pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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terça-feira, 5 de março de 2019

Le Monde Diplomatique: Perguntas sem respostas: A guerra no Iraque e a possível guerra na Venezuela

Até hoje não se comprovou os motivos divulgados para justificar a guerra no Iraque. Isto é, não existia armas de destruição em massa, nem ligação com a Al-Qaeda.
A Guerra no Iraque, iniciada em 2003, foi precedida por uma intensa campanha midiática mundial. Os principais argumentos foram: 1) Saddam Hussein era um ditador que oprimia seu povo; 2) possuía armas de destruição em massa; 3) apoiava a Al-quaeda. Assim, o objetivo declarado do governo de Georg W. Bush para desencadear a guerra foi bastante convincente: “levar a democracia, a liberdade e a paz para o povo iraquiano, livrando-o do seu ditador”. Segundo a BBC[1], estima-se que 654.965 pessoas morreram no conflito em decorrência da generosidade e altruísmo do governo estadunidense. O massacre dos povos curdos e sunitas no Iraque movimentou a indústria armamentista dos EUA, principal financiadora da campanha eleitoral do então presidente, Bush. Foram $801,9 bilhões de dólares movimentados com a guerra. O Iraque foi destruído e continua até hoje em guerra civil. Um raro governo laico no mundo árabe e praticamente sem analfabetos foi destruído pelas armas em função de dois motivos principais: 1) disputa pelo controle do mercado mundial de petróleo; 2) movimentação da indústria armamentista. Ambos possuem lobby espetacular nos EUA e no mundo, subordinando seus governos aos seus interesses. Por fim, até hoje não se comprovou os motivos divulgados para justificar a guerra. Isto é, não existia armas de destruição em massa, nem ligação com a Al-Qaeda. Sem dúvida, Saddam era um ditador e ficou no poder entre 1979 e 2003, mas ditadores assim existem vários pelo mundo. Por que só essa ditadura incomodava? Vale a pena matar tanta gente e destruir um país inteiro para retirar um “ditador”?
A Guerra da Venezuela com a possível intervenção dos EUA e aliados tem alguns elementos muito parecidos com a do Iraque: 1) Donald Trump, tal como G. Bush, é um representante direto do lobby da indústria armamentista e das empresas de petróleo; 2) A Venezuela é um dos maiores produtores de petróleo do mundo, tal como o Iraque; 3) o governo de Chávez ao reestatizar a PDVSA (Petróleos de Venezuela) retirou o controle das empresas americanas dos hidrocarbonetos do país, diminuindo seus exorbitantes lucros. Os EUA também não tinham ingerência nas empresas petrolíferas do Iraque antes de ganhar o combate; 4) a crise da economia capitalista mundial e em particular dos EUA necessita de uma guerra para movimentar suas indústrias armamentistas, aumentando emprego e o lucro de seus donos. Não importa que essas vantagens sejam conquistadas em cima de milhões de cadáveres.
A Venezuela passa por uma profunda crise econômica fruto da brutal queda do preço do petróleo no mercado mundial que é dominado pelos governantes dos EUA e pela sangrenta ditadura da Arábia Saudita (aliada de primeira hora de Washington). Os governantes econômicos e políticos dos EUA desencadeiam um profundo boicote à economia venezuelana, decidindo não pagar pelo petróleo “comprado”. Além disso, internamente, todos os capitalistas na Venezuela fazem tudo o possível para boicotar a economia. A inflação está em patamares absurdos e existem pessoas sem emprego e em situação de miserabilidade. Neste contexto, o governo dos EUA, do Brasil e da Colômbia resolveram levar “ajuda humanitária” para os venezuelanos.
É necessário fazermos um simples exercício filosófico e estabelecermos algumas perguntas não respondidas, que devem começar assim: 1) existe algum outro país no mundo com milhares de miseráveis, necessitando de ajuda humanitária?; 2) com números enormes de desempregados?; 3) com repressão policial sobre seus opositores?
A população da Venezuela é de aproximadamente 31 milhões de pessoas e em torno de 48% da população vive atualmente em situação de pobreza, aproximadamente 16 milhões de pessoas.[2]
Só para ajudar a refrescar nossa memória. No Brasil, no último censo do IBGE em 2016, 52,7 milhões de pessoas viviam em situação de pobreza.[3] Destes, 14,8 milhões viviam em plena miséria.[4] Em 2018, aproximadamente 27,7 milhões de brasileiros estavam desempregados,[5] sem contar os subempregados, com trabalho precário etc.
Como resultado desses dados com base no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) realizada pela ONU, em 2018, a Venezuela ficou exatamente na frente do Brasil em 78º lugar e ainda ficou 12 posições na frente da Colômbia.[6] Isto é, na média nacional vive-se melhor na Venezuela do que no Brasil e na Colômbia. A pergunta não respondida é simples: como países com maior número de pessoas mais pobres e miseráveis se propõem a enviar “ajuda humanitária” para um país onde a população vive nas mesmas condições ou mesmo melhor? Sobre a vida na Colômbia, os brasileiros sabem pouco. Mas convido-os a pensar se aqui no Brasil existem pessoas com necessidades e passíveis de receberem “ajuda humanitária” do governo federal? As perguntas sem respostas prosseguem:
1) os medicamentos e produtos de primeira necessidade levados pelo governo brasileiro para distribuição na Venezuela existem em abundância nos hospitais públicos do nosso país?
2) os alimentos distribuídos na fronteira seriam bem-vindos para 14,8 milhões de brasileiros que vivem em plena miséria hoje?
3) existe algum outro país no mundo que também precisaria de ajuda humanitária, ou a Venezuela é o único país nessa condição?
4) se existem outros países em situação de miséria, por que os EUA e seus aliados não se mobilizam para levar “ajuda humanitária” para os bilhões de habitantes da terra que vivem na miséria atualmente?
5) existem governos ditatoriais pelo resto do mundo que precisariam ser criticados pela grande mídia ou a Venezuela está nesse cenário sozinha?
6) Nicolás Maduro foi eleito pela maioria dos votantes na Venezuela; depois a maioria dos votantes votou na oposição para as eleições do Congresso. A pergunta não respondida é: por que a grande mídia diz que a eleição do Maduro foi fraudulenta, mas não questiona a vitória eleitoral da oposição para o parlamento? Por que o grupo do Maduro fraudaria uma eleição e não fraudaria outra?
7) as manifestações pró-Maduro levam milhares de simpatizantes às ruas da Venezuela.[7] Por que a grande mídia mundial não publiciza essas manifestações e só mostra as da oposição, que normalmente levam menos pessoas às ruas?
8) por que para a grande mídia mundial os manifestantes mascarados na Venezuela que enfrentam as forças policias são tidos como heróis, enquanto os manifestantes mascarados no Brasil, na Colômbia e nos EUA são tidos como vândalos e antidemocráticos?

No último mês ocorreu a tragédia de Brumadinho, a tempestade no Rio de Janeiro e a tragédia no Clube do Flamengo com mortes de adolescentes. Nada disso foi resolvido até hoje. Sem dúvida são crises/tragédias sociais, mas não assistimos o governo levar ajuda humanitária com alimentação, proposta de moradia etc. Há uma crise profunda nos hospitais públicos brasileiros superlotados e carecendo de leitos, medicamentos, macas e até seringas. Enquanto o Brasil não resolver seus próprios problemas, oferecer uma “ajuda humanitária” não tem qualquer fundamento no real. Se os governantes brasileiros, estadunidenses e colombianos quisessem realmente ajudar os miseráveis da Venezuela teriam que seguir outro caminho que não o de confrontação com o seu governo eleito. O governo venezuelano, depois do boicote da sua economia pelo governo dos EUA, criou os Comitês locais de abastecimento e produção (CLAP) que distribuem toneladas de comida toda semana para a população mais pobre. 68% da população recebe o referido apoio.[8]
Por fim, nem toda “ajuda humanitária” tem o objetivo que seus hipócritas defensores apresentam. Pelo controle do petróleo e para movimentar a indústria armamentista vale tudo, inclusive matar milhões de inocentes. Estamos diante de um grande e inusitado paradoxo: uma “ajuda humanitária” que na verdade almeja a guerra.
*Wallace de Moraes é Professor do Departamento de Ciência Política da UFRJ. É autor do livro “Governados por Quem? Diferentes plutocracias nas histórias políticas de Brasil e Venezuela” Kindle, Amazon. (2018).
[1]Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2011/12/111215_eua_iraque_numeros_fn, acessado em 24 de fevereiro de 2019.
[2] Disponível em https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2018/11/30/pesquisa-aponta-que-48-da-populacao-da-venezuela-vive-em-condicao-de-pobreza.htm, acessado em 24 de fevereiro de 2019.
[3] De acordo com o critério adotado pelo Banco Mundial, que considera pobre quem ganha menos do que US$ 5,5 por dia nos países em desenvolvimento. Esse valor equivale a uma renda domiciliar per capita de mais ou menos R$ 350,00 por mês, ao considerar a conversão pela paridade de poder de compra em agosto de 2018. Fonte: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/18825-um-quarto-da-populacao-vive-com-menos-de-r-387-por-mes.html, acessado em 29 de agosto de 2018.
[4] Dados de 2017. Fonte: https://www.valor.com.br/brasil/5446455/pobreza-extrema-aumenta-11-e-atinge-148-milhoes-de-pessoas, acessado em 29 de agosto de 2018.
[5] Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/05/falta-trabalho-para-277-milhoes-de-pessoas-diz-ibge.shtml, acessado em 29 de agosto de 2018.
[6] IDH – pesquisa realizada pela ONU que inclui todos os países do mundo e afere três principais questões: alfabetização; expectativa de vida; e renda da população. https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2018/09/14/idh-2018-brasil-ocupa-a-79-posicao-veja-a-lista-completa.htm
[7] Ver discurso de Maduro para milhares de apoiadores em 23 de fevereiro de 2019. https://videos.telesurtv.net/video/766158/nicolas-maduro-el-golpe-de-estado-ha-fracasado/

