pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: "É nosso dever lutar por nossa liberdade": sobre a autobiografia de Assata Shakur
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terça-feira, 5 de janeiro de 2021

"É nosso dever lutar por nossa liberdade": sobre a autobiografia de Assata Shakur


No dia 16 junho de 2017, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, participava de um evento na Pequena Havana, bairro de Miami onde moram cubanos exilados, com uma audiência formada por setores da comunidade cubana-estadunidense que o apoiaram durante o processo eleitoral. No discurso proferido, entre outras questões, mencionou o cancelamento das políticas de aproximação entre Cuba e os Estados Unidos, iniciada durante a presidência de Barack Obama. Trump também exigia a liberdade dos presos políticos cubanos e demandava o retorno de estadunidenses exilados naquele país, que nomeava como fugitivos. Uma menção em especial, com direito a ênfase e pausa dramática, chamou a atenção: “[…] return the fugitives from american justice — including the return of the cop-killer Joanne Chesimard” (“[…] entreguem os fugitivos do sistema de justiça estadunidense — incluindo a assassina de policiais Joanne Chesimard”).[nota 1]


Por que o presidente de uma das maiores potências econômicas do mundo publicamente nomeava essa mulher como um dos empecilhos para aproximação entre dois países? Quem é, afinal, Joanne Chesimard? O que havia de tão singular em torno dela?

“MEU NOME É ASSATA SHAKUR” [nota 2]

Joanne Chesimard é o nome civil de Assata Shakur, cuja trajetória representa os desejos e lutas por liberdade e autodeterminação para muitos movimentos de libertação negra em todo mundo. Ela é referência essencial para o movimento Black Lives Matter e seu livro Assata: An autobiography, lançado em 1987, é responsável por sua contínua e permanente circulação. No Brasil, de forma independente, os textos e o pensamento da autora já circulam há algum tempo entre setores do movimento negro, que a tem como referência. Em dezembro, está prevista o lançamento da edição brasileira do livro pela editora Pallas, com tradução de Carla Branco.

Como ocorreu com um número considerável de ativistas negros — que foram criminalizados, perseguidos, presos ou eliminados pelo Estado, em especial nas ações do Cointelpro [nota 3] —, Assata foi acusada de crimes que não cometeu, entre eles o assassinato de um policial no dia 2 maio de 1973, em uma carreteira na cidade Nova Jersey. [nota 4] O que seria mais um caso comum naquele contexto tornou-se excepcional quando ela conseguiu fugir do presídio, em 1979, e reapareceu em Cuba, na década seguinte, na condição de exilada política.

Assata Shakur nasceu na cidade de Nova York em 1947, mas passou a infância na Carolina do Norte, um estado sulista segregado. Retornou adolescente para o distrito do Queens, em sua cidade natal. Participou de algumas organizações negras que compuseram o movimento Black Power, militou no Partido dos Panteras Negras. Posteriormente, após a brutal investida do Estado americano para destruir o Partido, ela integrou o Exército da Libertação Negra, uma organização da qual pouco se sabe por conta de seu caráter clandestino — a própria autora menciona poucas informações sobre o assunto no livro.

No período que esteve no Partido dos Panteras Negras, não era uma liderança pública. Na verdade, ela, como outras mulheres negras, fazia parte da base do Partido, ainda que publicamente as principais lideranças fossem masculinas. As mulheres eram responsáveis, por exemplo, pela execução dos programas sociais para a comunidade, dos quais o mais famoso era o programa do café da manhã que alimentava crianças antes delas irem à escola — muitas das crianças, particularmente as negras, iam assistir aulas com fome e tinham dificuldades de aprendizagem. Um dos aspectos interessantes da autobiografia é o relato e análise da experiência cotidiana dos Panteras do ponto de vista de quem estava na base, longe dos holofotes.

AUTOBIOGRAFIA

A autobiografia de Assata Shakur é uma obra de referência lida nos mais variados contextos, de ativistas a acadêmicos. A razão de sua popularidade está no fato de a autora elaborar uma construção e apresentação de si profundamente conectadas a uma reflexão acerca do racismo e da supremacia branca na formação estrutural dos Estados Unidos, apontando elementos práticos para a ação política.

A obra compõe uma conhecida tradição de escritas autobiográficas feitas por integrantes dos movimentos de luta por libertação negra das décadas de 1960 e 1970, um campo narrativo no qual a escrita feita por mulheres negras ocupa um espaço tímido, mas contundente.[nota 5] No conjunto dessas publicações observa-se a característica comum de realizar um exercício de autorreflexividade, teorização e organização da própria trajetória. Elas servem como espaço de elaboração tanto de si como do contexto nos quais viveram e atuaram. Trata-se, também, de narrativas de disputa da própria História e de determinados acontecimentos que foram primeiramente apresentados por terceiros (imprensa ou governo, por exemplo) em campanhas de vilipendiações.

A autobiografia de Assata Shakur, contudo, amplia as características usuais do gênero por algumas razões. Suas singularidades verificam-se, por exemplo, nas experimentações literárias da obra, que acomoda gêneros como a poesia (a autora coloca seus próprios poemas na narrativa), algo incomum em publicações similares. Há, também, uma descontinuidade na estrutura cronológica da apresentação dos acontecimentos: os capítulos não estão organizados de forma linear, revelam alternâncias de temporalidades, idas e vindas na narrativa.

