
sábado, 12 de agosto de 2017
O blefe dos blefes

A filósofa Marcia Tiburi, autora de 'Ridículo político' (Simone Marinho/Divulgação)
No filme A cor do dinheiro, dirigido por Martin Scorsese, o personagem de Paul Newman, um experiente jogador de sinuca, se deixa engambelar pela figura aparentemente inofensiva de seu oponente. Com tacadas ridículas e ar abobado, o malandro encarnado à perfeição por Forest Whitaker leva o incauto Newman a subir o valor das apostas. Whitaker vira o jogo e varre as notas de dólar da mesa.
O novo livro de Marcia Tiburi revela a astúcia que existe por trás da aparência ridícula de políticos populistas (a maioria de direita). Trump, Berlusconi, Jair Bolsonaro e João Dória são alguns deles. Em vários capítulos curtos e instigantes, a filósofa mostra como as ações desses governantes e legisladores, muitas vezes de caráter estapafúrdio, mais escondem que revelam, por mais gritantes que sejam. Um de seus exemplos retoma Dória no impecável uniforme de gari, investindo-se da imagem de “limpador da cidade”. O ridículo do prefeito almofadinha de vassoura na mão, fingindo ser do povo, não apenas ofende a categoria dos garis, como esconde a verdadeira natureza de seu projeto de limpeza, como se viu nos contínuos episódios envolvendo a cracolândia, que poderiam figurar ao lado de conhecidas atitudes protogenocidas. O descaso com a verdade, o cinismo e a violência, além do evidente culto à personalidade são outras características desses personagens, analisadas com originalidade pela filósofa, que antes havia lançado Como conversar com um fascista, com o qual a nova obra dialoga.
Claro, esses políticos, com suas bravatas ora sorridentes, ora vociferantes, não possuem nenhum traço da dignidade meio torta do sinuqueiro de Whitaker. Ele, ao menos, se arrisca. Está sujeito a tomar uma surra – ainda mais sendo negro num país abertamente racista (na nossa falsa democracia racial, poderia ser morto). Já o golpista Temer literalmente fugiu do jogo, ao não comparecer à cerimônia de abertura das Olimpíadas no Rio. Logo ele, que já foi chamado de mordomo de filme de terror por Toninho Malvadeza (um gângster do ridículo?). Numa de suas divertidas metáforas, Tiburi o traduz como “o vampiro que vem sugar o sangue da população, mas não pode aparecer à luz do dia, senão pode morrer para sempre na vaia, como já morreu nas urnas”.
Os protagonistas deste livro rico em ideias e contundente em suas críticas vivem sob a proteção do conchavo e dos conluios interesseiros de classe. Jogam com ampla margem de garantias (as mesmas garantias que negam aos cidadãos). Justificam sua inclusão nesta nova categoria criada pela autora com projetos que vão do ridículo autoexplicativo de mover uma moção de repúdio contra a filósofa feminista Simone de Beauvoir, como fez um grupo de vereadores em Campinas, ao ridículo criminoso de propor um muro entre os EUA e o México, façanha do famoso topetudo ruivo. O preocupante, como bem aponta a autora, é que tamanha falta de seriedade é levada a sério por grande parte da população, iludida pelo circo midiático e de marketing.
O risível, ou mais especificamente o ridículo político, que há pouco se viu novamente ilustrado pela mala recheada do deputado afastado Rodrigo Rocha Loures e pelas gafes internacionais de nosso indesejado presidente, incapaz de diferenciar Noruega da Suécia, é resumido por ela como “uma espécie de estética cuja função é acobertar algo que atravessa, fantasmaticamente, a cena política”. E aqui a palavra estética não está colocada à toa. No interessante capítulo chamado “Unheimliche político: sobre a ‘estranheza inquietante’ e a experiência política”, Tiburi cita Freud, que definiu a estética como a “teoria das qualidades do nosso sentir”. Ou seja, algo que toca não apenas questões sobre o belo e o sublime, mas também nossos afetos. E aí que mora o perigo. É essa estética dominante, ou dominadora, pautada pela imitação, plastificação, publicidade, ostentação, pelo brega e pelo combate às artes, chamada ironicamente por Mark Fisher de “capitalismo realista”, que proporciona a naturalização do ridículo. É nossa anestesia perniciosa de cada dia. Afinal, como bem lembra a autora, “o controle das ideias e ações não acontece livremente sem um controle estético dos cidadãos”. Adorno, filósofo caro a Tiburi, também é citado. Para ele, a indústria cultural era uma ameaça à democracia. E é nesse aspecto, na discussão da estética como suporte para o ridículo político, em todos os âmbitos, macro e micro, que o livro é mais forte.
Impossível não pensar novamente em Dória em sua batalha contra os “feios, sujos e malvados”, quando mandou cobrir os grafites da cidade. Estava cobrindo também toda uma cultura de resistência, ação de artistas das periferias, os sem-galeria. Ou quando reforçou o policiamento contra pichadores, aos quais a escritora chama, numa feliz associação, de “filósofos selvagens a espalhar sua ironia semiótica pelas ruas”. Esse, aliás, é um dos temas que melhor aprofunda e, de certa forma, um resumo ou metonímia do que trata o livro: “A pixação (com x) é ação que propõe o fim da estética da fachada, o fim da estética como elogio da superfície acobertadora. A partir da gramática da pixação, dá-se um outro aparecer da cidade. Outra relação com o espaço surge a partir desse outro aparecer. A pixação é a gramática que exige a compreensão crítica da brancura dos muros. Uma linguagem suja – como é toda crítica em relação ao objeto fechado – no caso, em relação às muradas. Ela é ataque incisivo, mas ao mesmo tempo libertador. Ressignificação e transfiguração do lugar-comum. O que é um ‘lugar-comum’, no sentido do óbvio, do que todo mundo usa, pratica ou compra, torna-se, desde o pixo, um lugar in-comum. O in-comum é a entrada ou a produção de um comum político. É pela transubstanciação da cidade em pauta que esse comum se coloca como uma proposição, como um projeto que precisa ser sonhado. O grau zero da literatura é essa luta com o branco que a pixação expressa tão bem contra o fanatismo do alvor que corresponde, se pensarmos em um corpo humano, à plastificação geral. Cidades de plástico como Brasília, altamente excludentes, têm no pixo um sinal de que é preciso repensar a cidade. O pixo que ensina a repensar a cidade e suas margens habitadas por pessoas que atuam na cidade, que a veem com outros olhos. O pixo é efeito de um olhar.” Numa bela conclusão, escreve: “a pixação acorda a cidade de seu silêncio visual.”
Se às vezes parece exagerar, como quando compara a pichação ao Manifesto Comunista, ou a declaração de Galileu ante a Inquisição, de que a Terra se move, ao chamado rolezinho (“o rolê se ergue como revolta. Passear se torna uma ação afirmativa”) é para marcar mais fortemente uma posição. Pensando nas implicações de tudo que é levantado nesse livro, veremos que não há exagero. Tiburi não aponta a nudez estúpida do rei, como no conto de Andersen, mas praticamente o contrário: aponta para a veste sem corpo, a máscara sem rosto, a ostentação pura, representativa de nossa desigualdade, e para a capacidade inconsequente da parrésia, traduzida no poder muitas vezes intimidador de “falar merda”, como o discurso de Bolsonaro elogiando um conhecido torturador. Aponta, em suma, para a política transformada em publicidade e deixada à deriva para o capital; para o choque neoliberal, que “age de maneira biopolítica, ou seja, calculando quem vai viver e quem vai morrer”. Os trajes dos reis de nossa fábula insidiosamente real, ou sociedade do espetáculo, na famosa expressão de Guy Debord, são na verdade trajes de bufões, insiste. E assim “vestidos”, não são levados a sério e “chegam aonde pretendem e fazem o que querem”. Na plateia desse desfile nefando, vivemos o vazio das ideias, das emoções e ações. Tornamo-nos os homens-ocos de T.S. Eliot.
As instâncias de micropoder, tal como na genealogia de Foulcault, também merecem destaque na investigação da filósofa. Seu capítulo sobre “madamismo”, nesse sentido, é uma aula de antropologia social – e tem tudo a ver com os conceitos de manipulação da imagem e do esteticamente correto (basicamente, submissão à indústria cultural), estampados na capa como subtítulo. Ao analisar o filme Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, ela reforça a ideia de que a luta de classes está também dentro das casas. O episódio envolvendo o presente da empregada – um jogo de chá de que a patroa, famosa designer, se envergonha – é profundamente exemplar de que gosto, sim, se discute. É política na sua acepção mais imediata, e está na raiz de bullyings e preconceitos. “(…) o gosto precisa ser discutido no contexto de sua produção social. Cada um introjeta prazeres, desejos, gozos que são ofertados pelos sistemas dos consensos que o tornam incapaz de compreender como se gosta ou desgosta de algo. Há todo um lastro de habitus, para usar uma expressão de Pierre Bourdieu em O poder simbólico, que sustenta o gosto. A ilusão individualista parte da presunção de que se é livre para gostar disso ou daquilo. Seria útil, no propósito de compreender a subjetividade saber que o gosto tem uma história e o desgosto também. Que aquilo que sentimos não é natural, que as comidas que agradam ao nosso paladar chegam até nós muito prontas, assim como nossas ideias, e definem nosso gosto.”
