Em certo sentido, não há como não
reconhecer nas manifestações de junho um eco daquilo que, no momento
mesmo de constituição da Nova República, quando a esquerda encontrava-se
alijada do poder estatal, intelectuais como Eder Sader teorizavam como
os “novos movimentos sociais”.
Carlos Henrique Pissardo
As mobilizações que tomaram conta do país
nas últimas semanas – as “jornadas de junho” – caracterizaram-se, em um
primeiro momento, por uma pauta tradicional da esquerda: a luta por um
direito social, o transporte público. A forma de organização do
movimento que impulsionou essas mobilizações (autonomista e horizontal) e
sua estratégia de luta tampouco são originais: existe uma larga
experiência histórica que as antecede. O mérito do Movimento Passe
Livre (MPL) foi o de ter sido capaz de resgatar essa experiência em um
momento no qual ela parecia ultrapassada; no qual a esquerda permanecia
na confortável ilusão de que seria possível avançar na luta por direitos
sociais sem mobilização popular e sem a politização do cotidiano. Não
é.
Em certo sentido, não há como não reconhecer nessas
manifestações um eco daquilo que, no momento mesmo de constituição da
Nova República, quando a esquerda encontrava-se alijada do poder
estatal, intelectuais como Eder Sader teorizavam como os “novos
movimentos sociais”. As “lutas do dia a dia”, “as queixas do cotidiano”,
nas palavras de Sader, apareciam nesses movimentos não como um
obstáculo à crítica do todo, como um fetichismo do parcial, mas como
pautas a um só tempo particulares e universais. Sem expectativas
imediatas de tomada do poder estatal, esses “novos movimentos” apostavam
em uma dialética entre o particular e o sistêmico como o foco da
disputa hegemônica pela sociedade. Os novos atores que então “entravam
em cena” revelavam o potencial questionador da ordem que demandas
aparentemente ordinárias carregavam. Nesse processo, reivindicações, por
exemplo, por iluminação pública da própria rua, de caráter local,
levariam a um questionamento das relações de poder no bairro, que
levaria a um processo de politização da organização urbana, que, por sua
vez, traria um posicionamento em relação ao poder municipal e assim por
diante. Por isso, a esquerda sabia então que não deveria esquivar-se de
qualquer debate particular: qualquer luta pontual por direitos sociais,
do esgoto na frente de sua casa à descriminalização do aborto, da
denúncia do vereador corrupto aos mutirões, tudo era palco para um
questionamento progressivo de problemas sistêmicos da sociedade. Em
qualquer um dos casos, eram e não eram “apenas 20 centavos”.
A
recepção que esse tipo de política teve em amplos setores da classe
média foi marcante: de médicos sanitaristas a professores, de
ambientalistas a estudantes universitários, passando por juristas,
funcionários públicos, jornalistas e artistas, havia um reconhecimento
claro da legitimidade de diversas demandas políticas pontuais, que, no
entanto, eram interpretadas de forma também sistêmica. A própria
natureza – e latitude – da Constituição de 1988 é tributária dessa
experiência histórica, da ideia de que a garantia de direitos
específicos é condição necessária para a garantia de direitos gerais.
Como
se sabe, esse modelo de política extraestatal, paralela à hegemonia
cultural que a esquerda cultivava desde os anos 1950, resultou em um
jogo de forças políticas peculiar: o PT, partido originário da
interseção entre sindicatos, movimentos de base da igreja e intelectuais
de esquerda, encontrava, nos anos 1980, um apoio mais fiel entre a
classe média relativamente intelectualizada que entre os próprios
trabalhadores, salvo os organizados em sindicatos e movimentos sociais.
As eleições de 1989 e, especialmente, a derrota de Lula no segundo turno
da eleição para presidente foram reveladoras desse desequilíbrio. Os
setores não organizados da classe trabalhadora inclinaram-se para a
direita durante a campanha, e o apoio da classe média foi insuficiente
para evitar a eleição de Fernando Collor no segundo turno (embora Lula
tenha saído vitorioso entre os eleitores com ensino médio ou superior
concluído).
Trinta anos depois, não é descabido retomar essa
história: o que foi posto em jogo, com “as jornadas de junho”, é
precisamente a natureza dessa relação entre a esquerda, as mobilizações
populares por direitos sociais e a classe média. Comecemos pela última.
