadas como de suor ou sangue aguado, manchas antigas e pálidas”. São de Janair as manchas de suor e sangue, ou serão os resquícios de uma opressão ancestral, de outras mulheres escuras e invisíveis, sempre silenciadas? É G.H. quem enuncia, ao identificar a reciprocidade do ódio, ou pior, a origem do ódio nela própria, a “tranquila e compacta raiva daquela mulher que era a representante de um silêncio como se representasse um país estrangeiro, a rainha africana”, “a estrangeira, a inimiga indiferente.”

É pela presença do outro em sua casa, feito estrangeiro, inimigo, que ela insiste em silenciar, é pela presença do outro que lhe vem uma “cólera inexplicável”: “eu queria matar alguma coisa ali”. E então, para sua surpresa, outro ser se oferece em sacrifício, surge a barata de um canto escondido e tomará toda a atenção da protagonista, toda a nossa atenção. É impressionante que G.H. e nós nos esqueçamos de que, pouco antes dessa aparição, o quarto estava todo tomado por Janair, essa alteridade negra. É impressionante que tenhamos atentado tão pouco ao fato de que é Janair quem sofre a metamorfose, é essa outra mulher quem se transforma na barata.

Tudo o que lemos depois deveria se transformar pela lembrança dessa metamorfose. É para encontrá-la, para se fundir com ela, que G.H. realiza sua penosa aproximação à barata, sua fusão com a barata em ato carnal. E é só assim, no encontro carnal com o outro, “um olhar o outro sem vê-lo, um possuir o outro, um comer o outro”, que ela chega a encontrar a si mesma: “pela primeira vez eu estava sendo a desconhecida que eu era”.

Não termina aí a vertigem, claro, porque tudo aqui é o seu oposto, e encontrar-se significa, ainda bem, perder-se. É assim, na fusão com a barata, com a mulher negra, que G.H. consegue enfim se descolar de si mesma e ver: “Eu estava saindo do meu mundo e entrando no mundo. É que eu não estava mais me vendo, estava era vendo”. Esse é o efeito que Clarice nos oferece, ou o efeito que pôde oferecer a este leitor, desta vez, nesse livro clássico que nunca se encerra. A possibilidade de contemplar sua fusão ao outro e de me fundir com ela, e me fundir com o outro, e assim me fazer outro e perder de vista a mim mesmo. E a possibilidade de crer, por um breve instante, no mais exíguo dos espaços e a um só tempo no mais fulgurante, que fui capaz de ver o mundo.

 (Publicado originalmente no site do Suplemento Pernambuco)