Particularmente interessante também é a defesa que a autora faz da transidentidade, num contexto de discussão sobre o corpo entre a estética e a política. (E aqui caberia também a questão do “não-corpo” nas redes sociais, onde, no dizer da escritora, não somos mais que “espectros”.) Tiburi fala no “homem-plástico”, em substituição ao “homem-máquina” da Ode triunfal de Álvaro de Campos, o heterônimo modernista de Fernando Pessoa: “Nossa carne é moldada nas academias como se fosse de plástico, nossa pele deve ser lisa como ele. Materialidade morta, o plástico usurpa o lugar da natureza perecível e promete o imperecível”. Mais adiante, afirma: “Uma mulher é, portanto, uma montagem que finge ser natural. Um homem também. Só a travesti seria sincera ao ser montagem de si e desmontagem do gênero”. E completa: “é o que causa estranheza, o que não se enquadra nas normas, que tem algo a nos dizer”.
“Onde estou, que não estou em mim?” A pergunta do poeta Herberto Helder ressoa por todo o livro. É uma pergunta que certamente os arautos do ridículo político nunca se fazem, nem farão. Voz romântica, talvez, idealista e necessária, Márcia Tiburi se arrisca sem blefar. Talvez essa seja uma boa definição de reflexão crítica. Como ela mesma diz, é o que nos falta.
Daniel Benevides é jornalista
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

A democracia impopular: um jogo de xadrez entre políticos
Um governo sem legitimidade é uma democracia? O certo é que: um governo impopular que cria medidas para salvar o mercado, não pode ser uma democracia
Toda prática humana que possa ser convertida em mercadoria deixa de ser acessível ao poder democrático.
Ellen Meiksins Wood
Um governo sem legitimidade é uma democracia? O certo é que: um governo impopular que cria medidas para salvar o mercado, não pode ser uma democracia. Hoje as reformas que buscam ser implantadas pelo governo golpista não precisam mais da aprovação popular. São polêmicas, mas a imprensa apresenta toda a discussão sobre elas como um jogo de xadrez entre os políticos.
As reformas são encaradas como uma negociação entre parlamentares, e não algo para o bem popular. “Maia afirmou que espera que a base aliada ao governo esteja recomposta para alcançar o quórum de 308 votos, mínimo necessário para aprovar uma proposta de emenda à Constituição”.[1] Tudo não passa de um jogo entre os picaretas. Quanto ao povo; este deve ser passivo, esperar as decisões dos seus “superiores”. Foi desmascarado o projeto de poder dos golpistas. E a TV, os jornais e o rádio passaram a exercer de forma clara sua função de aparelhos ideológicos do Estado.
O jornal O Globo, em seu editorial, disse: “Rodrigo Maia deseja que a proposta de atualização do sistema previdenciário seja retomada de onde parou, após a aprovação em comissão especial, sem qualquer alteração para reduzi-la a poucos pontos. Maia tem razão”.[2] Uma razão construída a partir de um suposto conflito técnico, jamais em prol da sociedade. Parece que entregamos o poder nas mãos de quem realmente sabe o que faz, que não se incomoda com a ira do povo, mas apenas em si manter no poder.
No G1, o jornalista João Borges resgata novamente as posições de Rodrigo Maia, o político da vez: “Maia já disse que Temer precisa reorganizar a base se quiser aprovar a reforma”. Não se fala mais que o presidente precisa convencer o povo. Podemos até achar que nunca foi assim, que nunca houve esse interesse do político (coisa que não é verdade), mas a imprensa confirmar isso e não mostrar nenhuma posição é um absurdo.
A jornalista Miriam Leitão, vez ou outra, diz que a reforma da Previdência deve ser discutida com a sociedade. No entanto, na tentativa de dissociar o projeto da imagem denegrida do presidente, apoia Rodrigo Maia que não pretende mais dialogar sobre os elementos que compõem o texto reformista. “Quem está certo é o presidente da Câmara dos Deputados, que delimitou a discussão”.
O secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Eduardo Guardia, destacou a importância de priorizar a Reforma da Previdência: “O senso de prioridade e de urgência neste momento é discutir a reforma da Previdencia”. Pergunto eu: discutir com quem? Em seguida, a repórter Mariana Carneiro, fala das dúvidas do Ministro Meirelles que “evitara prever se a reforma tributária poderia avançar antes que a previdenciária, dado o potencial de resistência da segunda entre os parlamentares”.[3]
Não se pensa no cidadão. E isso pode até soar como o óbvio. Contudo, sabemos que muitos políticos que apoiaram o golpe e votaram contra Temer em relação a sua cassação o fez pensando na eleição futura. No entanto, a mídia ressalta isso sem escrever nenhuma linha sobre a necessidade de diálogo com a população. Não há mais retórica. Não se quer mais convencer o povo das reformas. Querem apenas mostrar, ou que elas são moedas de troca, ou que vão salvar o país devido ao aumento dos gastos públicos.
No período do impeachment, víamos no programa da Ana Maria Braga, jovens ensinando a fazer bandeiras e definindo quais palavras de ordem dizer. Hoje só se fala do jogo político no interior do congresso. Querem nos forçar a acreditar que tudo não passa de um Game of Thrones ou de um House of Cards e não da luta de classes. Silenciam a população que deve ficar enclausurada em suas casas com medo da violência e, por seu turno, escondem a burguesia que está por traz de todas essas reformas realizadas para salvar suas fortunas.
A imprensa não é um veículo portador de “fatos” e “verdade”, ela é um agente histórico que intervém nos processos e acontecimentos, como mostraram os historiadores Robert Darnton e Daniel Roche. A imprensa no Brasil do século XIX, por exemplo, participou nas disputas de símbolos e das formas de representação da identidade nacional.[4] O que vemos hoje é a mesma coisa, no entanto, há uma exclusão da participação popular, pelo menos quando se trata do tema das reformas após a aprovação parlamentar da absolvição do famigerado presidente da República.


A questão da popularidade e a reação popular frente às reformas, pelo menos após a votação que condenaria Michel Temer, são debatidas apenas por uma mídia vinculada aos movimentos de esquerda. A grande mídia diminuiu até mesmo seus ataques ao seu fantoche político para focalizar nas reformas.
Eliseu Padilha, afirmava em maio desse ano que “o presidente Michel Temer não busca popularidade e que o objetivo é fazer um governo de reformas”.[5] Isto é, calar as vozes das ruas. A mídia até tentou colocar tudo na culpa de Temer e fomentar o ódio contra este e depois dissociar a imagem do presidente das reformas. Mas com a vitória da reforma trabalhista viu-se que as reformas poderiam ser implementadas mesmo com impopularidade. E o desmonte da democracia seguiu em frente.
Contudo, as grandes corporações que financiam a mídia não deixaram de construir seu candidato, João Doria, que Temer chama de “parceiro” e que ainda sofre com a impopularidade. Prova disso foi sua recepção pela população baiana a base de ovos. Mas se Doria não conseguir sua popularidade, por mais que não gostem do Bolsonaro, as classes dominantes não titubearão em escolhê-lo. Por que se há algo que as elites capitalistas e a extrema direita têm em comum no Brasil de hoje, sem dúvida, é o ódio à esquerda.
O foco saiu das ruas e foi para o Planalto. O único vozerio que ecoa na TV e nas páginas dos jornais mais vendidos é o dos homens e mulheres (com exceção de uma minoria) comprometidos a garantir as próximas eleições. Nunca o povo teve conhecimento dos nomes dos políticos como se tem hoje. E na tribuna, aumentaram os quilos de maquiagem e os jargões rebuscados, pois os políticos sabem que estão na TV e que muitos (passivamente) o assistem.
Não pode haver democracia com uma impopularidade que não incomoda! Parece os governos ditatoriais (com exceção dos populistas). Temos que lutar por uma democracia mais participativa, como estamos vendo acontecer na Espanha, onde o Podemos se mostrou como uma alternativa para uma esquerda mais moderna e muito mais popular que o PSOE.[6] Há diversas soluções, onde a democracia se mostra como o melhor caminho, só não podemos aceitar um governo que não ouve seu povo e desdenha os seus interesses
* Doutorando em História Política da UERJ e professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.
[1] http://veja.abril.com.br/economia/maia-quer-votar-reforma-da-previdencia-ate-inicio-de-setembro/
[2] http://noblat.oglobo.globo.com/editoriais/noticia/2017/08/e-melhor-nao-fatiar-reforma-da-previdencia.html
[3] http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/08/1907966-para-fazenda-prioridade-e-avancar-na-reforma-da-previdencia.shtml
[4] LIMA, Ivana Stolze. Cabra gente brasiliera do gentio da Guiné: imprensa, política e identidade no Rio de Janeiro (1831-1833). NEVES, Lucia Maria Bastos P. (et. al.) História da imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. p. 299.
