pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: A paixão não autoriza visitas rápidas
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domingo, 20 de dezembro de 2020

A paixão não autoriza visitas rápidas


Julián Fuks


É um livro que cumpre todos os requisitos de um clássico, eu poderia afirmar, parafraseando Calvino para dizer que clássico é o que reconhecemos como íntimo já na primeira leitura, e então se faz indomável e desconhecido nas leituras sucessivas. Pois o que um clássico tem a dizer, eu continuaria, é a um só tempo algo de ancestral e novo, algo de elementar e assombroso — o que neste caso é seguido à risca. Para enfatizar a grandeza, para tentar atribuir à autora sua justa e imensurável medida, eu a equipararia a grandes nomes da História, ainda que masculinos — diria que é uma espécie de Dostoiévski que não apela à sordidez, Beckett que não se livra do sentido, Kafka que nunca cede à desumanização plena.

Mas não. Se quero falar de Clarice Lispector, de A paixão segundo G.H., não posso me render à tentação de começar pela generalidade, pela comparação imprecisa, de definir o livro por aquilo que não é. Tão certeiro é o romance, tão disposto a chegar ao cerne, à carne, que lhe seria incompatível um texto crítico que começasse pelo desvio. E, no entanto, é a própria autora quem o concede no início, o que o livro narra parece nos exigir algum adiamento, ou a compreensão de que “a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente — atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar.”

É um livro a ser lido “apenas por pessoas de alma já formada”, é a autora quem determina, nos deixando desconfortáveis de partida, já que nunca saberemos se nossa alma está formada o bastante para tal radicalidade. Da primeira vez que o li, acho que me faltava alma, ou me sobrava uma ansiedade juvenil, e atravessei as páginas com alguma pressa à procura da barata. Ou melhor, à procura da mulher tão tomada por seus pensamentos vertiginosos, pela necessidade de ordenar seu caos particular, que, num impulso muito ponderado, acaba por comer a barata — fazendo do argumento do livro uma anedota. A pressa era desnecessária, mas a leitura foi um arrebato.

Agora, para escrever este texto, achei que bastaria folhear o livro e reencontrar os grifos passados, relembrar a experiência e registrá-la. Mas não, a casa de G.H. não autoriza visitas rápidas, e contemplar a imensidão de seu espaço, que se reduz e nos tranca no quarto dos fundos, é sempre uma experiência nova, um novo arrebato. Desta vez pude observar melhor o resto da casa, a sala em que tudo “é réplica elegante, irônica e espirituosa de uma vida que nunca existiu”, a casa onde “tudo está entre aspas”. Pensei assim entender algo mais sobre essa mulher que também é citação de uma inexistente pessoa, que conserva uma aspa à esquerda e outra à direita de si mesma, que percebe “uma vida inexistente” que a possui e que a ocupa toda.

E então deixei que aquela vida inexistente me ocupasse e me fechei com ela no quarto dos fundos. E, ali, antes mesmo da aparição da barata, foi que se revelou a maior novidade da leitura — novidade nenhuma, claro, pois cristalina desde o primeiro contato, presente desde sempre naquelas páginas e decerto conhecida por muitos. A evidência de que aquele não é um quarto dos fundos, vazio, abandonado, e sim o quarto da empregada: o quarto da mulher que G.H. demitiu dias antes de sua experiência transformadora. “O quarto era o oposto do que eu criara em minha casa”, diz G.H., “era uma violentação das minhas aspas”.

G.H. estremece por um instante, dispõe do rosto da mulher com quem conviveu em sua própria casa, mas não se lembra de seu nome. E, quando enfim se lembra, Janair, com o nome lhe vem a aguda percepção de que a mulher a odiara, de que só podia tê-la odiado. G.H., essa pessoa que é a citação de tantas pessoas da classe alta, usara Janair “como se ela não tivesse presença”, e é isso o que ela agora encara no quarto nem um pouco abandonado. “Sob o pequeno avental, vestia-se sempre de marrom escuro ou de preto, o que a tornava toda escura e invisível — arrepiei-me ao descobrir que até agora eu não havia percebido que aquela mulher era uma invisível.”

Com G.H. nos arrepiamos, com sua descoberta da presença pujante da outra mulher no quarto, onde ela ainda se manifesta em cada detalhe. Na parede desenhada, no colchão com “suas largas manchas desbotadas como de suor ou sangue aguado, manchas antigas e pálidas”. São de Janair as manchas de suor e sangue, ou serão os resquícios de uma opressão ancestral, de outras mulheres escuras e invisíveis, sempre silenciadas? É G.H. quem enuncia, ao identificar a reciprocidade do ódio, ou pior, a origem do ódio nela própria, a “tranquila e compacta raiva daquela mulher que era a representante de um silêncio como se representasse um país estrangeiro, a rainha africana”, “a estrangeira, a inimiga indiferente.”

É pela presença do outro em sua casa, feito estrangeiro, inimigo, que ela insiste em silenciar, é pela presença do outro que lhe vem uma “cólera inexplicável”: “eu queria matar alguma coisa ali”. E então, para sua surpresa, outro ser se oferece em sacrifício, surge a barata de um canto escondido e tomará toda a atenção da protagonista, toda a nossa atenção. É impressionante que G.H. e nós nos esqueçamos de que, pouco antes dessa aparição, o quarto estava todo tomado por Janair, essa alteridade negra. É impressionante que tenhamos atentado tão pouco ao fato de que é Janair quem sofre a metamorfose, é essa outra mulher quem se transforma na barata.

Tudo o que lemos depois deveria se transformar pela lembrança dessa metamorfose. É para encontrá-la, para se fundir com ela, que G.H. realiza sua penosa aproximação à barata, sua fusão com a barata em ato carnal. E é só assim, no encontro carnal com o outro, “um olhar o outro sem vê-lo, um possuir o outro, um comer o outro”, que ela chega a encontrar a si mesma: “pela primeira vez eu estava sendo a desconhecida que eu era”.

Não termina aí a vertigem, claro, porque tudo aqui é o seu oposto, e encontrar-se significa, ainda bem, perder-se. É assim, na fusão com a barata, com a mulher negra, que G.H. consegue enfim se descolar de si mesma e ver: “Eu estava saindo do meu mundo e entrando no mundo. É que eu não estava mais me vendo, estava era vendo”. Esse é o efeito que Clarice nos oferece, ou o efeito que pôde oferecer a este leitor, desta vez, nesse livro clássico que nunca se encerra. A possibilidade de contemplar sua fusão ao outro e de me fundir com ela, e me fundir com o outro, e assim me fazer outro e perder de vista a mim mesmo. E a possibilidade de crer, por um breve instante, no mais exíguo dos espaços e a um só tempo no mais fulgurante, que fui capaz de ver o mundo.

 (Publicado originalmente no site do Suplemento Pernambuco)

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