Grande
parte da sociologia produzida nos últimos anos, em larga consonância
com o discurso da grande mídia e mesmo de instituições estatais como o
IPEA, acostumou-se a um empobrecido conceito de classe social como
idêntico à renda. Acreditou-se que bastava dividir a sociedade em
quartis de salários mínimos, que a questão da distribuição das classes
sociais estaria resolvida. Acontece que, se a definição de classe social
por meio da renda é de fato útil para agências de publicidade e para
cadernos de comportamento veiculados pela grande mídia (especialmente
sobre a “nova classe C”), ela é insuficiente para a compreensão da
dinâmica de poder em jogo na sociedade brasileira de hoje. Por meio do
fetiche sociológico da “classe C”, abriu-se mão de uma reflexão sobre as
disputas de classes e pouco se avançou na problematização política
dessa dinâmica. Sabemos apenas que todas as “classes sociais”, nesse
sentido estatístico fraco, tiveram uma elevação na renda nos últimos
anos e que houve uma considerável migração da “classe C” para o bloco
“AB” (de cerca de 15 milhões de pessoas, desde 2005) e, ainda mais
visível, uma ascensão das “classes DE” para a “classe C” (de cerca de 45
milhões). Da base ao topo da pirâmide social brasileira, todos saímos
ganhando e o desenvolvimentismo recente teria demonstrado que disputas
políticas classistas já não estavam mais na ordem do dia. A
surpreendente ida às ruas da classe média nas últimas semanas nos faz
pensar que talvez não seja bem assim.
Alguns dados elaborados,
em 2011, por Celi Scalon e André Salata, na contramão da sociologia
dominante, apresentam-se como um ponto de partida relevante para a
problematização desse consenso. Adotando o esquema de classes EGP
(elaborado originalmente por Erikson, Goldthorpe e Portocarero), eles
conceituam a classe média como aquela formada por profissionais e
administradores, trabalhadores não manuais de rotina e pequenos
proprietários; diferenciam essa classe média da chamada “classe
trabalhadora”, formada por trabalhadores manuais qualificados,
trabalhadores não qualificados e trabalhadores rurais. É interessante
notar que a classe média, assim definida, não se identifica, como
tornou-se costume pensar, com a faixa C de renda, situada grosso modo
entre os 50% mais pobres e os 10% mais ricos da pirâmide social. Segundo
dados de 2009, apenas 30% dessa faixa C era ocupada pela classe média,
enquanto a classe trabalhadora urbana respondia por 59,2% dela e os
trabalhadores rurais, por 10,6%.
Pois, no limite, foi essa
“velha” classe média, e não a classe trabalhadora mais próxima à faixa
de renda C, que saiu às ruas em junho. Segundo pesquisa do Datafolha de
20/6, 78% dos manifestantes tinham ensino superior completo. De acordo
com pesquisa do IBOPE do mesmo dia, essa taxa seria de 43% (sendo que
49% teriam entre ensino médio completo e superior incompleto); da mesma
forma, 49% tinham renda superior a 5 salários mínimos (e 30% de 2 a 5
salários). Na pesquisa de Scalon e Salata, com dados de 2009, apenas
7,7% dos trabalhadores manuais qualificados e 4,4% dos trabalhadores não
qualificados tinham mais de 12 anos de estudo, enquanto que, para a
classe média, essa taxa chegava a 71,8% para os profissionais e
administradores, mais próximo do universo pesquisado pelo Datafolha e
IBOPE.
Mais ainda, adotando esse recorte, verifica-se que a tão
aclamada “nova classe média” é, em certo sentido, uma quimera: de 2002 a
2009, a classe média definida pelo esquema EGP passou de 30,9% para 32%
do recorte estudado segundo dados do PNAD. De 2002 a 2009, a renda
média dos trabalhadores manuais qualificados e não qualificados (classe
trabalhadora urbana) cresceu, respectivamente, 13,3% e 9,8% a preços
constantes; a renda média dos trabalhadores rurais cresceu 15%. O
contraste com a dinâmica de renda da classe média é espantoso: no mesmo
período, a renda média de profissionais e administradores variou
positivamente apenas 2,7%; dos trabalhadores não manuais de rotina,
1,6%; e dos pequenos proprietários, 4,2% (todos os dados, segundo Scalon
e Salata). Não há nada de novo nessa classe média; o que surpreende não
é o seu dinamismo, mas sua estagnação relativa. É evidente, aqui, que a
política sistemática de aumento do salário mínimo – cerca de 70% de
aumento real nos últimos 10 anos – e de formalização das relações
trabalhistas, paralelas à política de transferência de renda e
assistência social (especialmente, o Programa Bolsa Família e o
Benefício de Prestação Continuada), tiveram um impacto direto, não na
classe média, mas na classe trabalhadora. Da mesma forma, foi esta
última a grande beneficiada com a expansão do microcrédito e do crédito
consignado, entre outras formas de financiamento popular. Grosso modo, a
classe média, já bancarizada, pouco ganhou com essa expansão.