[8] Fonte: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2018/11/30/pesquisa-aponta-que-48-da-populacao-da-venezuela-vive-em-condicao-de-pobreza.htm, acessado em 29 de agosto de 2018.


segunda-feira, 4 de março de 2019

Crônica: Doenças do mundo

 
 
 
 
 
José Luiz Gomes
 
 
 
Fazia algum tempo que não ia ao Mercado de São José, localizada no bairro do mesmo nome, no coração do Recife. Neste sábado, no entanto, depois de uma nova releitura do Menino de Engenho, do escritor paraibano José Lins do Rego, não contive a ansiedade de conhecer de perto algumas plantas medicinais abundantemente citadas no romance. Quem sabe, talvez apenas um pretexto para saborear aqueles pratos deliciosos da culinária pernambucana, que ali são servidos aos visitantes, como o sarapatel, a buchada, a galinha caipira à cabidela, entre outras iguarias.
 
No texto de Zé Lins ha várias plantas indicadas para o tratamento de doenças do mundo ou doenças venéreas. Neto do coronel Zé Paulino - cuja família possuía 19 engenhos na época do apogeu da economia da cana-de-açúcar na região, Carlinhos, ainda assim, não deve ter alcançado os tratamentos medicinais mais atualizados contra a doença. Era submetido aos tratamentos caseiros, derivados da experiência popular. O moleque Ricardo, que contraiu a moléstia na mesma época, ficou entrevado numa rede, tomando garrafadas de barbatimão com cachaça. A dele foi pior, uma gonorréia de cabresto - como se dizia - do tipo mais grave.
 
Carlinhos contraiu a doença aos doze anos de idade, depois de passar as manhãs, tardes e noites socado na casa de Zefa Cajá, apenas com ligeiros intervalos para as refeições. Cabrito dos bons, foi iniciado logo cedo nas coisas mundanas. Como todos sabem, o Mercado de São José era o reduto do folclorista e estudioso da cultura popular, Liedo Maranhão, que ganhou uma estátua em sua homenagem, numa pracinha local. Liedo escreveu vários livros sobre a cultura popular, alguns deles hoje raros, tratando dos mais diversos assuntos, como a linguagem dos camelôs, a cura pelas ervas medicinais, a literatura de cordel. Em sua passagem pelo Recife, o cineasta Orson Welles foi ciceroneado pelo folclorista pernambucano, que mostrou ao diretor de Cidadão Kane, os nossos "inferninhos".

Veneza, Agamben

                                          
Cláudio Oliveira (arquivo)
                                                                                                                                                                 

Veneza, Agamben                 


Agamben em sua casa, em Veneza, 2007 (Foto: Cláudio Oliveira)

Estou em Veneza, onde vim encontrar Agamben. Tínhamos várias coisas para tratar. Semana passada não consegui publicar a coluna em função de vários trabalhos que tinha que realizar aqui. Como já o vi três vezes desde que cheguei, pensei em escrever algo sobre essa estadia de três semanas e sobre nosso reencontro, mas decidi fazer outra coisa: como Veneza e Agamben são de certo modo, para mim, uma coisa só (sempre vim a Veneza para encontrá-lo), decidi contar um pouco da minha primeira visita à cidade para visitá-lo, em 2007. Lembrei-me de ter escrito e publicado a história neste blog. O que vocês lerão a seguir são textos extraídos daí. Eles têm um frescor e uma inocência que me agradam, passados já quase dez anos, e por isso não os modifiquei. Seguem como foram publicados na época. Em 2007, eu ainda não era tradutor do Agamben e nem sonhava que viria a dirigir a série Filô Agamben da Autêntica. Mas a história que conto nesses textos, da minha busca por um ensaio inédito de Agamben sobre Lacan (da qual já falei anteriormente num artigo publicado na Folha de S.Paulo) parece ter chegado finalmente a seu fim. Falarei sobre isso, talvez, na próxima coluna. Adianto que foi um final feliz.
Dormir e acordar em Venezaescrito sexta-feira à noite, 27/07/2007
Estou agora no quarto do hotel. A janela do quarto dá para um lindo jardim interno, com o solo coberto de seixos. Ha casarões vizinhos, com lindas janelas e paredes de tijolo muito antigas que também dão para o jardim. Esta noite dormirei em Veneza. É quase um pecado dormir em Veneza. Mas é preciso dormir. Amanhã, acordarei em Veneza.
Café da manhã em Venezaescrito na manhã de sábado, 28/07/2007
Acordo em Veneza. O hotel é realmente muito bom, o café da manha é farto e ótimo. Ao entrar no salão de chá, uma senhora italiana muito distinta e muito enérgica, me pergunta: “Un cappuccino, signore?” Estou viciado nos cappuccini italianos. Após o café, vou fumar um cigarro no jardim externo do hotel. É um lindo jardim. Veneza é muito silenciosa. Nada do barulho do tráfego de Firenze. Há enormes poltronas em frente ao jardim, onde se pode sentar confortavelmente e onde escrevo essas linhas. No centro do jardim há uma bela fonte com uma escultura de algum deus marinho cercado de peixes monstruosos. Em torno da fonte há algumas mesas cobertas onde alguns hóspedes tomam seu café da manha. É bom estar aqui.
Não encontrando Agambenescrito no sábado, 28/07/2007
Depois de ter andado muito e de ter conhecido a Scuola Grande di San Rocco (onde pude ver muitos Tintorettos, inclusive sua impressionante “Crucificação”) e a Basílica de Santa Maria Gloriosa dei Frari (onde pude ver “A madona e o menino” de Bellini), estou agora num café em frente à Chiesa di S. Paolo. Comi um spaghetti ai frutti di mare que tinha mais frutti di mare que spaghetti. Fui também até a rua de Agamben que, creio, não está na cidade. Em Veneza não há nomes de ruas e o endereço é apenas um número. No caso de Agamben, 2366. Foi muito difícil encontrá-lo. É bem escondido. Fica numa rua em que podem passar apenas duas pessoas ao mesmo tempo, muito estreita. Acho que agora a tarde vou à Bienal, que fica em um lugar chamado I Giardini. Há uma estacão de Vaporetto lá.
Agamben em sua casa, em Veneza, 2007 (Foto: Cláudio Oliveira)