[5] http://cbn.globoradio.globo.com/programas/moreno-no-radio/2017/05/05/ELISEU-PADILHA-DIZ-QUE-TEMER-NAO-BUSCA-POPULARIDADE-GOVERNO-DE-REFORMA.htm
[6] PERRENOT, Pauline. e SLONSKA-MALVAU, Vladimir. Nas cidades rebeldes da Espanha. Le monde diplomatique Brasil, ano. 10, n. 115, fev. 2017.
Um governo sem legitimidade é uma democracia? O certo é que: um governo impopular que cria medidas para salvar o mercado, não pode ser uma democracia. Hoje as reformas que buscam ser implantadas pelo governo golpista não precisam mais da aprovação popular. São polêmicas, mas a imprensa apresenta toda a discussão sobre elas como um jogo de xadrez entre os políticos.
As reformas são encaradas como uma negociação entre parlamentares, e não algo para o bem popular. “Maia afirmou que espera que a base aliada ao governo esteja recomposta para alcançar o quórum de 308 votos, mínimo necessário para aprovar uma proposta de emenda à Constituição”.[1] Tudo não passa de um jogo entre os picaretas. Quanto ao povo; este deve ser passivo, esperar as decisões dos seus “superiores”. Foi desmascarado o projeto de poder dos golpistas. E a TV, os jornais e o rádio passaram a exercer de forma clara sua função de aparelhos ideológicos do Estado.
O jornal O Globo, em seu editorial, disse: “Rodrigo Maia deseja que a proposta de atualização do sistema previdenciário seja retomada de onde parou, após a aprovação em comissão especial, sem qualquer alteração para reduzi-la a poucos pontos. Maia tem razão”.[2] Uma razão construída a partir de um suposto conflito técnico, jamais em prol da sociedade. Parece que entregamos o poder nas mãos de quem realmente sabe o que faz, que não se incomoda com a ira do povo, mas apenas em si manter no poder.
No G1, o jornalista João Borges resgata novamente as posições de Rodrigo Maia, o político da vez: “Maia já disse que Temer precisa reorganizar a base se quiser aprovar a reforma”. Não se fala mais que o presidente precisa convencer o povo. Podemos até achar que nunca foi assim, que nunca houve esse interesse do político (coisa que não é verdade), mas a imprensa confirmar isso e não mostrar nenhuma posição é um absurdo.
A jornalista Miriam Leitão, vez ou outra, diz que a reforma da Previdência deve ser discutida com a sociedade. No entanto, na tentativa de dissociar o projeto da imagem denegrida do presidente, apoia Rodrigo Maia que não pretende mais dialogar sobre os elementos que compõem o texto reformista. “Quem está certo é o presidente da Câmara dos Deputados, que delimitou a discussão”.
O secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Eduardo Guardia, destacou a importância de priorizar a Reforma da Previdência: “O senso de prioridade e de urgência neste momento é discutir a reforma da Previdencia”. Pergunto eu: discutir com quem? Em seguida, a repórter Mariana Carneiro, fala das dúvidas do Ministro Meirelles que “evitara prever se a reforma tributária poderia avançar antes que a previdenciária, dado o potencial de resistência da segunda entre os parlamentares”.[3]
Não se pensa no cidadão. E isso pode até soar como o óbvio. Contudo, sabemos que muitos políticos que apoiaram o golpe e votaram contra Temer em relação a sua cassação o fez pensando na eleição futura. No entanto, a mídia ressalta isso sem escrever nenhuma linha sobre a necessidade de diálogo com a população. Não há mais retórica. Não se quer mais convencer o povo das reformas. Querem apenas mostrar, ou que elas são moedas de troca, ou que vão salvar o país devido ao aumento dos gastos públicos.
No período do impeachment, víamos no programa da Ana Maria Braga, jovens ensinando a fazer bandeiras e definindo quais palavras de ordem dizer. Hoje só se fala do jogo político no interior do congresso. Querem nos forçar a acreditar que tudo não passa de um Game of Thrones ou de um House of Cards e não da luta de classes. Silenciam a população que deve ficar enclausurada em suas casas com medo da violência e, por seu turno, escondem a burguesia que está por traz de todas essas reformas realizadas para salvar suas fortunas.
A imprensa não é um veículo portador de “fatos” e “verdade”, ela é um agente histórico que intervém nos processos e acontecimentos, como mostraram os historiadores Robert Darnton e Daniel Roche. A imprensa no Brasil do século XIX, por exemplo, participou nas disputas de símbolos e das formas de representação da identidade nacional.[4] O que vemos hoje é a mesma coisa, no entanto, há uma exclusão da participação popular, pelo menos quando se trata do tema das reformas após a aprovação parlamentar da absolvição do famigerado presidente da República.
A questão da popularidade e a reação popular frente às reformas, pelo menos após a votação que condenaria Michel Temer, são debatidas apenas por uma mídia vinculada aos movimentos de esquerda. A grande mídia diminuiu até mesmo seus ataques ao seu fantoche político para focalizar nas reformas.
Eliseu Padilha, afirmava em maio desse ano que “o presidente Michel Temer não busca popularidade e que o objetivo é fazer um governo de reformas”.[5] Isto é, calar as vozes das ruas. A mídia até tentou colocar tudo na culpa de Temer e fomentar o ódio contra este e depois dissociar a imagem do presidente das reformas. Mas com a vitória da reforma trabalhista viu-se que as reformas poderiam ser implementadas mesmo com impopularidade. E o desmonte da democracia seguiu em frente.
Contudo, as grandes corporações que financiam a mídia não deixaram de construir seu candidato, João Doria, que Temer chama de “parceiro” e que ainda sofre com a impopularidade. Prova disso foi sua recepção pela população baiana a base de ovos. Mas se Doria não conseguir sua popularidade, por mais que não gostem do Bolsonaro, as classes dominantes não titubearão em escolhê-lo. Por que se há algo que as elites capitalistas e a extrema direita têm em comum no Brasil de hoje, sem dúvida, é o ódio à esquerda.
O foco saiu das ruas e foi para o Planalto. O único vozerio que ecoa na TV e nas páginas dos jornais mais vendidos é o dos homens e mulheres (com exceção de uma minoria) comprometidos a garantir as próximas eleições. Nunca o povo teve conhecimento dos nomes dos políticos como se tem hoje. E na tribuna, aumentaram os quilos de maquiagem e os jargões rebuscados, pois os políticos sabem que estão na TV e que muitos (passivamente) o assistem.
Não pode haver democracia com uma impopularidade que não incomoda! Parece os governos ditatoriais (com exceção dos populistas). Temos que lutar por uma democracia mais participativa, como estamos vendo acontecer na Espanha, onde o Podemos se mostrou como uma alternativa para uma esquerda mais moderna e muito mais popular que o PSOE.[6] Há diversas soluções, onde a democracia se mostra como o melhor caminho, só não podemos aceitar um governo que não ouve seu povo e desdenha os seus interesses
* Doutorando em História Política da UERJ e professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.
[1] http://veja.abril.com.br/economia/maia-quer-votar-reforma-da-previdencia-ate-inicio-de-setembro/
[2] http://noblat.oglobo.globo.com/editoriais/noticia/2017/08/e-melhor-nao-fatiar-reforma-da-previdencia.html
[3] http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/08/1907966-para-fazenda-prioridade-e-avancar-na-reforma-da-previdencia.shtml
[4] LIMA, Ivana Stolze. Cabra gente brasiliera do gentio da Guiné: imprensa, política e identidade no Rio de Janeiro (1831-1833). NEVES, Lucia Maria Bastos P. (et. al.) História da imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. p. 299.
[5] http://cbn.globoradio.globo.com/programas/moreno-no-radio/2017/05/05/ELISEU-PADILHA-DIZ-QUE-TEMER-NAO-BUSCA-POPULARIDADE-GOVERNO-DE-REFORMA.htm
[6] PERRENOT, Pauline. e SLONSKA-MALVAU, Vladimir. Nas cidades rebeldes da Espanha. Le monde diplomatique Brasil, ano. 10, n. 115, fev. 2017.
(Publicado originalmente no Portal Carta Maior)
O xadrez político das eleições estaduais de 2018, em Pernambuco: Para onde caminha o ministro Mendonça Filho?
José Luiz Gomes da Silva
Cientista Político
Desde o início de sua gestão no Ministério da Educação, o ministro Mendonça Filho(DEM) atiça as expectativas em torno de uma disputa majoritária nas eleições de 2018, em Pernambuco. O cargo que ele disputará ainda se constitui numa incógnita, sobretudo em relação aos arranjos políticos da quadra estadual. Desde as últimas eleições municipais - onde o partido disputou a prefeitura do Recife com a vereadora Priscila Krause(DEM) - fica evidente uma estratégia partidária de "reinvenção" crescimento e consolidação da agremiação política. No plano nacional, está estratégia também parece nítida, se considerarmos as movimentações dos seus atores políticos de projeção nacional, inclusive o atual Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia(DEM-RJ), cujos objetivos políticos, por algum tempo, estiveram muito além de cumprir um possível mandato de transição num eventual impedimento do presidente Michel Temer(PMDB).