O
mesmo é válido para as políticas universalistas de investimento em
educação e saúde públicas. O aumento sistemático dos gastos federais com
saúde – subindo de 4,7% para 8,7% do orçamento federal nos últimos 10
anos – levou a um aumento considerável dos gastos per capita com saúde
(de US$ 107,00 para US$ 466,00 de 2000 a 2010, segundo dados da OMS).
Esses investimentos, no entanto, não tiveram impacto relevante para a
classe média: não foram suficientes para que ela migrasse do sistema
privado de saúde para o SUS, liberando assim recursos de seu orçamento
para outros gastos. Pelo contrário, os beneficiários de planos privados
cresceram de 31,1 milhões em 2000 para 45,3 milhões em 2010 (dados da
ANS). Isso se deu, em parte, porque os investimentos na área foram
insuficientes para a elevação da qualidade do serviço ao padrão
procurado pela classe média e, em parte, pela existência de um discurso
cotidiano e sistemático de desvalorização do serviço público de saúde.
Não por acaso, 28,8% dos usuários do SUS avaliam o sistema como ruim ou
muito ruim, enquanto esse taxa, entre os não usuários, sobe para 45%
(dados do Ministério da Saúde). O fato é que os investimentos em saúde
pública nos últimos anos – seja pelo passivo ainda existente, seja pela
constante exposição pública das deficiências do sistema, que não deixa
de ter fundamento – não foram suficientes para que a classe média
abandonasse o sistema privado, em larga medida também financiado pelo
poder público na forma de renúncia fiscal (que chegou a cerca de R$ 16
bilhões em 2011, equivalente a 22,5% do orçamento federal para a área,
segundo estudo do IPEA). Seja como for, os ganhos da classe média com
esses avanços nos investimentos em saúde pública não são visíveis.
Algo
similar aconteceu com os investimentos públicos em educação. Nessa
área, de 2000 a 2011, os investimentos globais passaram de 4,7% para
6,1% do PIB, segundo dados do INEP. Em recente relatório da OCDE, esse
avanço foi qualificado como um dos mais relevantes entre todos os países
estudados. No entanto, da mesma forma que na saúde, o impacto dessa
política para a classe média deve ser avaliado em separado; da mesma
forma que na saúde, esses investimentos não foram suficientes para uma
migração da classe média do setor privado para o setor público. Em 2003,
por exemplo, dos 55,2 milhões de estudantes matriculados na educação
básica (incluindo o ensino médio), 6,9 milhões estudavam no sistema
privado; em 2011, enquanto o total de alunos matriculados cai para 50,9
milhões, o número de estudantes em colégios privados sobe para 7,9
milhões (dados do INEP). Longe de a classe média haver buscado o setor
público, houve sim uma reafirmação do setor privado, beneficiado pelo
aumento generalizado da renda. Mais ainda: enquanto na educação básica o
salto de investimentos foi de 3,7% para 5%, no ensino superior estes
permaneceram praticamente estáveis (entre 0,9 e 1% do PIB). Como a
classe média, historicamente, recorre à educação privada nos níveis
básicos e ao ensino superior público nos níveis superiores, tampouco foi
palpável, para ela, qualquer avanço relevante nessa área. Não por
acaso, novamente de acordo com os dados compilados por Scalon e Salata, a
camada superior da classe média (profissionais e administradores) teve
incremento médio de apenas 0,8 anos (de 13,4 para 14,2) de escolaridade
entre 2002 e 2009, enquanto a camada superior da classe trabalhadora
(trabalhadores manuais qualificados) registrou incremento de 1,3 anos
(de 7,5 para 8,8). Seja no que diz respeito à política de transferência
de renda, seja no que diz respeito às políticas de educação e saúde, o
avanço nos investimentos públicos dos últimos anos não foi palpável para
a classe média. Existe, por isso, uma base material para sua
insatisfação, expressa nas ruas.
Esses dados, no entanto, não
devem ser compreendidos fora da lógica política predominante dos últimos
anos, durante o governo do PT. Na verdade, eles são compreensíveis
apenas por meio dessa lógica. Como bem a conceitualizou André Singer,
essa política, denominada por ele de “lulismo”, está fundada na
construção de “uma substantiva política de promoção do mercado interno
voltado aos menos favorecidos”, isto é, o “subproletariado” (SINGER).