O primeiro encontro com Giorgio escrito no trem, de Veneza para Firenze, domingo, 29/07/2007
Aconteceram tantas coisas de ontem para hoje que não sei de quantas páginas precisarei para contá-las. Após voltar da Bienal, mas antes de ir para o Hotel, passei num ponto de internet para ver meus e-mails (três Euros por vinte minutos!). Quando abro minha caixa de mensagens, há uma mensagem do Agamben dizendo apenas: “Caro Cláudio, chiamami”, e me dá em seguida o número do seu telefone. Eu já não tinha mais esperanças de encontrá-lo. Tinha até deixado uma mensagem escrita em sua caixa de correio, dizendo que tinha estado em Veneza. Mas apenas para dizer que tinha estado ali. Não tive coragem de tocar a campainha. Se mesmo no Rio ninguém aparece sem antes telefonar, imaginem aqui na Itália, e na casa do Agamben. Bem, saí do cyber café correndo. Fui para o hotel e quando chego lá a recepcionista me diz que me tinha telefonado um senhor chamado Giorgio, que tinha deixado o número do seu telefone. Corro pro quarto, ligo para o número, chama, chama, ninguém atende. Tento outra vez. Uma terceira vez. Nada. Desisto. Cansado, vou tomar banho e penso: “Ele já deve ter saído”. Afinal, já são 19:30, embora ainda haja sol lá fora. Penso: “Quem sabe amanhã?” Mas antes de entrar no banho, o telefone do quarto toca. Atendo: “Pronto!” E alguém me diz do outro lado da linha: “Cláudio, sono Giorgio”. Conversamos em italiano. Ele briga comigo por eu ter deixado uma mensagem na caixa de correio dele e não ter tocado a campainha. Porque ele estava em casa naquele momento. Eu me desculpo. Marcamos de jantar num café próximo a Rialto. Mas é preciso que eu parta imediatamente porque em Veneza tudo fecha muito cedo. Não estou muito seguro das indicações que ele me deu ao telefone, porque falava em italiano e muito rápido, mas parto mesmo assim. Ao menos sei onde é Rialto. Não o encontro imediatamente. Houve alguma confusão entre “sinistra” e “destra”, porque eu vinha do outro lado do Grande Canal, já que peguei o Vaporetto, mas ele imaginava que eu viria a pé, e que, portanto, já estaria do lado de cá do Grande Canal, em S. Polo. Fico uma meia hora procurando-o entre os vários cafés à beira do Canal e não o encontro. Ele não me tinha dado nenhum nome para o Café, apenas a indicação de uma piazza em frente a uma igreja com um grande relógio. Começo a ficar triste. Fico imaginando que ele me esperaria, depois jantaria, e seguiria finalmente para casa, pensando: “Que brasileiro estúpido!” Até que tenho a genial ideia de seguir para a direita da ponte. E lá está ele, sentado num café, numa piazza, com dois estudantes, um dinamarquês e uma menina, mezzo belga, mezzo italiana.
Agamben e Andreas na casa do filósofo, em Veneza, 2007 (Foto: Cláudio Oliveira)

O primeiro encontro com Giorgio, continuação
Ele me recebe muito bem, com alegria. Briga comigo de novo por eu não ter tocado a campainha e me convida para sentar. Fala com a menina que serve a mesa para me trazer uma lasanha de peixe e uma taça do mesmo vinha branco que eles estavam tomando. Ele está muito alegre e jovial, bronzeado do sol do verão de Veneza. Conversamos um pouco, todos (o outro rapaz é estudante de Filosofia, estuda Hobbes, a garota estuda crítica de arte, ambos são alunos de Giorgio). Giorgio me convida para ir almoçar na casa dele, no dia seguinte, domingo. Deverá estar lá, também, seu tradutor alemão, que vem para tentar esclarecer suas ultimas dúvidas antes de mandar publicar sua tradução de O reino e a glória. Continuamos a conversar e quando eu termino de comer minha sobremesa, já que eles já tinham acabado de jantar há muito tempo, ele pede a conta, que insiste em pagar sozinho. Percebo, não sei bem por quê, que ele quer se livrar dos dois estudantes. Diz a eles, então, que nós vamos caminhar um pouco por Veneza. À noite, Veneza, mesmo no verão, fica praticamente vazia e pode-se caminhar por toda a cidade tranquilamente. Como o comércio e os restaurantes fecham muito cedo (no máximo às 22 horas, mas às 21h não aceitam mais nenhum pedido), os turistas vão dormir e só reaparecem no dia seguinte. Então a cidade se torna de novo a mesma que vem sendo há séculos, talvez a mais bela do mundo. Mesmo em minha primeira noite em Veneza, antes de ter encontrado Giorgio, caminhei sozinho pelas ruas e pontes da cidade até bem tarde da noite, e só voltei para o hotel após meia-noite. Mas na noite de ontem era sábado, e havia ainda, aqui e ali, alguns bares abertos. Giorgio me leva primeiro ao mercado de peixe, pelo qual eu já tinha passado durante o dia, mas que, àquela hora, estava deserto. Seguimos andando e no céu, de repente, surgindo entre os pallazzi de Veneza, vem até nós uma enorme lua cheia, muito amarelada. Belíssima. Ficamos um tempo admirando o luar de Veneza e seguimos. Lembro, então, a Giorgio que Henry James tinha escrito alguns de seus romances e contos em Veneza. Ele me diz que tinha acabado de ler uns dez livros de Henry James, um após o outro. Conversamos algum tempo sobre o autor, andando pelas ruas de Veneza, e eu confesso a ele que Henry James sempre foi um dos meus escritores preferidos. Ele concorda comigo que, numa estória em que os personagens agem sem saber ao certo o que está acontecendo, Henry James introduz esse narrador que vê tudo (o que ninguém vê) e que, ainda assim, não conta tudo (o que vê). Ele dá ao leitor o crédito de saber que não é preciso contar tudo. O leitor (ele acredita, ele espera) certamente sabe o que “falta” contar, que, de fato, “não falta”. Contá-lo seria obsceno, indelicado, indiscreto. Um exagero, uma perda de medida. Não é preciso contar. Não se deve contar. Seguimos caminhando por Veneza e eis que reencontramos o jovem casal de estudantes sentados numa mesa no terraço de um bar. Fugimos deles, mas acabamos reencontrado-os. Eles propõem que a gente se sente, mas percebo que Giorgio está indeciso quanto a ficar ou não. Ele me pergunta o que prefiro fazer. Digo que nós podemos ficar, sem problemas, que eu preciso apenas comprar cigarros. Ele então diz aonde fica exatamente a unica piazza em que àquela hora se poderia comprar cigarros em Veneza. Na Itália, só se pode comprar cigarros em tabacarias, que fecham às oito da noite (!). Mas a partir das nove horas algumas tabacarias deixam disponíveis máquinas automáticas em que se pode comprar cigarros por toda a noite. Mas entre as oito e as nove da noite, portanto, durante uma hora, ninguém pode comprar cigarros em Veneza. Giorgio me diz que me acompanhará até a piazza onde há uma dessas máquinas. Eu digo que não é preciso, que, se ele me explicar como posso chegar ate lá, eu posso ir sozinho. Mas ele insiste. Despede-se de novo do casal e diz que, de repente, volta mais tarde. O casal diz que outros estudantes estão a caminho. E de fato, assim que saímos para a tal piazza, poucas ruas depois, encontramos um grupo de estudantes que, ao ver Giorgio, o saúdam com entusiasmo. Ele me apresenta rapidamente a todos (são seus alunos) e diz que o casal estava no bar esperando por eles. Nós nos despedimos todos com o já clássico “ci vediamo” que é a tradução perfeita do famoso carioca “a gente se vê, a gente se fala” (acho que o ensaio de Francisco Bosco vale não só para os cariocas, mas também para os venezianos). Depois que o grupo de alunos se vai, eu pergunto a Giorgio se ele de fato não preferiria ficar com eles, já que me pareciam todos muito simpáticos. “Sim”, ele diz, “são muito simpáticos, mas os vejo sempre, quase todos os dias”. Toda essa conversa durante o passeio se dá em italiano. Ele diz que eu estou falando muito bem e que o meu sotaque (“l’accento”) está muito bom. Eu fico orgulhosíssimo, mas não aceito o elogio, pois ainda acho o meu italiano muito macarrônico. Após comprar meu cigarro, ele propõe que a gente vá na direção do canal da Giudeca, a beira do qual eu tinha jantado na noite anterior. Ele me diz que gosta muito dessa margem do canal, onde é mais fresco. Não havia mais quase ninguém nos cafés à beira do canal, quando chegamos. Mas conseguimos ainda que um garçom nos servisse uma bebida. Eu pedi uma birra e ele, alguma bebida desconhecida por mim, uma espécie de refrigerante em lata italiano, que, segundo ele, é o seu “o de sempre” naquele café. Ficamos ali, na noite enluarada de Veneza, conversando até meia-noite, quando decidimos que deveríamos partir, já que, no dia seguinte, eu devia ir à sua casa para almoçar com ele e com seu tradutor alemão. Ele cozinharia para nós. Combinamos que eu chegaria entre meio dia e um da tarde.
Agamben em sua casa, em Veneza, 2007 (Foto: Cláudio Oliveira)