Cientista Político
Desde o início de sua gestão no Ministério da Educação, o ministro Mendonça Filho(DEM) atiça as expectativas em torno de uma disputa majoritária nas eleições de 2018, em Pernambuco. O cargo que ele disputará ainda se constitui numa incógnita, sobretudo em relação aos arranjos políticos da quadra estadual. Desde as últimas eleições municipais - onde o partido disputou a prefeitura do Recife com a vereadora Priscila Krause(DEM) - fica evidente uma estratégia partidária de "reinvenção" crescimento e consolidação da agremiação política. No plano nacional, está estratégia também parece nítida, se considerarmos as movimentações dos seus atores políticos de projeção nacional, inclusive o atual Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia(DEM-RJ), cujos objetivos políticos, por algum tempo, estiveram muito além de cumprir um possível mandato de transição num eventual impedimento do presidente Michel Temer(PMDB).
Diante de um cenário político como o atual - de desgaste de lideranças políticas tradicionais - os Democratas não escondem de ninguém que desejam disputar o espaço do "novo", ou seja, apresentar ao eleitorado uma alternativa política que se enquadre neste perfil. As informações de que o partido já teria oferecido a legenda para uma disputa presidencial ao prefeito de São Paulo, João Dória(PSDB), coincide com declarações do presidente nacional da legenda, Agripino Maia, à imprensa. Numa espécie de coletiva, o presidente do grêmio político dos Democratas acena com a possibilidade de uma "reestruturação" da legenda, abrindo espaço, inclusive, para uma disputa presidencial com um nome "novo", assim como ocorreu na Argentina, onde a direita voltou ao poder através do voto, ao eleger Maurício Macri presidente da República.
Nesta proposta dos Democratas, o nome do Ministro da Educação, Mendonça Filho, teria sido cogitado para assumir a condição de vice, numa suposta chapa com o prefeito de São Paulo. A despeito de uma gestão complicada e posições políticas ainda mais delicadas, o empresário vem assumindo contornos de um potencial candidato presidencial, o que explica o assédio que vem sofrendo por parte de algumas legendas. A condição de "novato" lhes rede muitos dividendos, num momento de profunda "ressaca" do eleitorado com os políticos tradicionais, em meio a uma crise institucional sem precedentes. Dos "velhos", somente o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva(PT) ainda aparece bem na fita, mas se encontra profundamente encrencado nos rolos da Lava Jato.
Aqui na província pernambucana, depois de uma roda de diálogo do ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, com políticos locais, chegou a ser ventilada a possibilidade de o PT abdicar de uma candidatura própria ao Governo do Estado, em favor do nome do Deputado Sílvio Costa a uma das vagas ao Senado Federal na chapa oposicionista encabeçada pelo senador Armando Monteiro(PTB). O quadro aqui ainda encontra-se confuso, uma vez que a possibilidade de um diálogo petista com o Palácio do Campo das Princesas ainda não ter sido completamente descartada, apesar das dificuldades da travessia da ponte, notadamente depois das duras críticas do programa da agremiação à gestão do governador Paulo Câmara. Nossa opinião sobre o assunto já foi externada por aqui, mas em política tudo é possível.
Neste realinhamento de forças políticas conservadoras, o Estado de Pernambuco corre uma sério risco de não apresentar ao eleitorado um nome de perfil mais progressista, identificado com as lutas populares. O comportamento do PTB - e em particular do senador Armando Monteiro(PTB) - na votação da Reforma Trabalhista, por exemplo, deixa claro sobre qual DNA é movido o trabalhista pernambucano: o capital. É neste contexto que uma candidatura própria do PT seria estrategicamente ainda mais importante.
Os movimentos políticos indicam que o DEM, em Pernambuco, tem projeto majoritário. Um passarinho nos contou que o atual Ministro da Educação, Mendonça Filho, ocuparia uma das vagas em disputa para o Senado Federal. Se pela chapa governista ou pela chapa "oposicionista", ainda uma incógnita, mas é conhecido seu aconchego na Conspiração Macambirense. O próprio ministro, em encontro recente da legenda no Estado, teria admitido as dificuldades de uma retomada do diálogo com o Palácio do Campo das Princesas. Hoje ele está mais para os churrascos na Fazenda Macambira do que propriamente para os canapés oferecido pelo cerimonial do Campo das Princesas.
Rafael Braga é insignificante para o judiciário, que se comporta como casta corportativa
Ronilso Pacheco
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro negou o pedido de habeas corpus para o jovem Rafael Braga Vieira, no caso de sua condenação a 11 anos por porte de drogas e tráfico, e a defesa vai recorrer ao Superior Tribunal de Justiça.
Já não é possível dizer que o caso de Rafael Braga Vieira seja desconhecido. A imprensa no Brasil e no mundo acompanha e noticia sua história a cada julgamento. O Instituto Tomie Ohtake, uma das salas de arte mais importantes do país, está com uma exposição em sua homenagem e cada vez mais artistas o citam em seus shows e espetáculos. A filósofa Ângela Davis, em recente passagem pela Bahia posou para foto com camisa do Rafael. Há quatro anos, ele conta com o apoio direto da Campanha Pela Liberdade de Rafael Braga Vieira, grupo que se reúne nas escadarias da Cinelândia, no Rio, para discutir o caso, acompanhar, organizar mobilizações e demais estratégias.
Ainda assim, o jovem negro e pobre, preso no contexto das manifestações de 2013 e com uma nova condenação por tráfico em abril de 2017, segue na prisão. As sistemáticas recusas do Judiciário do Rio em absolver Rafael Braga entram e saem mais ou menos em evidência na medida em que algum fato faz com que ele seja inevitavelmente comparado. O mais recente foi o surpreendente (e vergonhoso) caso em que a desembargadora Tânia Garcia Freitas, presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Mato Grosso do Sul, foi pessoalmente tirar o filho, o empresário Breno Borges, de 37 anos, da prisão. Breno cumpria pena por prisão em flagrante portando 130 quilos de maconha, além de munição.
A comparação com Rafael Braga é inevitável, considerando-se que ele foi preso com 0,6g de maconha, 9,3 g de cocaína e um morteiro na mochila.
Breno Borges tem também contra ele gravações de conversas em que ele ajudaria na fuga de um detento em Três Lagoas. Mas nada disso fez diferença sobre a mudança de compreensão de que seu caso era de internação e tratamento, e não punição e encarceramento. Nem de longe o jovem negro e pobre teve esta possibilidade.
A classe do Judiciário, não de hoje, é a classe mais perigosa quanto ao risco social, exatamente por lidarem com aquele poder que, em tese, é o último a se recorrer quando os demais poderes se impõem. A classe de juízes, desembargadores, procuradores, não está livre da mediocridade e da compreensão elitista e burguesa de que o poder da função é seu poder pessoal, e que tal poder não está em defesa do comum, mas em defesa da preservação do seu poder, e em defesa dos seus. A indignação causada pelo abuso de autoridade da desembargadora Tânia Freitas, torna-se apenas mais uma indignação em meio a tantas.
O que pensar do caso do índio Galdino dos Santos, em 1997, em Brasília? Como esquecer que cinco jovens da alta casta de Brasília incendiaram o corpo do índio enquanto ele dormia, num ponto de ônibus? Um deles, Antônio Novely Vilanova, na época com 19 anos, é filho de juiz federal. Os quatro (um era menor) só foram condenados quatro anos depois. O outro, Max Rogério Alvez, na época com 16 anos, passou em concurso e tomou posse como servidor do Tribunal de Justiça de Brasília em 2016. Foi o mesmo órgão que o condenou há mais de uma década, mas como ele também pertence à casta, está tudo em casa.

Em São Luís, Maranhão, em 2015, o estudante Denys Martins Cavalcante, atropelou um pedestre numa avenida da cidade.Foi preso em flagrante e solto horas depois,sem pagar fiança. Denys é filho de um influente juiz da cidade, não prestou socorro à vítima ou apoio à família. Foi preso tentando fugir.
É importante lembrar que, no caso da condenação de Rafael Braga, o juiz Ricardo Coronha diz ter se baseado única e exclusivamente no depoimento dos policiais. Não aceitou testemunhas, negou diligências da defesa do jovem e se deu por satisfeito com o testemunho dos policiais que efetivaram a prisão e agrediram Rafael. O juiz, alegou crer no compromisso destes com a verdade e a instituição.
O que faremos com todos os casos conhecidos, via imprensa, em que policiais forjam cena de crime, ocultam corpos e mentem sobre conflitos que não houveram, para legitimarem os casos de “autos de resistência”? Apenas quando se trata de “insignificantes” isso não faz diferença.