Foi por meio dessa espécie de aliança direta com essa fração da classe
trabalhadora que o PT garantiu as vitórias eleitorais de 2006 e 2010.
Nesse sentido, quase todas as bandeiras políticas levantas pelo PT nos
últimos 10 anos e capazes de mobilizar o apoio popular direcionaram-se à
classe trabalhadora e, em especial, aos seus membros de mais baixa
renda: programas de assistência social como o PBF, o “Brasil sem
miséria”, o “Luz para todos”, o “Minha Casa Minha Vida”, a garantia dos
direitos trabalhistas dos empregados domésticos, entre outros, não
tinham qualquer apelo para a classe média. Esta tornou-se secundária no
interior desse arranjo. Na melhor das hipóteses, ela permaneceu
indiferente às bandeiras políticas levantadas; na pior, apenas viu
nesses programas uma política populista de um governo que distribuía
“esmolas” e, assim, onerava indiretamente sua renda (a resistência ao
PBF e aos direitos dos empregados domésticos foi sintomática dessa
percepção). Apesar do histórico êxito na diminuição da miséria e da
desigualdade no país, ampla parcela da classe média jamais tomou
consciência do avanço civilizacional que ele representou. Daí o corte
classista das últimas eleições federais (2006 e 2010), com a
direitização da classe média tradicional, invisibilizada no interior de
uma suposta “classe C”.
Mas seria errôneo acreditar que o governo
do PT sustenta-se apenas no apoio eleitoral das frações mais baixas da
classe trabalhadora. Por certo, foram elas que garantiram as vitórias
eleitorais de 2006 e 2010. Mas a governabilidade não poderia
sustentar-se apenas nelas. E aqui, novamente, a sociologia da renda é
empobrecedora do debate: ao dividir a sociedade brasileira em quartis de
renda, perde-se completamente a especificidade de uma classe que
tampouco pode ser diluída em uma faixa de renda, no caso, no bloco “AB”
da pirâmide social, a saber, os grandes capitalistas. Pois, paralela às
políticas direcionadas à classe trabalhadora e às suas frações mais
baixas, o que marcou os dois governos Lula e, ainda mais, o governo
Dilma foi um comprometimento claro - embora submetido a uma certa
gramática desenvolvimentista - com os interesses de grandes grupos
econômicos e com a criação de um “ambiente de negócios” a eles
favoráveis. Sintomático, salta-se do microcrédito para os grandes
financiamentos do BNDES em sua política de defesa e fortalecimento das
chamadas “campeãs nacionais”. Da mesma forma, são garantidas as melhores
condições possíveis para a expansão do agronegócio – da noite para o
dia, aliado de primeira ordem – e, por meio do PAC, tenta-se superar os
gargalos logísticos denunciados tão enfaticamente pelo empresariado
nacional.
Quando Lula reconhece que os bancos jamais ganharam
tanto como durante o seu governo, ele não está apontando para um acaso
histórico: está revelando a própria natureza do arranjo político que tem
sustentado os mandatos do PT. O apoio da classe trabalhadora garantiu
as vitórias do PT nas urnas e o apoio da classe capitalista,
disciplinada pelo desenvolvimentismo, garante sua governabilidade.
Abre-se mão da disputa pela classe média, que resta perdida para uma
direita desorganizada e sem projeto depois de sucessivas derrotas
eleitorais. A aposta implícita foi a de que uma parcela dessa classe
média se contentaria com os ganhos indiretos do crescimento econômico
(garantia do pleno emprego e aumento de renda, não tão expressivo como o
da classe trabalhadora, mas real), enquanto outra não valia a pena
disputar politicamente. Grande parte da esquerda acostumou-se com uma
classe média alinhada com discursos quase caricaturais sobre a “vida
difícil” daqueles que sustentariam o “bolsa isso, bolsa aquilo”.
Discurso vazio, mas que ressurgia como uma ameaça real a cada nova
eleição. Outra fração, minoritária (Psol), tentou adequar seu discurso a
essa classe média por meio de uma politização do tema da corrupção, sem
sucesso.
As manifestações de rua do último mês são expressões
das contradições imanentes desse arranjo político. A classe média que
saiu de casa não o fez na defesa de qualquer direito que se encontrava
em xeque. Tampouco porque já sente na pele os supostos limites de um
modelo econômico que a grande imprensa, há anos, insiste em afirmar que
se tornou insustentável. A variedade de reivindicações difusas e
abstratas é, antes, correlata dessa orfandade política a que ela, a
classe média, foi relegada nos últimos anos. Não é de se estranhar,
portanto, que, na falta de um discurso estruturado, ela apenas repita
certas palavras de ordem vazias veiculadas pela imprensa ou por setores
da direita.