No entanto, o que a torna realmente singular é a acomodação do silêncio, a manutenção do segredo — e, ainda que o caso dela não tenha sido o único, é sem dúvida um dos mais instigantes e um dos que alcançaram grande visibilidade midiática. A trajetória da autora é envolvida em mistérios instigantes que não são resolvidos no livro; ou seja, o que gostaríamos de saber não nos é dito. Propositalmente, ela não nos conta como conseguiu escapar da prisão. Onde esteve durante sua clandestinidade? Como sobreviveu? Como chegou a Cuba? Assata não apresenta respostas para essas perguntas; antes, faz descrições vagas, sugere mais do que responde e, principalmente, mantém o silêncio sobre aquilo que não se pode revelar. Afinal, há segredos que devem ser preservados.[nota 6] Esse interdito torna a leitura menos óbvia e mais interessante pois, em lugar de satisfazer a curiosidade do público, a autora nos leva a outros caminhos. No livro, esses silêncios são expressivos porque compõem um espaço especulativo a respeito da possibilidade de futuros.

A busca pela liberdade e seus significados é um dos temas que mobilizaram as ações políticas e as reflexões teóricas de Assata. Não é casual que o pós-escrito da autobiografia a tenha como primeira palavra: “Liberdade. Eu não conseguia acreditar que aquilo realmente tinha acontecido, que o pesadelo havia acabado, que finalmente o sonho se tornou realidade.”

Também não é casual que a narrativa se encerre em Cuba, local onde a autora encontrou sua liberdade: afinal, o governo cubano tem assegurado e garantido sua segurança física. O final do livro traz o tão sonhado encontro entre as mulheres de sua família: a mãe, a tia e a filha que teve no período em que esteve encarcerada. Assata termina com as seguintes palavras: “Não havia dúvida, nosso povo um dia seria livre. Os cowboys e os bandidos não eram donos do mundo.”

As fundadoras do movimento Black Lives Matter mencionam com frequência a importância da autora para elas, repetindo com frequência a frase Assata taught me (“Assata me ensinou”). Em termos de liderança política, há uma particularidade a respeito do Black Lives Matter: é a primeira vez na história das lutas negras nos Estados Unidos que o protagonismo público não pertence aos homens negros, mas às mulheres negras. Assim, entende-se a importância de Assata como referência revolucionária feminina.[nota 7] Versos de sua autoria são constantemente citados por ativistas do movimento ao término de reuniões, atos e encontros, repetidos em conjunto como mantras que inspiram as gerações mais jovens a persistirem. Assim, seguem e mantêm a tradição de luta, levando-a até as próximas gerações:

É nosso dever lutar por nossa liberdade.
É nosso dever vencer.
Devemos nos amar e apoiar uns aos outros.
Não temos nada a perder, exceto nossas correntes: [nota 8]

Em 2013, Assata tornou-se a primeira mulher a entrar na lista de terroristas mais procurados do FBI. Atualmente, a recompensa por seu paradeiro, de acordo com o site do próprio FBI, é de um milhão de dólares. Não é sem razão que o presidente dos Estados Unidos, que sustenta abertamente a ideia da supremacia branca, a considere uma “questão internacional”. No entanto, para pessoas comprometidas com a luta contra o racismo e contra a supremacia branca, Assata Shakur é uma revolucionária.


NOTAS

[nota 1] A declaração de Trump está disponível em youtube.com/watch?v=7yNsiZbKd1s (em 24’12”).

[nota 2] A citação completa no original: “My name is Assata Shakur (slave name joanne chesimard), and I am a revolutionary. A Black revolutionary” (em Assata: An autobiography; Westport, Connecticut: Lawrence Hill Books, 1987, p. 49). As traduções das demais citações deste texto são de minha autoria.

[nota 3] Cointelpro foi um programa de contra inteligência do governo estadunidense que se dedicou a perseguir dissidentes políticos de forma ilegal. Sabe-se hoje, por meio de ampla documentação sigilosa liberada pelo próprio governo estadunidense, que movimentos e lideranças eram monitorados. Há evidências que provam o envolvimento do FBI e dos departamentos de polícias em assassinatos, e se envolveram na imputação de crimes a membros da chamada “esquerda radical” — particularmente, a militantes negros revolucionários, alguns dos quais se encontram presos até hoje.

[nota 4] O caso é bastante complexo. Em maio de 1973, Assata, Zayd Malik Shakur e Sundiata Acoli estavam em um carro que foi abordado pela polícia em uma rodovia com pedágio. A situação se transformou em um tiroteio no qual morreram Zayd e um policial. O julgamento ocorreu em 1977 e Assata foi condenada pelo assassinato do policial mesmo com as evidências médicas comprovando que seria impossível ela ter feito o disparo, uma vez que já se encontrava imobilizada em função de um tiro que recebeu de outro policial.

[nota 5] Além da autobiografia de Assata Shakur, outras duas escritas por mulheres negras ativistas são consideradas clássicos referenciais do gênero: a de Angela Davis, Uma autobiografia (Boitempo, 2019); e a escrita por Elaine Brown, A taste of power: A black woman’s story (Nova York: Doubleday, 1992). Abordei o assunto em artigo neste Pernambuco, na edição de março/2019, no qual discuti a autobiografia de Angela Davis.

[nota 6] Assata consegue a liberdade em uma ação considerada ilegal e que contou com a participação de muitas pessoas, algumas posteriormente presas e outras cujo envolvimento não se sabe ao certo.

[nota 7] Por essa filiação política, é frequente que conservadores e reacionários acusem o movimento de terrorista e violento. Uma das apresentações feitas pelas lideranças do Black Lives Matter está disponível em youtube.com/watch?v=dUZDZaWNOFg

[nota 8] No original: “It is our duty to fight for our freedom./. It is our duty to win./ We must love each other and support each other./ We have nothing to lose but our chains:

(Publicado originalmente no site do Suplemento Pernambuco)

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