E o que dizer do juiz João Carlos de Souza Correa, que, em 2011, ao ser parado em blitz, se sentiu ofendido ao resistir à abordagem e ter ouvido da agente Luciana Tamburini que ele “não era Deus”?
Ciente da casta à qual pertence, o juiz chegou a dar voz de prisão à agente, que depois foi condenada a indenizar o magistrado em R$ 5 mil, que conseguiu com ajuda de amigos e pessoas que ficaram indignadas com o caso.
Por tudo isso, uma desesperança vai tomando conta dos que acompanham o caso de Rafael Braga. Porque ele não é o único. Ele pode ser emblemático, mas não é único. Estamos reféns de um poder que circula em meio a uma casta medíocre e militarizada, que dorme em berços privilegiados à noite e julgam sujeitos “insignificantes de dia”. O corporativismo do Judiciário brasileiro dificulta a abertura de diálogo com as pressões populares e a busca pela razoabilidade em julgamentos em que, na pessoa do acusado, a falta de provas é nítida, o racismo se destaca e a criminalização da pobreza é inegável.
Liberdade para Rafael Braga!
(Publicado originalmente no site do Intercept Brasil)
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro negou o pedido de habeas corpus para o jovem Rafael Braga Vieira, no caso de sua condenação a 11 anos por porte de drogas e tráfico, e a defesa vai recorrer ao Superior Tribunal de Justiça.
Já não é possível dizer que o caso de Rafael Braga Vieira seja desconhecido. A imprensa no Brasil e no mundo acompanha e noticia sua história a cada julgamento. O Instituto Tomie Ohtake, uma das salas de arte mais importantes do país, está com uma exposição em sua homenagem e cada vez mais artistas o citam em seus shows e espetáculos. A filósofa Ângela Davis, em recente passagem pela Bahia posou para foto com camisa do Rafael. Há quatro anos, ele conta com o apoio direto da Campanha Pela Liberdade de Rafael Braga Vieira, grupo que se reúne nas escadarias da Cinelândia, no Rio, para discutir o caso, acompanhar, organizar mobilizações e demais estratégias.
Ainda assim, o jovem negro e pobre, preso no contexto das manifestações de 2013 e com uma nova condenação por tráfico em abril de 2017, segue na prisão. As sistemáticas recusas do Judiciário do Rio em absolver Rafael Braga entram e saem mais ou menos em evidência na medida em que algum fato faz com que ele seja inevitavelmente comparado. O mais recente foi o surpreendente (e vergonhoso) caso em que a desembargadora Tânia Garcia Freitas, presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Mato Grosso do Sul, foi pessoalmente tirar o filho, o empresário Breno Borges, de 37 anos, da prisão. Breno cumpria pena por prisão em flagrante portando 130 quilos de maconha, além de munição.
A comparação com Rafael Braga é inevitável, considerando-se que ele foi preso com 0,6g de maconha, 9,3 g de cocaína e um morteiro na mochila.
Breno Borges tem também contra ele gravações de conversas em que ele ajudaria na fuga de um detento em Três Lagoas. Mas nada disso fez diferença sobre a mudança de compreensão de que seu caso era de internação e tratamento, e não punição e encarceramento. Nem de longe o jovem negro e pobre teve esta possibilidade.
Surdez do judiciário
Já não se trata mais de o Brasil não ser para principiantes. O Brasil (e suas instituições de poder) não é para insignificantes. Só isso explica a surdez do Judiciário do Rio sobre o Rafael Braga. A elite brasileira não aceita e não perdoa insignificantes: essa gente preta, pobre, iletrada, de moradia precária; indígenas “incivilizados”; camponeses broncos, cuidadores de pequenas e paupérrimas terras. Gente que não tem nada a oferecer. E a elite brasileira é sobretudo medíocre, não importa que cargo de que área ela ocupe ou conquiste. No Brasil, os privilegiados do poder não conquistam espaço, eles colonizam. A classe média alta brasileira é medíocre, não importa que lugar ocupe. Talvez esta seja uma das razões para agirem como agem com o poder como se ele fosse feudo particular, e não serviço em defesa da justiça e zelo pelo comum.A classe de juízes, desembargadores, procuradores, não está livre da mediocridade e da compreensão elitista e burguesa de que o poder da função é seu poder pessoal.
A classe do Judiciário, não de hoje, é a classe mais perigosa quanto ao risco social, exatamente por lidarem com aquele poder que, em tese, é o último a se recorrer quando os demais poderes se impõem. A classe de juízes, desembargadores, procuradores, não está livre da mediocridade e da compreensão elitista e burguesa de que o poder da função é seu poder pessoal, e que tal poder não está em defesa do comum, mas em defesa da preservação do seu poder, e em defesa dos seus. A indignação causada pelo abuso de autoridade da desembargadora Tânia Freitas, torna-se apenas mais uma indignação em meio a tantas.
O que pensar do caso do índio Galdino dos Santos, em 1997, em Brasília? Como esquecer que cinco jovens da alta casta de Brasília incendiaram o corpo do índio enquanto ele dormia, num ponto de ônibus? Um deles, Antônio Novely Vilanova, na época com 19 anos, é filho de juiz federal. Os quatro (um era menor) só foram condenados quatro anos depois. O outro, Max Rogério Alvez, na época com 16 anos, passou em concurso e tomou posse como servidor do Tribunal de Justiça de Brasília em 2016. Foi o mesmo órgão que o condenou há mais de uma década, mas como ele também pertence à casta, está tudo em casa.

Protesto em São Paulo, em maio de 2017, organizado por As Mães de Maio e diversos movimentos sociais contra a condenação de Rafael Braga
É importante lembrar que, no caso da condenação de Rafael Braga, o juiz Ricardo Coronha diz ter se baseado única e exclusivamente no depoimento dos policiais. Não aceitou testemunhas, negou diligências da defesa do jovem e se deu por satisfeito com o testemunho dos policiais que efetivaram a prisão e agrediram Rafael. O juiz, alegou crer no compromisso destes com a verdade e a instituição.
O que faremos com todos os casos conhecidos, via imprensa, em que policiais forjam cena de crime, ocultam corpos e mentem sobre conflitos que não houveram, para legitimarem os casos de “autos de resistência”? Apenas quando se trata de “insignificantes” isso não faz diferença.
E o que dizer do juiz João Carlos de Souza Correa, que, em 2011, ao ser parado em blitz, se sentiu ofendido ao resistir à abordagem e ter ouvido da agente Luciana Tamburini que ele “não era Deus”?
Ciente da casta à qual pertence, o juiz chegou a dar voz de prisão à agente, que depois foi condenada a indenizar o magistrado em R$ 5 mil, que conseguiu com ajuda de amigos e pessoas que ficaram indignadas com o caso.
Por tudo isso, uma desesperança vai tomando conta dos que acompanham o caso de Rafael Braga. Porque ele não é o único. Ele pode ser emblemático, mas não é único. Estamos reféns de um poder que circula em meio a uma casta medíocre e militarizada, que dorme em berços privilegiados à noite e julgam sujeitos “insignificantes de dia”. O corporativismo do Judiciário brasileiro dificulta a abertura de diálogo com as pressões populares e a busca pela razoabilidade em julgamentos em que, na pessoa do acusado, a falta de provas é nítida, o racismo se destaca e a criminalização da pobreza é inegável.
Liberdade para Rafael Braga!
(Publicado originalmente no site do Intercept Brasil)
quinta-feira, 10 de agosto de 2017
Le Monde: A história do capitalismo contada pelo ketchup
A civilização do tomate
Por: Jean-Baptiste Mallet
Crédito da Imagem: Daniel Kondo
A força de um sistema econômico agarra-se à sua capacidade de participar dos menores detalhes da existência e, em particular, de nossos pratos. Uma banal lata de extrato de tomate contém, assim, dois séculos de história do capitalismo. Jean-Baptiste Malet apresenta aqui uma pesquisa feita nos quatro continentes: uma geopolítica da junk food
4 de agosto de 2017
No coração do Vale de Sacramento, na Califórnia, no salão de um restaurante decorado com ursos e cobras empalhadas, um homem morde seu hambúrguer diante de um frasco de ketchup. Chris Rufer, proprietário da Morning Star Company, é o rei mundial da indústria do tomate. Com apenas três fábricas, as maiores do mundo, sua empresa produz 12% de todo o extrato de tomate consumido no planeta.