Pegar o Vaporetto pela última vezainda no trem, voltando de Veneza para Firenze, domingo, 29/07/2007
Aproveito que estou bem perto da Praça de São Marcos e, antes de almoçar com Giorgio, olho pela última vez Veneza. Atravesso a piazza, onde há uma enorme fila para entrar no duomo e sigo para a estação S. Marco do Vaporetto. Penso que sera ótimo andar pela última vez de vaporetto no Grande Canal. E de fato, andar pelo Grande Canal é uma experiência da qual a gente nunca se cansa.
Na casa de Agamben, com Heidegger e Lacanescrito em Paris, na Biblioteca do Centre Georges Pompidou, terça, 01/08/2007
Pego o Vaporetto em S. Marco e desço na estação S. Toma, a mais próxima da casa de Agamben. Ele mora num palazzo de apenas dois apartamentos: o segundo e o terceiro andares destinam-se apenas ao apartamento do Agamben. Toco a campainha e ele me recebe alegremente. Está na cozinha preparando o almoço: segundo ele, uma receita que aprendeu recentemente, em Lisboa, quando esteve lá para falar. É um risoto com legumes e um peixe de cujo nome não me lembro. Agamben cozinha muito bem. Quando chego, já está lá o seu tradutor alemão, Andreas, um “jovem” de 44 anos que já esteve no Brasil por duas semanas (Rio, Salvador, Brasília). Andreas é muito simpático e gentil. Fala com Agamben em inglês, pois apesar de ser seu tradutor, fala muito mal o italiano. Agamben, por sua vez, também não fala muito bem alemão (segundo Andreas). É um encontro engraçado, pois ambos são leitores, até tradutores da língua um do outro, mas não falantes, ou falantes precários. Então decidimos que falaremos todos em francês, depois de minha tentativa de manter a conversa em italiano. Converso um pouco com Giorgio na cozinha, enquanto aproveito para tirar algumas fotos dele cozinhando. Ele percebe, diz para eu parar, mas não me impede de fazê-lo. Tirei algumas fotos durante o almoço (não muitas, porque também fico envergonhado), mas não sei se ficaram boas, ainda não as revelei. Acho que ele não me recrimina pelo que estou fazendo, pois ele mesmo possui, na sala de estar, emolduradas e penduradas na parece, duas fotos do Seminário de Thor, onde aparece num grupo, ao lado de Heidegger (ele tinha 24 anos quando participou do primeiro, no qual estavam presentes apenas seis pessoas!). Sobre a mesa da sala há um livro de François Fédier com fotos de Heidegger, no qual há, entre outras, uma foto de Giorgio, muito jovem, sentado ao lado do filósofo, que Andreas me mostra. Heidegger, já bem velhinho, e Agamben, um menino, muito novo. Em outra parede da sala, há outras duas fotos emolduradas e penduradas. São fotos que Heidegger enviou a Agamben logo após o primeiro encontro em Le Thor, na França. Como o fundo do quadro também é de vidro, pode-se ler a letra de Heidegger e entender com facilidade o que ele escreveu (ele agradece os votos de feliz ano novo que Agamben tinha enviado em uma carta anterior, entre outras coisas). A primeira foto é da cabana de Heidegger em Todtnauberg, na Alemanha, completamente coberta de neve. A segunda, um foto da região de Messkirch, onde Heidegger nasceu. Ao ver todas essas fotos e mensagens fico muito emocionado. Sinto como se estivesse repetindo o gesto de Agamben de ir procurar Heidegger. Há ainda outra surpresa no apartamento. Quando o encontrei, na noite anterior, para jantar, disse a Agamben que tinha vindo a Veneza com uma missão: conseguir o texto que ele tinha escrito sobre Lacan e apresentado no colóquio “Lacan avec les philosophes”, realizado em Paris, em 1990. Quando a reunião dos trabalhos apresentados no encontro foi publicada, os organizadores da publicação colocaram a seguinte nota na abertura da edição: “O Sr. Giorgio Agamben não enviou seu texto para publicação”. Essa foi uma informação da qual eu soube desde que comecei a ler Agamben, e ficava sempre imaginando como seria um texto de Agamben sobre Lacan. O único motivo, segundo ele, para não ter enviado seu texto, foi que ele se encontrava, como se encontra até hoje, escrito à mão. Agamben não escreve diretamente no computador nunca. Quando ele esteve no Rio, em 2005, disse a ele que viria a Veneza pegar o texto. E aqui estava eu. Na noite anterior, lembrei-lhe da minha missão. Para minha surpresa, ao chegar em seu apartamento, no dia seguinte, ele já tinha encontrado o manuscrito. Dou uma olhada rápida no texto, escrito em francês, bastante legível. Ele me pergunta se eu consigo ler. Digo que sim, mas que certamente, encontraria passagens ilegíveis. Combinamos que ele me enviaria uma cópia do texto pelo correio, para que eu o traduzirei e o publicasse no Brasil. Será que existe algum editora no Rio interessada em publicar um texto mundialmente inédito de Agamben sobre Lacan?
Cláudio Oliveira e Agamben na casa do filósofo, em Veneza (Foto: Andreas Hiepko)
Cláudio Oliveira e Agamben na casa do filósofo, em Veneza, 2007 (Foto: Andreas Hiepko)

O ghetto de Veneza, Andreas e as dedicatórias de Agamben
Após sair da casa de Agamben, sigo com Andreas para caminhar no ghetto de Veneza (tenho ainda umas duas horas e meia antes de pegar o trem para Firenze). Segundo Giorgio, o primeiro ghetto do mundo é o de Veneza. Andreas deve ficar ainda uns quatro dias na cidade para trabalhar com Giorgio na tradução alemã de O reino e a glória. Aproveitei para pedir a Agamben um autógrafo na minha edição, comprada em Veneza. Ele escreve: “A Cláudio, de Giorgio carioca”. Depois me pergunta se tenho a edição italiana de A potência do pensamento, uma grande coletânea também publicada em 2007. Digo que não e ele me diz que acredita ter ainda um exemplar, que me dará de presente (já tinha me dado a edição brasileira de Profanações, da qual tinha em casa alguns exemplares). EU digo que não, mas ele insiste e escreve na dedicatória: “A Cláudio, com a recordação veneziana do amigo ex-carioca Giorgio”. Digo a ele que não deve escrever nunca “ex-carioca”, mas sempre “carioca”. Ele ri. Eu e Andreas nos demos muito bem. Seguimos para a piazza principal do ghetto, onde há mais de uma sinagoga e onde se pode ver muitos judeus ashkenazi andando pela rua. É realmente um lado muito bonito de Veneza. Andreas faz um doutorado em filologia que, segundo ele, não termina nunca, pois não possui bolsa e está sempre trabalhando em traduções para sobreviver. Tem um interesse fecundo por Agamben, pela relação entre filologia, tradução e filosofia. É uma cara muito legal. Tentaremos ir visitar um ao outro. Despeço-me dele e sigo para a estação para pegar meu trem.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Por uma nova crítica das desigualdades sociais

                                          
Roberto Dutra Torres Junior
                                                                                                                                                                 

Por uma nova crítica das desigualdades sociais

 
A sociedade é uma pluralidade de sistemas nos quais diferentes formas de desigualdade emergem (Foto: Markus Spiske)