Se buscarmos o denominador comum dessas
reivindicações, chegamos a duas características básicas. Por um lado,
são pautas consensuais no debate político brasileiro: mais investimentos
em saúde e educação, combate à corrupção, gasto responsável do dinheiro
público, defesa dos direitos de minorias e reforma do sistema político
no sentido de uma maior participação direta dos cidadãos. Elas, por
vezes, podem ser apresentadas com alguma coloração conservadora, como na
defesa da redução do Estado; no entanto, são pautas, em si,
progressistas. Em si, nada há de conservador na defesa de um Estado mais
responsável nos seus gastos ou no combate à corrupção. Por outro lado,
essas pautas são apresentadas de modo abstrato e pouco articuladas:
pouco se diz sobre a forma de encaminhamento político dessas demandas.
Por vezes, parecem apenas responder a anseios narcisistas de “dormir em
paz com o dever cívico cumprido”.
Pois é nessa fissura entre
demandas políticas legítimas e certa incapacidade de formulação de modos
concretos de encaminhamento dessas demandas que se dará o disputa
política daqui para frente.
Parte da direita e da grande mídia
pretende manter o debate nesse nível abstrato, asséptico. Daí seu
discurso “boa praça” que apenas projeta o narcisismo dos manifestantes:
“o gigante acordou”, “a avenida Getúlio Vargas está linda”. Ela não quer
ir para o particular porque isso implicaria colocar em xeque seus
próprios interesses. Ela tampouco ganharia com a instabilidade
institucional: ao que tudo indica, a tendência é tentar manter essa
“insatisfação geral” em voga até que, nas eleições do próximo ano, um
voto contra “tudo que está aí” leve, nas urnas, a uma mudança de
governo.
Isso não significa que outra parcela da direita,
minoritária, porém mais oportunista, não tente jogar suas cartas. Ela
sabe que essa equação entre anseios políticos legítimos, mobilização
popular e despolitização da classe média (no sentido de uma
inconsciência sobre os mecanismos de encaminhamento daqueles anseios)
pode ser explosiva se bem manipulada. Essa direita algo alucinada parece
surgir da “internet profunda” e, por meio de boatos, personalismos e
propostas fáceis demonstra sua falta de compromisso com as instituições
democráticas. Decerto, esses grupos são minoritários e pouco relevantes
politicamente. Mas podem aproveitar-se de uma situação que é, sim,
vulnerável.
À esquerda cabe olhar para sua experiência histórica e
para suas contradições presentes. A tendência é que, daqui para frente,
alianças de cúpula e o êxito de políticas sociais, sem a correspondente
mobilização social que envolva a classe média, não serão suficientes
para garantir a hegemonia política do governo. Para que a mobilização
dessa classe não signifique retrocesso, a esquerda deve urgentemente
propor e sustentar pautas concretas para o encaminhamento político das
demandas levantadas nas últimas semanas. É nesse espaço entre os desejos
legítimos expressados nas ruas e a sua viabilização que a esquerda deve
posicionar-se. A tarefa é árdua porque envolve a recuperação de uma
prática abandonada pelo setor dominante da esquerda: a disputa pela
hegemonia cultural e ideológica da classe média e da sociedade.
Mas
isso está longe de ser utópico. Há cerca de 20 anos, a esquerda
cultivava essa hegemonia. A aposta na confluência entre o particular e o
universal, como meio para o avanço nas lutas por direitos sociais, tal
como teorizado por Eder Sader, foi, em larga medida, responsável por
essa prevalência. E foi essa mesma dialética que sustentou as
manifestações de junho. O fato de que, em um primeiro momento, tenha
sido a politização de um demanda concreta – a redução da tarifa do
transporte público – o que fez a classe média sair às ruas é de extrema
importância e deve ser levado em consideração. Sem essa politização do
dia a dia, a tendência é que a classe média permaneça, com alguma razão,
indiferente aos esforços progressistas de avanço nos direitos sociais;
afinal, o êxito dessas políticas nos últimos anos passou ao largo da sua
realidade de classe. A vitória do Movimento Passe Livre acabou de
mostrar-nos a viabilidade dessa política de “queixas do cotidiano” hoje.
É preciso digerir essa experiência e reproduzi-la conscientemente.
Carlos Henrique Pissardo é mestre em filosofia (USP) e diplomata. Este artigo reflete apenas as opiniões do autor.
(Publicado originalmente no Portal Carta Maior)