“Eu sou um tipo de anarquista”, explica Rufer entre uma mordida e outra. “É por isso que não há mais gestores na minha empresa. Adotamos a autogestão” – uma “autogestão” na qual a informática substituiu os chefes, mas os trabalhadores não controlam o capital da empresa. Financiador do Partido Libertário,1 Rufer concede aos funcionários a missão de distribuir as tarefas que ainda são executadas por seres humanos. Nas indústrias da cidade de Williams, a Morning Star transforma, a cada hora, 1.350 toneladas de tomates frescos em extrato. Lavagem, esmagamento e evaporação sob pressão são totalmente automatizados. Constantemente atravessado por um enxame de caminhões com carrocerias duplas carregadas de frutos vermelhos, o estabelecimento é o mais competitivo do mundo. Ele opera em três turnos e emprega apenas setenta trabalhadores em cada um deles. A maioria dos operários e gestores foi eliminada, substituída por máquinas e computadores. Dessa sequência de “processamento primário” saem grandes caixas contendo diferentes tipos de extrato.
Colocado em recipientes, esse extrato circula por todos os oceanos do globo. Podemos encontrá-lo, ao lado dos barris de extrato chinês, nas megaempresas de conserva napolitanas que produzem a maior parte das caixinhas de extrato vendidas pelos supermercados europeus. As indústrias de “processamento secundário” dos países escandinavos, da Europa Oriental, das Ilhas Britânicas ou da Provença também usam extrato importado como ingrediente de sua comida industrializada – ratatouille, pizza congelada, lasanha… Em outros lugares, o produto escuro e viscoso, misturado à sêmola ou ao arroz, entra em receitas populares e pratos tradicionais, do mafé à paella, passando pela chorba. O extrato de tomate é o produto industrial mais acessível da era capitalista: está na mesa dos restaurantes da moda em San Francisco e nas barracas das aldeias mais pobres da África, onde às vezes é vendido às colheradas, como no norte de Gana (ler na próxima página), pelo equivalente a alguns centavos de euro.
Toda a humanidade come tomate industrial. Em 2016, 38 milhões de toneladas desse fruto,2 cerca de um quarto da produção total, foram transformados ou colocados em conserva. No ano anterior, cada habitante do planeta tinha ingerido, em média, 5,2 quilos de tomate processado.3 Ingrediente central tanto da junk food4 quanto da dieta mediterrânea, o tomate transcende clivagens culturais e alimentares. Ele não está sujeito a nenhuma interdição. As “civilizações do trigo, do arroz e do milho”, descritas pelo historiador Fernand Braudel, hoje deram lugar a uma única e mesma civilização do tomate.
Ao pressionar o frasco Heinz para cobrir suas batatas com mais um pouco de ketchup, produzindo o ruído característico que bilhões de ouvidos aprenderam a reconhecer desde a infância, Rufer certamente não está pensando na composição do molho nem em sua história turbulenta. Se, apesar da cor vermelha, o “ketchup de tomate” não tem gosto de tomate, é porque o teor do vegetal no molho varia entre 30% e… 6%, dependendo do fabricante, para 25% de açúcar, em média. Nos Estados Unidos, usa-se xarope de milho (transgênico, majoritariamente). Colocada na berlinda da epidemia de obesidade que atinge o país, onipresente na alimentação industrial dos norte-americanos, essa “glucose-frutose” é mais barata que açúcar de cana ou de beterraba. Turbinados com amido modificado, espessantes e gelificantes, como a goma xantana (E415) e a goma guar (E412), os piores ketchups representam o ápice de um século de “progresso” agroalimentar.
SÍMBOLO DO FUTURISMO
Nas fábricas de Rufer, como em todas as instalações de processamento do globo, o grosso da tecnologia vem da Itália. Nascida no século XIX na Emilia-Romagna, a indústria do tomate se expandiu pelo mundo. Por meio da emigração, no final do século XIX, milhões de italianos difundiram o uso culinário do tomate processado e estimularam as exportações de conservas tricolores para a Argentina, o Brasil e os Estados Unidos. Na Itália, durante o período fascista, a lata de metal simbolizava a “revolução cultural” inspirada pelo futurismo, exaltador da civilização urbana, das máquinas e da guerra. O tomate enlatado, alimento do “homem novo”, conjugava engenho científico, produção industrial e conservação do que havia sido cultivado na terra natal. Em 1940, foi realizada em Parma a primeira “Exposição autárquica de latas e embalagens de conserva”, evento que encheu de orgulho os hierarcas do regime. A capa do catálogo mostrava uma lata de conserva com as letras “AUTARCHIA”. A autarquia verde, via econômica seguida pelo fascismo, racionalizou e desenvolveu a indústria vermelha. “Hoje, dois alimentos globalizados da comida rápida, a massa e a pizza, contêm tomate. Isso é, em parte, herança dessa indústria estruturada, desenvolvida, incentivada e financiada pelo regime fascista”, destaca o historiador da gastronomia Alberto Capatti.
Surgidos no século XIX nos Estados Unidos, a lata de sopa Campbell e o frasco vermelho octogonal da Heinz – do qual se vendem anualmente 650 milhões de unidades em todo o mundo – competem com a garrafa de Coca-Cola como símbolo do capitalismo. Fato pouco conhecido, essas duas mercadorias precederam o automóvel na história da produção em massa. Antes que Ford colocasse carros na linha de montagem, as fábricas da Heinz em Pittsburgh, na Pensilvânia, já produziam conservas de feijão e molho de tomate em linhas de produção nas quais algumas tarefas, como o fechamento das latas, eram automatizadas. Fotografias de 1904 mostram operários com uniforme da Heinz trabalhando em linhas de produção: os frascos de ketchup deslocam-se em um trilho. Um ano depois, Heinz vendeu 1 milhão de frascos de ketchup. Em 1910, produziu 40 milhões de latas de conserva e 20 milhões de frascos de vidro. A empresa era a mais importante transnacional norte-americana.5
Na esteira da onda liberal da década de 1980 e graças à invenção das embalagens assépticas (tratadas para evitar o crescimento de micro-organismos), que abriram caminho para o fluxo intercontinental de produtos alimentares, gigantes agroalimentares, como a Heinz e a Unilever, foram gradualmente terceirizando as atividades de processamento de tomate. As multinacionais do ketchup, da sopa e da pizza passaram a se abastecer diretamente junto aos “processadores primários”, capazes de fornecer extrato industrial muito barato e em grande quantidade. Na Califórnia, na China e na Itália, alguns mastodontes processam sozinhos metade do tomate industrializado do planeta. “Embora a Holanda seja o maior exportador de molho de tomate e ketchup da Europa, sobretudo por causa da instalação de uma indústria gigantesca da Heinz, ela não processa tomate”, esclarece o comerciante uruguaio Juan José Amézaga. “Todo o extrato utilizado nos molhos exportados pela Holanda e pela Alemanha é produzido com importações de várias partes do mundo. Os fornecedores podem estar na Califórnia, na Europa ou na China. Isso varia, dependendo da época do ano, da taxa de câmbio, dos estoques e das colheitas.”
Maior produtor mundial de extrato de tomate, a Califórnia tem apenas doze indústrias de processamento. Todas são titânicas. Elas abastecem sozinhas quase todo o mercado interno norte-americano, além de exportar para a Europa um extrato às vezes mais barato que o italiano ou o espanhol. Ao contrário do “tomate de mesa”, destinado ao mercado de produtos frescos, as variedades arbustivas de “tomate industrial” não precisam de cuidados. Como o sol fornece energia abundante e gratuita, elas crescem exclusivamente em campo aberto, ao contrário das culturas de estufa que alimentam as feiras ao longo do ano. Na Califórnia, as colheitas às vezes se iniciam na primavera e terminam, como na Provença, no outono.
“Melhorados” desde os anos 1960 por geneticistas, os tomates da agroindústria são projetados desde o início para facilitar o processamento futuro. A ciência que orienta a organização do trabalho também interfere a montante, no coração do produto. A introdução de um gene, por exemplo, ajudou a acelerar a colheita manual e tornou possível a colheita mecânica. Todos os frutos do mercado mundial saem do talo com um simples chacoalhão. Embora hoje os tomates industriais do mercado mundial sejam principalmente variedades “híbridas”, o purê de tomate entrou para a história como o primeiro alimento transgênico vendido na Europa.6
Com sua pele grossa que estala no dente, o tomate industrial suporta os solavancos das viagens de caminhão e a manipulação brutal das máquinas. Mesmo no fundo da carroceria de um caminhão cheio de tomates, ele não estoura. As grandes empresas de sementes cuidaram para que ele contenha a menor quantidade de água possível, ao contrário das variedades de supermercado, aquosas e, por isso, inadequadas para a produção de extrato. A indústria vermelha se resume, no fundo, a um ciclo hídrico perpétuo e absurdo: de um lado, campos fortemente irrigados em áreas onde a água é escassa, como a Califórnia; de outro, transporte dos frutos vermelhos até fábricas para evaporar a água neles contida a fim de produzir uma pasta rica em matéria seca.
*Jean-Baptiste Malet, jornalista, é autor de L’Empire de l’or rouge. Enquête mondiale sur la tomate d’industrie [O Império do Ouro Vermelho. Pesquisa mundial sobre o tomate industrial], Fayard, Paris, 2017.