Em conversa informal sobre igualdade e desigualdade no Brasil, um amigo meu foi confrontado com o problema do racismo estrutural. Em algum momento deu uma lacrada “protoliberal”: “A sociedade é racista, mas que sociedade? É preciso saber se as pessoas são racistas. Eu sou a sociedade”. A primeira e mais óbvia associação é com a recusa ideológica em enxergar desigualdades estruturais. Mas acredito que há mais a ser considerado nesta sentença, pois ela faz alusão a um dos maiores problemas do discurso progressista de crítica a desigualdade social: perceber as estruturas de desigualdade como característica totalizante da sociedade. A sociedade não produz apenas desigualdade, não produz apenas racismo e não produz apenas sexismo. Ela também produz os ideais de igualdade pelos quais medimos e criticamos todas estas e outras estruturas de desigualdades.
O discurso progressista acredita que a sociedade possui estruturas de desigualdade que definem a identidade da sociedade: o que ela é e o que ela não é. Neste sentido, a sociedade pode ser definida como sendo de classes, patriarcal e racista. As estruturas de desigualdade definem a sociedade. Para não ser de classes, sexista e racista, a sociedade teria que ser completamente outra. A identificação da sociedade com a desigualdade obriga a pensar em uma unidade estrutural para a desigualdade, mesmo que estas sejam plurais. Assim, o discurso progressista fala, no singular e não no plural, da estrutura de classes, do racismo estrutural e do patriarcado. Esta unidade estrutural é tratada, quase sempre, como traço do estado nacional, reproduzindo-se um “nacionalismo metodológico” insustentável na sociologia. O discurso progressista sobre as desigualdades sofre de um “deficit sociológico” que o impede de ver as possibilidades de transformar as estruturas de desigualdade, uma vez que não apreende as estruturas e decisões estruturais plurais e concretas que determinam as chances de vida das pessoas.
A crítica à desigualdade é reduzida à forma geral e inconsequente de crítica da sociedade, o que coloca para o crítico o paradoxo da crítica externa: quem critica a desigualdade está na sociedade ou fora dela? E a igualdade, está fora ou dentro da sociedade? A sentença de que a sociedade não pode ser racista, mas pessoas sim, não é apenas reprodução da “fala protoliberal” de que a sociedade não existe. É observação de que a crítica da desigualdade estrutural dos progressistas carece de autocrítica. Essa autocrítica passa por questionar as premissas acima.
A sociedade não é uma unidade estrutural, mas uma pluralidade de sistemas nos quais diferentes formas de desigualdade emergem, se reproduzem e se transformam. Desigualdades econômicas, políticas, jurídicas, educacionais, afetivas não seguem a mesma estrutura, embora se influenciem mutuamente. Por isso, classe, raça e gênero podem produzir desigualdades muito distintas em cada uma destas esferas. A redução das desigualdades de gênero na educação e sua maior perenidade no mercado de trabalho evidenciam isso. A crítica à desigualdade não deve ter como foco uma estrutura unitária. A crítica deve ser concreta e plural: quais formas de desigualdade de classe, raça e gênero determinam as chances de vida das pessoas em que sistemas sociais? A sociedade tem muitos racismos, muitos sexismos e muitas formas de desigualdade de classe.
A sociedade não é definida pela desigualdade, pois ela também inclui, como parte da vida social, não só a crítica à desigualdade, mas também estruturas de igualdade como a cidadania social etc. A crítica só é possível porque se apoia em normas e valores de igualdade vigentes na sociedade em que vivemos. Uma sociedade não machista, não racista e sem classes não seria inteiramente outra. A sociedade é mundial e possui um conjunto contraditório de possibilidades de evolução.
A sentença “protoliberal” de que a sociedade não é racista tem parte de razão, pois a sociedade é também antirracista, sobretudo porque vivemos numa única e mesma sociedade mundial. Não pode ser definida unicamente como racista.
Mas o que o “protoliberal” nos ajuda mesmo a ver é o problema do endereço da crítica às desigualdades: organizações, pessoas, grupos formalmente visíveis podem ser endereçados, responsabilizados por desigualdades ilegítimas, pois decidem sobre estruturas sociais, mas a sociedade, como unidade que abarca tudo que é social, da desigualdade à igualdade, não é alcançável, não tem endereço e sua crítica é tão charmosa quanto conceitualmente errada e politicamente inútil. A única crítica social com sentido real é aquela devotada a decisões e estruturas reais de organizações, que é o contexto responsável por alocar a maior parte dos recursos importantes nas desigualdades, como renda, poder e conhecimento.
A crítica e o lugar de fala
O conceito de “lugar de fala” foi banalizado pela política identitária que hoje domina o discurso progressista sobre as desigualdades sociais. Seu uso atual é predominantemente moral, e isto destrói seu potencial de servir a um discurso mais reflexivo (mais consciente de seus alcances e limites) sobre a desigualdade e suas consequências: as diferentes formas de sofrimento e humilhação de pobres, negros e mulheres. O objetivo dos identitários é demarcar posições de superioridade moral com base em um “campeonato de sofrimento”, no qual somente as “vítimas autênticas” da desigualdade e de suas consequências ganham o direito de falar e discursar sobre o problema.
Isto é uma prática moral, pois sua lógica é justamente construir julgamentos totalizantes sobre pessoas e grupos de pessoas, o que sempre resulta em repetição do binômio bom/mau. Não é uma prática política, pois a lógica da política é construir decisões coletivas, mesmo que seja necessário a ajuda de pessoas moralmente questionáveis. E também não é uma prática de esclarecimento científico crítico da sociedade, pois a diferença moral entre bons e maus, entre oprimidos e opressores, é insuficiente, para não dizer que atrapalha, o entendimento do mundo e por isso mesmo o melhoramento do mundo. Os identitários transformaram o conceito de “lugar de fala” em um mesmo e único “lugar de fala puritano”, que visa catequizar os moralmente inferiores, e não construir uma decisão coletiva (política) ou visão esclarecedora capaz de ajudar na política (ciência).
No entanto, julgo ser possível recuperar o conceito de “lugar de fala”, e justamente para explicitar quais os alcances e limites desta crítica ao discurso progressista sobre as desigualdades. Proponho substituir o uso moral da ideia de “lugar de fala” por uma noção sociológica de “lugar de fala”: em vez de ser (moralmente) definido como a posição de superioridade moral de quem sofre de forma “original e autêntica” as consequências das desigualdades sociais, defini-lo como posição parcial de observação, com alances e limites, em determinado sistema social.
Nesta proposição, o elemento moral é relativizado pelo elemento cognitivo: o que define os limites e alcances de um “lugar de fala” são a relevância e as chances comunicativas de quem fala em um determinado sistema social. Na política, o “lugar de fala” é definido pela relevância e repercussão na ação de outros políticos, do público e dos setores politicamente envolvidos e organizados, das falas proferidas, das posições tomadas, das agendas de políticas públicas adotadas, formuladas e implementadas. Na ciência, o “lugar de fala” é definido pela relevância e repercussão na ação de outros cientistas de sentenças de verdade e falsidade sobre os fenômenos. Nesta visão sociológica, não é apenas quem profere a fala, ou seja, o indivíduo ou grupo isolado, que define o “lugar de fala” de quem quer que seja, mas também, e prioritariamente, o modo como a fala ou discurso são entendidos, aceitos ou recusados. O “lugar de fala” é co-produzido, como ensina a sociologia, pelo receptor. O “lugar de fala” é um “endereço social”, uma construção comunicativa e social fixada não apenas pela relevância pretendida pelo falante, mas também e sobretudo pela relevância atribuída pelos ouvintes.
Para explicitar o “lugar de fala” desta crítica ao discurso progressista sobre as desigualdades, especialmente o discurso identitário, retomo a distinção que Weber traçou entre as vocações do político e do cientista. Existe uma tradição de sociologia crítica que acredita que o cientista social possui posição privilegiada para a crítica social, como se a ciência fosse, no mundo moderno, herdeira da religião na produção de uma visão de mundo válida para todos os domínios da sociedade. Ignora que a ciência não tem o condão de dirigir a política, como nenhum outro sistema da sociedade, com exceção da própria ciência. Por isso, é uma tradição de sociologia crítica arrogante e ingênua: não quer saber das condições de aceitabilidade e repercussão de seus discursos críticos em outras esferas, como a política, acreditando que a recusa e a não repercussão são frutos da “ignorância”, da “tolice”, enfim, da falta de adesão ao que seria o centro cognitivo do mundo.
Na crítica às desigualdades, esta tradição sempre confunde crítica científica com crítica política, e recorre ao insulto moral dos dissidentes para evitar ver que a crítica política das desigualdades não é um reflexo da crítica científica. Esta tradição ignora, portanto, a lição clássica de Weber sobre a diferenciação das esferas e das vocações da ciência e da política. Não há como explicitar corretamente o “lugar de fala” da crítica ao discurso progressista sobre as desigualdades sem romper com esta tradição arrogante e ingênua: Não espero que a ciência possa dirigir ou reorientar o discurso, e muito menos a prática, dos progressistas sobre qualquer coisa, mas apenas que ela possa disponibilizar uma alternativa, cuja realização depende dos envolvidos com a política, cabendo ao crítico da ciência apenas refletir ou antecipar as condições que tornam mais provável esta realização.
O discurso dominante entre os progressistas sobre a desigualdade foi influenciado pela sociologia do unitarismo estrutural, que orienta a descrição e a crítica das desigualdades por uma noção unitária e totalizadora de estrutura social: a estrutura de classes, a divisão étnico-racial, o patriarcado. A crítica que proponho a este discurso parte de uma outra sociologia, baseada na diferenciação da sociedade em subsistemas e no pluralismo efetivo das estruturas de desigualdade. Nesta sociologia, o sentido da crítica da desigualdade é definido em cada sistema social. Isto significa, por exemplo, que uma crítica acadêmica sobre as desigualdades de gênero não orienta diretamente a desconstrução ou a mudança das estruturas de desigualdade entre homens e mulher na educação ou na economia: somente uma crítica educacional e uma crítica econômica são capazes disto. Por quê? Porque a mudança estrutural só é possível com disponibilização de alternativas reais em cada sistema social, com a oferta de soluções alternativas para os problemas – como a seleção social na educação e na economia – que antes só se resolviam com a estrutura vigente de desigualdade.
Desta forma, a crítica progressista das desigualdades precisa ser não apenas plural – situar-se em um sistema social específico –, mas também concreta, ou seja, envolvida com a imaginação de alternativas reais de mudança estrutural, o que exige um foco privilegiado na dimensão das organizações que regulam os modelos institucionais instituídos e reproduzidos nas esferas mais importantes da sociedade como a economia, a política, o direito e a educação. Do “lugar de fala” da ciência, que não decide nada sobre nenhum tipo de estrutura social relevante para a coletividade, a questão é: como criar descrições, discursos críticos sobre a desigualdade, plurais e concretos, que possam não apenas inspirar novas semânticas na política, mas também serem úteis na prática decisória sobre desigualdade nas mais diferentes esferas da sociedade.
O rebaixamento das expectativas
A crise do discurso progressista sobre as desigualdades reside no rebaixamento das expectativas de mudança estrutural que assola a esquerda no mundo inteiro. O modelo social-democrata europeu, fruto de críticas sociais concretas a desigualdades capazes de dirigir mudanças estruturais de largo alcance na política, na economia, no direito e na educação, perdeu seu ímpeto transformador. Para criar dignidade para todos, os sociais-democratas do final do século XIX e início do XX sabiam que precisavam reinventar a infraestrutura organizacional e institucional dos mais importantes subsistemas da sociedade, e isto se refletiu em programas robustos de transformação estrutural, que afetaram não apenas a distribuição de bens e recursos sociais, mas também e prioritariamente a sua própria produção.
Hoje, a social-democracia é um fetiche destituído de ímpeto transformador, e significa apenas a “humanização” de um mundo social tomado como inevitável. O máximo que se deseja é a distribuição marginal de bens e recursos, não mais a transformação estrutural. Neste ambiente de expectativas rebaixadas, a “crítica da sociedade”, totalizadora e sem aderência aos problemas reais de cada sistema social, fica reduzida um discurso de denúncia de processos sociais, sem nenhuma contribuição sobre as alternativas reais, “as possibilidades objetivas”, como diria Alberto Guerreiro Ramos. Comparemos a crítica de um Darcy Ribeiro, desde sempre composta por um elemento programático que desnuda e explora possibilidades de transformação social, mesmo denunciando as mais brutais formais de desigualdade e opressão, com a crítica de um Jessé Souza, desde sempre destituída de qualquer elemento programático, exceto alusões despolitizadas sobre o nível de “aprendizado moral” do “modelo social-democrata europeu”.
A contribuição científica para renovar a crítica progressista das desigualdades deve se concentrar na desconstrução dos discursos que naturalizam as desigualdade em cada sistema social, mas não apenas em forma de denúncia inconsequente, como se faz na “crítica da sociedade”, mas sobretudo na forma de um discurso programático humilde, reflexivo e consequente, ou seja, que reflita sobre as condições de sua utilização na política, buscando pensar não apenas políticas de redistribuição e reconhecimento identitário, mas sobretudo políticas capazes de transformar a infraestrutura organizacional e institucional da economia, da política, do direito e da educação, pois somente este tipo de transformação estrutural pode garantir redistribuição e reconhecimento para maiorias e minorias.
A crítica das desigualdades precisa se reaproximar da análise de políticas públicas enquanto instrumento de transformação estrutural e justiça social, que cria capacidade não só de redistribuir, mas também de reorganizar a produção da riqueza social e a ação coletiva. Sem isso, a redistribuição igualitária das chances de vida vai sempre encontrar limites enormes. A análise e a imaginação institucional de políticas públicas podem ser um momento de aprendizado humilde do cientista social crítico, pois aí ele é obrigado a disciplinar suas denúncias dos problemas com a necessidade prática de encontrar ou criar soluções para eles. Não deve servir para castrar o ímpeto transformador e rebaixar ainda mais as expectativas, mas sim para dar efetividade e consequência às aspirações progressistas de transformar o mundo para o engrandecimento da mulher e do homem comum.