1 Rufer deu US$ 1 bilhão à campanha de Gary Johnson, candidato libertário que ficou em terceiro lugar na eleição presidencial dos Estados Unidos de 2016, com 4,4 milhões de votos – 3,29% do total.
2 Para os botânicos, o tomate é uma fruta. Para as alfândegas, é um legume.
3 Tomate News, Suresnes, dez. 2016.
4 Ler Aurel e Pierre Daum, “Et pour quelques tomates de plus” [Por alguns tomates a mais], Le Monde Diplomatique, mar. 2010.
5 Quentin R. Skrabec, H. J. Heinz: A Biography [H. J. Heinz: uma biografia], McFarland & Company, Jefferson (Carolina do Norte), 2009.
6 De fevereiro de 1996 a julho de 1999, a cadeia de supermercados Sainsbury’s comercializou no Reino Unido latas de purê de tomate transgênico vendidas a baixo custo e promovidas por uma comunicação agressiva. A operação foi interrompida durante a “crise da vaca louca”.
(Publicado originalmente no Jornal Le Monde Diplomatique)
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quarta-feira, 9 de agosto de 2017
Professor da UFMG é criticado por tarefa considerada racista em curso de Arquitetura
Helô D'Angelo

Detalhe da arte de Cícero Dias baseado no esboço de Gilberto Freyre para a capa de 'Casa-Grande e Senzala' (Reprodução)
Um projeto de Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) se tornou tema de debate entre alunos do curso de Arquitetura. O trabalho, previsto como atividade opcional para o segundo semestre de 2017, pede que os estudantes projetem uma casa de luxo de 800 metros quadrados com separação para área de empregados.O professor da disciplina em questão, Otávio Curtiss, chamou a atividade de “Casa Grande”.
Em resposta, alunos do Diretório Acadêmico da Escola de Arquitetura (DAEA) publicaram uma nota de repúdio, em que ressaltam o teor racista da atividade. “Após 129 anos da abolição da escravidão no Brasil, a estrutura escravocrata ainda segue presente no cotidiano brasileiro. Como discutido em diversas disciplinas na EAD-UFMG, o quarto de empregada, por exemplo, tem como origem a segregação escravista”, afirmam, no texto. “O programa da disciplina, agravado pelo nome, explicitamente fere e desrespeita estudantes que, em diferentes níveis, conseguem subverter a ordem escravista ainda existente no Brasil.”
Joice Berth, arquiteta e urbanista especialista em direito à cidade, apoia o protesto dos estudantes. “A arquitetura é uma profissão que trabalha símbolos. Em pleno 2017 um professor trazer a simbologia do período escravista, em vez de propor novas soluções, é descaradamente racista.”
O arquiteto Álvaro Puntoni, professor da FAU-USP e da Escola da Cidade, diz que a questão deve ser vista com cuidado. Ele concorda que o nome “Casa Grande” foi “uma escolha infeliz”, mas se pergunta se a ideia do professor não foi justamente motivar alguma crítica por parte dos alunos: “Esse exercício pode ter dois lados: ou ele pode ensinar uma visão conservadora, ou pode provocar uma crítica. Fico feliz que os alunos tenham criticado”.
Procurado pela reportagem da CULT, o professor Otávio Curtiss não respondeu ao pedido de entrevista. Ao jornal O Globo, ele afirmou: “Não tenho interesse em entrar nessa questão. Os alunos não são obrigados a cursar essa disciplina para obterem o grau de arquitetos”.
Ainda que tenha preferido dar o benefício da dúvida a Curtiss, Puntoni vê com maus olhos o que chama de “separação da vida e do serviço” na arquitetura: “Essa divisão, que nasceu nas casas coloniais, é muito retrógrada, mas continua sendo reproduzida mesmo em apartamentos de 50 metros quadrados que hoje dominam a cidade por causa do boom imobiliário”.
“Esconder” a área de serviço, segundo o professor, sequer faz sentido arquitetônico: “Por que você colocaria a área de limpeza perto do lugar onde se come e onde se convive, que é a cozinha?”. Ele lembra que a cozinha, desde o surgimento do conceito de casa como o lugar onde se vive, sempre foi o centro da vida de uma residência, onde a maior parte das decisões e das ações importantes aconteciam – e continuam acontecendo, em boa parte dos lares. “O próprio termo ‘lar’ vem do latim ‘lare’, que significa ‘a parte da cozinha onde se acende o fogo’”, diz.
Em outros países, como a Holanda e os Estados Unidos, a “área de serviço” geralmente fica próxima ou mesmo dentro do banheiro, por pura praticidade. No Brasil, apartamentos do edifício Copan seguem esse tipo de organização espacial. “Aqui, essa vontade de dividir e de esconder os locais de tarefas domésticas tem a ver com a desvalorização deste trabalho. É um reflexo da vontade dos patrões de não ver os empregados ou a forma pela qual as tarefas de casa são feitas, como na época da escravidão”, diz o professor.
Berth concorda: “Nossa mentalidade está atrelada ao período escravagista. A empregada hoje é cozinheira, babá, faxineira, passadeira e ainda por cima dorme no emprego, em um quartinho minúsculo e separado do resto da casa. Ela é praticamente uma escrava. Fora daqui, não existe essa desvalorização: a jornada de trabalho doméstico e o salário são compatíveis aos de qualquer outro trabalhador. Por isso, lá fora não tem porque haver essa separação”.
Apesar da divisão entre entre área íntima e de serviço ser comum até hoje nas casas brasileiras, tanto Berth quanto Puntoni afirmam que essa concepção espacial vem perdendo espaço nos cursos de arquitetura no Brasil. “Em diversas universidades, a preocupação geralmente é oposta: acessibilidade, inserção social, modernização. Eu mesma tive que fazer como primeiro projeto uma casa com acessibilidade para uma família com um deficiente visual”, lembra Berth.
Em nota publicada ontem (1), a Câmara Departamental do Departamento de Projetos da Escola de Arquitetura afirmou que vê com legitimidade o protesto dos alunos. O órgão disse também que a disciplina será revista – sem que isso afete o currículo dos alunos que haviam se inscrito na atividade -, e comprometeu-se a, no futuro, propor mais debates e “aprimorar os processos de aprovação da oferta das disciplinas, tornando-os ainda mais criteriosos”.
Ainda de acordo com a nota, o professor Curtiss disse que não foi sua intenção reproduzir o racismo. A Câmara Departamental pediu desculpas a “todos que se sentiram ofendidos no desenrolar desse
episódio”.
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
Editorial: Haddad: Surge o "novo" do PT
Nos próximos dias, Recife deverá receber a visita do ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad. Haddad deverá cumprir uma extensa agenda na capital pernambucana, como palestras na UFPE e UNICAP, encontros com membros do partido e até uma audiência no Palácio do Campo das Princesas está na programação. Confesso que ficamos um pouco surpreso com está última pauta, mas ela deve estar conjugada com a ideia de Lula em recriar a Frente Brasil Popular, integrando o PSB no conjunto de partidos da coalizão. Com um destino incerto em razão da condenação no curso das ações da Operação Lava Jato, Lula aconselhou ao amigo cair em campo, constituindo-se numa opção, caso ele torne-se inelegível, hoje uma possibilidade bem concreta.
Haddad é um quadro limpo do PT. Limpo e competente. Quando as principais lideranças do PT estiveram envolvidos em corrupção na máquina pública, Lula tratou de renovar os quadros do partido com nomes como o de Fernando Haddad. A princípio, a preocupação seria a de formar aquele "cinturão" eleitoral que o governador Geraldo Alckmin(PSDB) conseguiu montar nas últimas eleições municipais, conquistando algumas cidades paulistas com mais de um milhão de eleitores, algo nada desprezível para potenciais candidatos à Presidência da República. Como se sabe, à exceção de São Paulo, Lula não foi muito feliz nessa empreitada. Reduto da plutocracia paulista/tucana, Haddad não teve sossego em sua gestão, mas conseguiu alguns êxitos que foram reconhecidos até no exterior.
A passagem do professor Fernando Haddad pelo MEC foi uma das mais avançadas em termos de conquistas que visavam atender às demandas dos estratos sociais mais fragilizados. É de sua gestão o maior programa de inserção de jovens empobrecidos no circuito acadêmico. De acordo com pesquisa realizada pela Fundação Joaquim Nabuco, 83% desses jovens são oriundos de famílias cujos pais não tiveram acesso ao ensino superior. Como sempre afirmo, num país que, historicamente, nunca reconheceu o direito de cidadania dos menos favorecidos, uma verdadeira revolução. Em sua gestão na Prefeitura de São Paulo, a "marca" Haddad também ficaria evidenciada, como no programa de assistência e integração dos dependentes de crack; nas "cotas' à rapaziada LGBTT no programa Minha Casa, Minha Vida; na correção dos valores do IPTU, sobretaxando os mais ricos; na democratização do uso do espaço físico da Avenida Paulista.