ROBERTO DUTRA TORRES JUNIOR é ex-diretor do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF)
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
 

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

O maravilhoso mundo mágico do ministro Moro

                                           
Marcos A. R. Peixoto 
                                                                                                                                                                 

O maravilhoso mundo mágico do ministro Moro                                                                              
(Arte Revista CULT)

“O meu mestre feiticeiroUm dia quis se ausentar.
Seus espíritos tomei
E fiquei em seu lugar.
Vi suas magias
Vou fazer igual.
Farei maravilhas
Com força mental!”
O Aprendiz de Feiticeiro, Goethe

“Abracadabra, sinsalabim, a violência desaparecerá porque eu quero assim! Plim!”
Se de fato não foram, poderiam ter sido estas as primeiras palavras do ministro Moro (doravante, MM) à frente do superministério do governo de extrema-direita recém eleito e que optou por integrar.
Influenciado (e ora, vejam: quase disse “deformado”) por anos de magistratura e catapultado ao Executivo (para breve passagem, segundo dizem) por força de um trampolim de ouro chamado “Lava-Jato”, acostumou-se MM ao longo daquele tempo a, cada vez mais, acreditar que suas palavras eram capazes de formar (deformar?) a verdade. Se cabe aos juízes dizerem a verdade (afinal, proferem veredictos – do latim veredictum: “verdadeiramente dito”), a verdade (ora bolas…) pode passar a ser o que dizem os juízes e ponto final. Por que não?
Assim “influenciado”, aportou MM no Executivo piamente acreditando que suas palavras (agora não mais contidas em decisões ou sentenças, mas em decretos e anteprojetos de leis e de emendas à Constituição) serão suficientes para formar a verdade e, como num passe de mágica, a verdade se subjugará às suas palavras, tal como ocorria enquanto membro do Judiciário. Voluntarismo elevado à enésima potência – o poder (além de outras coisas) inebria e vicia.
Momentaneamente transformado em ministro no Executivo (já que, segundo dizem, sua verdadeira intenção seria assumir como ministro, sim, mas no Supremo), MM trouxe consigo, sob sua falsa premissa de que “o que dirá, será”, algumas fórmulas mágicas que começou a proferir aqui e ali com o intuito de enfeitiçar incautos, como se fossem fake news agora empoderadas.
A primeira das fórmulas mágicas veio através do decreto de flexibilização da posse de armas de fogo. Plim!
Contrariando centenas de pesquisas abalizadas em torno do mundo (não, o mundo não é plano) que demonstram, com a necessária seriedade, que armas em mãos de civis somente aumentam a letalidade da violência – violência que está aí e que, com o decreto, somente será municiada –, MM apostou nas palavras populistas de seu presidente (vitimado pela violência) de um lado, e de outro na prática do Grande Irmão do Norte (que MM idolatra) para trazer ao Brasil uma fórmula que, sendo promessa (dívida?) de campanha, só provocou até hoje, naquele país, grandes morticínios de inocentes, isto ao mesmo passo em que inexiste um único dado concreto no sentido de que, de algum modo, colabore a flexibilização da posse de armas de fogo para a paz social, senão para uma falsa sensação de segurança comumente quebrada ao som de tiros e à vista de tragédias.
Em seguida, MM trouxe à lume um (depois cindido em três) anteprojeto de lei anticrime em relação ao qual alguns incautos ainda nutriam um fio de esperança no sentido de que, em consonância aos princípios constitucionais vigentes, poderia ser produtivo em favor da por todos almejada segurança pública. Mas assim não foi.
Ao contrário e como era de todo previsível da parte de quem não nutre maiores afetos pelo texto da Constituição (como tantas e tantas vezes já demonstrou), o que MM pariu a partir de suas “influências” foi mais uma profusão de fórmulas mágicas ora inconstitucionais, ora fortemente violadoras de secular evolução da dogmática penal, ora inócuas, ora grave e preocupantemente potencializadoras da violência que pretende combater.
Segurança pública não é (ou ao menos não deveria ser) campo de atuação ou experimentação para neófitos ou, pior, ignorantes – este um primeiro e basilar ponto que, de todo esquecido ao longo de anos, tem nos lançado cada vez mais fundo numa espiral de violência da qual (literalmente) a cada dia que passa se torna mais difícil sair. Segurança pública não é tampouco (ou não deveria ser) campo para a atuação de demagogos que somente enxergam a curto prazo, ou têm em mira exclusivamente a próxima eleição ou, no máximo, o próximo cargo para nomeação.
Apesar disto, em nosso país a segurança pública se tornou, dentro da “melhor” tradição brasileira, tema para papo de botequim, em que cada um tem sua própria opinião, seu achismo, sua fórmula mágica. E se todos as têm, por que não as teria MM, não é mesmo?
Eis que sem maiores consultas a especialistas (pasmem: juízes, pelo simples fato de serem juízes, não são especialistas em segurança pública, matéria sequer cobrada em concursos públicos de ingresso na carreira) ou mínimos debates democráticos e plurais, num passe de mágica MM apresenta seu(s) anteprojeto(s) de lei(s) anticrime: plim! Um anticlímax, já que praticamente nenhum dispositivo proposto tem (por falar em mágica) o condão de gerar quiçá 1% de diminuição nos índices de violência – pelo contrário!
Inúmeros artigos de doutores em segurança pública, direito e processo penal, criminologia, sociologia, história, já foram e ainda serão escritos em torno das diversas propostas apresentadas. Contudo, bastante em resumo, o que se pretende é mais do mesmo que há décadas só vem assolando o país e o afundando em um grau cada vez maior de violência, apostando tanto o Executivo quanto o Legislativo federal todas as suas fichas no direito penal como panaceia, se esquecendo do ditado de Paracelso, médico e físico do século 16: “a diferença entre o remédio e o veneno é a dose”. Para prosseguir na analogia médica, por vezes insistem em aplicar ao paciente meros analgésicos enquanto se necessita de antibióticos; por vezes se tem aumentado a dose do mesmo remédio que já se provou ineficaz e tem agravado a doença. Como disse Einstein, “não há maior sinal de loucura do que fazer uma coisa repetidamente e esperar a cada vez um resultado diferente”.
A ampliação do instrumental punitivista, seja na esfera penal ou processual penal, é parte do problema e não da solução. E o pior cego não é aquele que não quer enxergar, é o que finge não enxergar: anos e anos dessa política nada mais fizeram que ampliar a violência ao mesmo passo em que ampliou exponencialmente o encarceramento, não sendo tão difícil perceber a interrelação dos dois fatores por qualquer um que minimamente conheça os efeitos deletérios do cárcere, principalmente em sua estreita vinculação com organizações criminosas na medida em que provocam, de um lado, o aprofundamento na criminalidade para aqueles que ingressam no sistema penitenciário quiçá pela primeira vez através das dívidas que lá são geradas e que serão cobradas quando em liberdade, de outro a busca incessante daquelas organizações, em razão das inúmeras prisões de seus agentes, por novos corpos a serem submetidos às graves, danosas e brutais exigências da vida criminosa, tudo num círculo vicioso que se retroalimenta inclusive (talvez sobretudo) por meio do agravamento de penas e da flexibilização/facilitação da punição, sempre erigidas em detrimento de garantias fundamentais ora convenientemente esquecidas, ora flexibilizadas em reinterpretações que as deformam e por vezes as recriam em normas frontalmente opostas à original – lembremos, afinal, que para alguns a verdade é aquilo que o juiz diz.
Variados são os temerários exemplos contidos no anteprojeto originário da varinha de MM, contudo tomemos como mero exemplo a barganha proposta, segundo a qual através de acordo (como se, com a Espada de Dâmocles sobre sua cabeça, ali houvesse para o investigado livre vontade, pressuposto à validade de qualquer avença) o Ministério Público e o indiciado poderão convencionar uma pena a ser, logo em seguida e sem mais, homologada, imposta e cumprida, tudo num verdadeiro vapt-vupt penal, alegria dos eficientistas, quiçá (como querem alguns) já em audiência de custódia, verdadeira perversão de um instituto erigido por convenções internacionais como garantia do preso e não como facilitação à punição.
Como se não bastasse a barganha ferir de morte os princípios constitucionais da inafastabilidade do efetivo controle jurisdicional, da garantia ao duplo grau de jurisdição, do contraditório, da ampla defesa e, sob tal ótica pressuposta, do devido processo legal (por outras palavras: o devido processo legal sob parâmetros constitucionais pressupõe o contraditório e a ampla defesa, logo, inexistindo estes não existe aquele), mesmo o Grande Irmão do Norte idolatrado por MM não só atualmente revê a prática (geradora, lá, de um dantesco hiperencarceramento de cidadãos jovens, pobres e negros assolados, como aqui, por uma sociedade consumista, narcisista e racista – e em matéria de dantesco hiperencarceramento já temos nossos próprios meios, não precisamos importar outros), como a instituiu no passado com base em pressupostos absolutamente diversos e inexistentes seja em nosso ordenamento penal e processual penal (aqui não há os julgamentos complexos, longos e custosos por Grandes ou Pequenos Júris para todo e qualquer delito), seja na própria filosofia que o rege (bem distante da concepção contratualista comum ao direito norte-americano).
Portanto, tal importação num passe de mágica, a par de engendrar um Frankenstein jurídico ao pretender implantar à fórceps no corpo legal um membro que não lhe pertence e fatalmente será combatido pelos anticorpos constitucionais (mais uma vez paráfrases médicas para um sistema doente), somente potencializará o encarceramento, contribuindo mais uma vez para o fortalecimento do círculo vicioso já acima referido e, assim, para a ampliação e aprofundamento da violência que, por mais incrível e surpreendente que possa a alguns parecer, não será subjugada pelas “verdades” insustentáveis ditas por MM – em um mundo real, alheio a sentenças e decisões, a verdade fática não pode ser subjugada por meras palavras, ainda que venham a se tornar leis.
No filme Fantasia, magnífico, lançado em 1940 pela Disney, Mickey Mouse (e vejam só: outro MM!) – tudo ao som do poema sinfônico “O aprendiz de feiticeiro”, de Paul Dukas, baseado em poema homônimo de Goethe – na ausência de seu mestre, resolve fazer experiências com aquilo que não domina minimamente: usando mágica com um determinado propósito (fazer esfregões e baldes com água trabalharem por ele), rapidamente vê tal propósito fugir ao controle e colocar o estúdio de seu mestre em grave risco, até que este ressurge e o corrige, evitando o pior.
Infelizmente, na vida real não há mestres feiticeiros que no último instante evitam o mal maior. Infelizmente, na vida real, pessoas que não dominam totalmente seus misteres, ainda que com as melhores intenções, produzem grandes maus e em larga escala.
Assim são os anteprojetos de leis anticrime do ministro Moro.

Marcos A. R. Peixoto é juiz de Direito e membro da Associação Juízes para a Democracia

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Laerte via Folha de São Paulo

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Crônica: Vale dos Rouxinóis


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José Luiz Gomes                        

Rouxinóis são pássaros pequenos, de cor castanho, que ocorre com muita frequência aqui na região Nordeste. Apesar do canto bonito - nobre, diria - não se adaptam ao cativeiro, o que os tira da lista dos prendedores de animais em gaiolas. Mantenho uma página na internet sobre a região do Brejo Paraibano, mais precisamente sobre a cidade de Bananeiras. Outro dia publicamos ali uma foto de um vale, com uma imensa campina, com a legenda de “Paraíso dos Rouxinóis”. Como era natural, a foto gerou algumas polêmicas, com leitores sugerindo tratar-se, quem sabe, da melhor imagem obtida do Brejo Paraibano. E, naturalmente, questionamentos sobre de onde ela havia sido obtida. Não pode ter sido de Bananeiras. É mais provável que seja das famosas serras de Serraria. Quem sabe da zona rural de Areia? 
 
Na realidade, trata-se de uma foto antiga, ainda do nosso perfil no Flick, que hoje perdeu enorme espaço para o Instagram. A foto foi tirada há alguns anos atrás, quando ainda existia o Hotel Fazenda Vale do Paraíso, no alto de uma colina, entre as cidades de Bananeiras e Solânea. Era um dos melhores equipamentos de hospedagem de Bananeiras, hoje, infelizmente, desativado. Bons apartamentos, espaços de lazer, horta orgânica, culinária regional de boa qualidade e farta. Ah, já ia esquecendo do melhor: uma paisagem de tirar o fôlego, deliciando os hóspedes, ao acordarem, logo cedinho, com um frio danado, ouvindo o canto dos pássaros, notadamente os Rouxinóis, os verdadeiros donos do pedaço, em suas revoadas nas árvores, na campina, em seus ninhos no casarão do Hotel, num frenesi constante, entre a corte e a busca de alimentos para os seus filhotes.   

Ainda cheguei a voltar outras vezes ali, desta vez acompanhado do comendador Arnaldo, para o lançamento de mais um dos seus livros. Foi maravilhoso matar a saudade daquele local, voltar a experimentar o tradicional café do Brejo - cuscuz, mel de engenho e queijo coalho - ouvir o concerto dos Rouxinóis nas primeiras horas da manhã e ao final das tardes. Como conheço bem a região, suas matas, seus engenhos, suas cachoeiras, suas trilhas, seus bares de estrada, com uma gastronomia toda especial, fica difícil para mim apontar este ou aquele local como o mais bonito do Brejo. No entanto, não posso discordar dos leitores que assim definem o Vale do Paraíso como o mais bonito deles. Quem sabe eles não têm razão?

Aliás, o comendador já prepara uma nova edição de suas crônicas para ser lançada na cidade, lançamento que deverá ser acompanhado pelo pessoal da confraria. Arnaldo chegou ali meio que por acaso, mas não resistiu ao nevoeiro que encobria a cidade num desses dias de inverno, quando a rainha do brejo paraibano exibe todos os seus encantos aos visitantes.  