O ex-prefeito também aproveitará o momento para um encontro com a militância mais ligada à vereadora Marília Arraes(PT), hoje uma potencial candidata do partido às eleições estaduais de 2018. Não acreditamos muito que prospere essa articulação com o PSB. Faz mais sentido o PT caminhar para uma candidatura própria. Aqui e alhures, como se sabe, as coisas não são assim tão simples para o PT, depois da intensa campanha de desgaste de imagem que sofreu a agremiação. Não é tão simples recuperar-se dessa refrega. Muito menos com nomes "saturados" pelo eleitorado. Marília talvez proporcione aquela "oxigenação" que o partido precisa. Não seria de bom alvitre continuar a reboque do Palácio do Campo das Princesas, assim como ocorria num passado recente.
terça-feira, 8 de agosto de 2017
O xadrez político das eleições estaduais de 2018, em Pernambuco: Os Queiroz na Conspiração Macambirense
José Luiz Gomes da Silva
Cientista Político
Os 'cozidos' não necessariamente fazem muito bem à saúde política do governador Paulo Câmara. Já sob os efeitos do estreitamento da aliança com o PMDB do Deputado Federal Jarbas Vasconcelos, nas últimas eleições municipais, o Palácio do Campo das Princesas resolveu apostar suas fichas na candidatura do Deputado Estadual Tony Gel(PMDB), em Caruaru, no segundo turno daquelas eleições. Como se sabe, a Princesa do Agreste possui um dos colégios eleitorais mais importantes do Estado. A engenharia política ali montada não foi tão simples, como, de fato, quase nunca são nas eleições do município.Havia ali um conjunto de interesses difíceis de conciliar, mas, de acordo com algumas avaliações, as decisões do Palácio do Campo das Princesas, naquele contexto específico, não teriam sido das mais acertadas.
Retiram o comando do PSB local do grupo Lyra - o que provocou a candidatura vitoriosa de sua filha, Raquel Lyra, pela legenda tucana, migração partidária ocorrida ao apagar das luzes do prazo final estipulado pela Justiça Eleitoral - apoiaram formalmente o nome de Jorge Gomes(PSB), que era um velho militante socialista, mas ele não esteve bem, não chegando ao segundo turno. Aliás, naquela cidade, o Governo Paulo Câmara, na realidade, pode contabilizar uma grande refrega política, uma vez que ali começou a se armar uma espécie de união das forças de oposição ao governo, denominado por este editor de Conspiração Macambirense, que hoje já reúne um conjunto de partidos e atores políticos cuja densidade eleitoral não pode ser desconsiderada. Hoje, o principal postulante oposicionista, Senador Armando Monteiro, compõe este grupo.
Essa "Conspiração", como afirmamos,já reúne uma série de partidos e atores políticos dispostos a medirem forças com o Palácio do Campo das Princesas nas próximas eleições estaduais. O nome é uma referência à famosa fazenda Macambira, da família Lyra, um verdadeiro termômetro político do Estado de Pernambuco. Junta-se agora a este grupo a família Queiroz, uma das principais forças políticas daquele município. Como eles vão se arranjar em termos de candidatura ainda é um incógnita, mas já desponta no horizonte ao menos dois candidatos: o senador Armando Monteiro, do PTB, e uma possível candidatura da vereadora Marília Arraes, pelo PT. Mantidas essas candidaturas, a previsão é a de que as eleições estaduais do próximo ano seja decidida no segundo turno. Pela "disposição" do grupo, há espaço até para mais candidaturas, como Bruno Araújo(PSDB) e o ministro da Educação, Mendonça Filho, do DEM. Embora haja um bom trânsito político entre a vereadora e o senador Armando Monteiro(PTB), o que nos parece é que, se persistir nessa candidatura, o PT esboça um novo recomeço, depois da infeliz política de aliança com o ex-governador Eduardo Campos.
Recentemente, num encontro em Caruaru, o governador Paulo Câmara(PSB) ouviu da jovem prefeita Raquel Lyra(PSDB) um pedido de maior atenção à segurança pública, um gargalo gerencial de tamanho descomunal, uma vez que atinge a população de forma nevrálgica, inclusive naquela cidade, hoje uma das mais violentas do Estado. Há registros diários de assaltos bancos ou explosões de caixas eletrônicos; assaltos a coletivos a uma média de 15 por dia; além das taxas de homicídios e feminicídios que atingiram níveis escandalosos, de países conflagrados por guerras civis. De acordo com os últimos levantamentos a taxa de CVLI já chega aos 16 por dia. É um fato que, pelo menos no último mês, essa taxa parece indicar uma tendência de queda, mas, ainda assim, subiu a patamares muito alto.
O Governo do Estado tem investido muito em logística. Ainda ontem foram anunciadas a aquisição de viaturas e orçado um determinado valor que deve ser investido em segurança pelos próximos anos. Pelo andar da carruagem os investimentos em logística - como armamentos, viaturas e efetivos - não estão surtindo os efeitos esperados. Dá próxima vez é chegado o momento de o Governo do Estado abrir uma licitação para adquirir lanchas, uma vez que os bandidos agora adotaram essa modalidade de fuga. Seria prudente continuar concentrando esforços na área de inteligência.
Esse gargalo sem solução da segurança pública deve estar trazendo muitas dores de cabeça ao governador Paulo Câmara. Ele tem aqui um flanco aberto, passível de exploração pela oposição durante a campanha. Aliás, ele já vem sendo duramente atacado pela oposição, em razão de não reduzir os índices de violência. De acordo com levantamento do Jornal Folha de São Paulo, retroagimos aqui há uns dez anos atrás, quando foi criado o Pacto pela Vida, quando esses índices diminuíram sensivelmente, tirando o Estado da condição de um dos mais violentos do país. Com uma base interiorana bastante adubada - ainda dos tempos da Eduardolização da política pernambucana - Paulo aferra-se a este dado para continuar como inquilino do Campo das Princesas, pelos próximos anos. Há indicadores, no entanto, que apontam que essas próximas eleições estaduais podem ser decidida na região metropolitana do Recife, onde o jogo hoje é bastante equilibrado entre situação e oposição.
Jovem e com sangue nos olhos - como se diz no sertão - a neta do ex-governador Miguel Arraes deverá, no mínimo, levar essas eleições para um segundo turno. Como o PT continua com os seu perfil de dubiedade, o ex-prefeito do Recife, João Paulo(PT), manteve um encontro com o governador Paulo Câmara, que começou no Buraco Negro da Alepe e terminou no Campo das Princesas. A conjuntura do partido no plano nacional não é das melhores e, aqui, então, as coisas são ainda mais complicadas. A eventualidade de uma retomada da aliança PT e PSB foi aventada por Lula, que propôs uma costura política no sentido de recriar a Frente Brasil Popular. Como se sabe, Lula é hoje um ator político bastante enredado nas investigações da Operação Lava Jato, tendo, portanto, um futuro político incerto, pois este parece ser mesmo o fulcro da estratégia de setores da elite econômica que tomou o poder no país.
Alguém lembrou o nome do Ministro das Minas e Energias do Governo Temer, Fernando Filho(PSB) para compor a chapa governista que deverá disputar as eleições do próximo ano. A lembrança foi para a vice, uma vez Raul Henry (PMDB)deverá disputar uma vaga de deputado, em razão da consolidação do nome do padrinho político Jarbas Vasconcelos(PMDB para a disputa de uma das vagas ao Senado Federal. Talvez tenha chegado o momento do Campo das Princesas fazer um bom afago a esta ala dos Coelhos. De há muito que eles se queixam do tratamento recebido pelas lideranças socialistas do Estado, e esboçam uma dissidência dentro do grêmio partidário, conjugada à possibilidade de migração para outras legendas, respingando no contexto das disputas locais de 2018, como o assédio que eles estão sofrendo de lideranças do DEM, que tem todo o interesse na disputa estadual.
P.S.: Contexto Político: Um fonte informou ao editor do blog que o ministro da Educação, Mendonça Filho(DEM), poderia se candidatar a uma das vagas ao Senado Federal. Não soube informar por qual coalizão ele se candidataria. Comenta-se, igualmente, que a indisposição dos Coelhos com o Palácio do Campo das Princesas é maior do que se imagina. É um poço até aqui de mágoas. Nem mesmo o aceno com a possibilidade de o atual ministro das Minas e Energias, Fernando Filho(PSB), ser indicado para compor a chapa governista seria suficiente para superá-la. Vamos acompanhar os acontecimentos.
P.S.: Contexto Político: Um fonte informou ao editor do blog que o ministro da Educação, Mendonça Filho(DEM), poderia se candidatar a uma das vagas ao Senado Federal. Não soube informar por qual coalizão ele se candidataria. Comenta-se, igualmente, que a indisposição dos Coelhos com o Palácio do Campo das Princesas é maior do que se imagina. É um poço até aqui de mágoas. Nem mesmo o aceno com a possibilidade de o atual ministro das Minas e Energias, Fernando Filho(PSB), ser indicado para compor a chapa governista seria suficiente para superá-la. Vamos acompanhar os acontecimentos.
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