 

 

sábado, 23 de fevereiro de 2019

Michel Zaidan Filho: A Reforma do Sistema Previdenciário Brasileiro


 
0 projeto de Emenda à Constituição (PEC) que foi encaminhada, nesta segunda feira, ao Congresso Nacional que pretende “reformar” a Previdência Social Brasileira é um meio caminho entre a de Fernando Henrique Cardozo e a de Michel Temer. Menos escandalosa do que a do ex-presidente e mais ousada do que a de FHC. Imagina-se que seja a primeira grande fatura que o capitão deseja entregar, logo no início de sua gestão, aos seus patrocinadores de campanha: a transformação do sistema de repartição simples num sistema de capitalização. Ou, um sistema de benefício definido num sistema de contribuição definida. A previdência social não é só uma das grandes conquistas sociais e trabalhistas brasileiras, que em muito se assemelha à concessão da “renda mínima universal”, ou seja, um benefício para todos os brasileiros, independentemente do vínculo do emprego formal ou não. Haja vista os benefícios de prestação continuada (BPC), garantido pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). Foi um grande avanço, na Constituinte de 1988 a desvinculação do benefício em relação à garantia do emprego formal. Muita gente, graças a essa conquista, passou a receber esse benefício (inválidos, idosos, arrimo de família, donas de casa). Mas além dessa enorme significação social, o sistema arrecadatório da previdência é uma imensa máquina (hoje reforçada pela super-receita) que produz grandes superávits. Ou seja, o caixa da previdência pública está sendo atacado pelo governo e seu ministro da fazenda, não porque é deficitário, mas exatamente pelo contrário: porque tem muito dinheiro. Além do que suas receitas não provêm só do recolhimento dos trabalhadores formais e autônomos, vêm de contribuições para fiscais, do COFINS, das loterias, da contribuição sobre o lucro líquido das empresas etc. O que se pretende com esta “reforma” é assaltar o pecúlio do trabalhador brasileiro. Aliás, isto já vem sendo feito: a DRU que permite o governo desviar dos cofres da previdência até 30% de suas  receitas para pagamento das obrigações financeiras da dívida pública (hoje na casa dos 39% do Orçamento Nacional), da  extravagante e indevida isenção e renuncia fiscais concedidas pelo governo a empresas nacionais e estrangeiras, à formidável dívida de 400 bilhões das empresas à Previdência Social e, agora, se esta reforma vingar, as empresas de capitalização que vão abocanhar grande parte dessa riqueza social.

Um Projeto de Emenda à Constituição requer a sua aprovação por 3/5 da Câmara dos deputados, em dois turnos de votação. Teria o governo essa base de apoio no Congresso, mesmo oferecendo a cada deputado a bagatela de 6.000.000 de reais? – Não creio. Posso estar muito enganado, mas o capitão não está no seu melhor momento para confiar no apoio irrestrito de sua base. Base fisiológica, diga-se de passagem. A família do capitão tem provocado seguidos atritos e fissuras nesse apoio ao Poder Executivo. Há o problema de comando e hierarquia, nesse governo. Afinal, quem manda ou ordena na República: é o capitão, o general, os filhos do capitão, os ministros ou a base parlamentar? – Tem se falado muito que a articulação política do primeiro mandatário seria entregue a Rodrigo Maia e ao presidente do Senado. Não me parece, contudo, muito segura essa operação. O deputado do DEM parece querer pousar de independente em relação ao Palácio da Alvorada. E o dirigente do Senado é um novato que assume a direção de uma Casa fragmentada e dividida.

Essa PEC é menos ousada do que o projeto original, elaborado pelo senhor Paulo Guedes para agradar às empresas de capitalização. Falou-se até em fazer as mudanças através de projetos de lei ou até mesmo, medida provisória. Mas há direitos e garantias que só podem ser alterados com a reforma da Constituição. É aí que mora o problema desse governo.
 
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Nosso trono são será usurpado

                                           
Bianca Santana

Nosso trono não será usurpado
 
Mãe Hilda Jitolu, do Ilê Aiyê (Foto: Mario Cravo Neto/Divulgação Itau Cultural)

Ao redor de bancos simples de madeira ou imponentes cadeiras de vime — tronos de mães de santo, foram estruturadas famílias que ofereceram proteção espiritual e articularam táticas materiais para que nossas ancestrais seguissem vivas. O poder negado pelo Estado às soberanas negras foi reverenciado no Candomblé. Há fotografias belíssimas dos tronos de Mãe Andresa, na Casa das Minas; Mãe Senhora, no Ilê Axé Opo Afonjá; Mãe Beata de Yemanjá, no documentário Fio da memória, de Eduardo Coutinho. Obrigada, Alex Ratts, por compartilhar referências. A cadeira-trono da tal festa é ícone do poder preto desde os Panteras Negras. E é muitíssimo bem empregada em cenas de Elza Soares, Mãe Hilda Jitolu, do Ilê Aiyê, no curta Kbela, de Yasmin Thayná. Como escreveu o antropólogo Hélio Menezes, curador da recente exposição Histórias afro-atlânticas: “O símbolo é forte demais, negro demais, ancestral demais para ser profanado por sinhazinha moderna, socialite-diretora descafeinada de revista de moda.” Assino embaixo.
Demonstrar-se racista é parte de uma estratégia consciente por visibilidade? Ou é tão insuportável conviver com pessoas pretas em posições diversas, que vale encenar, em 2019, uma alegoria do Brasil colônia escravocrata? Deboche da luta antirracista, que, finalmente, não é mais possível ignorar? Reafirmação de quem é quem no país que mantém a mesma estrutura social 130 anos depois da abolição? As perguntas nos servem como tentativa de elaborar o absurdo. Mas pouco importam as respostas. Porque a mim, e imagino que à maior parte da sociedade brasileira, não interessam as intenções de uma mulher branca rica ao organizar seu aniversário de 50 anos de idade. Mas muito interessa a mim, e a quem trava a luta antirracista, que nossos símbolos não sejam usurpados. E que seja considerado inaceitável o elogio a um crime hediondo sem proporções na história da humanidade.
A imagem de mulheres pretas vestidas como mucamas a serviço da sinhá remete a sequestros, aos navios negreiros, aos estupros dos senhores, ao trabalho forçado, à tortura, às humilhações de diversas ordens. Além dos inúmeros estudos da historiografia, há notícias de jornais de época ilustrativos. E há a riqueza de detalhes da literatura. No romance Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, a personagem Kehinde prefere a brutalidade das plantações e dos capitães do mato à proximidade com a Casa Grande e a crueldade dos brancos, vivenciada por quem era feito escrava doméstico. Sinhá Ana Felipa arrancara os olhos da negra Verenciana por ciúmes do marido. Toda essa carga é atualizada a cada reprodução da imagem da preta servil.
Abro parênteses e peço perdão por retomar o exemplo recorrente. É que quando as vítimas são pessoas brancas, cuja humanidade não precisa ser defendida a todo momento, parece mais fácil a compreensão. Quem julgaria admissível uma festa de aniversário que reproduzisse imagens de campos de concentração? Não é tolerável que se brinque com o holocausto, independentemente das motivações de quem pudesse ter a brilhante ideia de ambientar uma festa reproduzindo imagens de Auschwitz. Assim, é necessário argumentar o óbvio: não é aceitável que cenas da escravização de seres humanos sejam exaltadas, independentemente das intenções de quem teve a brilhante ideia. Neste ponto, me embrulha o estômago lembrar da quantidade de pessoas que toma seu cafezinho apreciando a cena de uma colheita realizada por pessoas escravizadas, no imenso painel que decora um café na galeria do Edifício Copan, cartão-postal de São Paulo.
A ferida da escravidão segue aberta. Porque a estrutura racista da sociedade brasileira permanece e as discriminações racistas não nos dão trégua. Em Kindred, romance de Octavia E. Butler, a personagem Dana desmaia nos Estados Unidos de 1970 e desperta no século 19, no sul do país, em uma fazenda escravista. Se o mesmo acontecesse com alguma de nós no Brasil de 2019, é provável que a paisagem, vestimentas, indumentárias do século 19 fossem outras. Mas pessoas com os mesmos tons de pele e origem social estariam na mendicância, no trabalho braçal, nos cuidados domésticos, nos presídios, mas também nos parlamentos, à frente de grandes negócios, beneficiando-se das estruturas racistas. O tempo passou, mas o Estado brasileiro segue como instrumento das elites brancas para que o poder e a riqueza sigam com os mesmos. E os deslocamentos conquistados com muita luta provocam reações das mais diversas. Até alegorias escravocratas em festas de aniversário. A reação ao absurdo desta imagem é um aviso. Nosso trono de vime não será usurpado. E exigimos assento em outros espaços também.

BIANCA SANTANA é escritora, jornalista, pesquisadora, doutoranda em Ciência da Informação pela USP, autora de Quando me descobri negra (SESI-Sp, 2015)

Charge! Jaguar via Folha de São Paulo

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