Marcondes de Araújo Secundino é natural de Águas Belas. Em Recife, cursou o bacharelado em Ciências Sociais (1997), o mestrado em Sociologia (2000) e atualmente faz o doutorado em Antropologia. Todos os cursos realizados na Universidade Federal de Pernambuco, onde também foi Professor Substituto no Departamento de Ciências Sociais. Entre 2004 e 2011, coordenou o Núcleo de Estudos Indígenas na Fundaj/Ministério da Educação e foi representante do convênio de colaboração científica entre esta instituição e o Museu Nacional/UFRJ. Presta consultoria nas áreas de etnicidade, etnodesenvolvimento e avaliação de impacto socioambiental em Terras Indígenas e Quilombolas. É especialista em Política e Direitos Coletivos. (secundino.ma@gmail.com)
IGS Web: Como você avalia essa saída formal do PMDB do Governo?
Marcondes Secundino: “É de bom tom desnaturalizar esta relação PMDB-PT. Ela não é programática e nem se constitui por afinidade, mas simplesmente por pragmatismo e estratégia política de ambas as partes. Jogo jogado na atual república com regras lícitas, ilícitas e aparentemente tácitas que alimenta um sistema político carcomido, decadente. Mas existem especificidades entre os partidos.
A imagem que pra mim melhor representa a atuação do PMDB na república brasileira é a de uma esfinge. O Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa assim o define: “Na Grécia antiga, monstro fabuloso com corpo, garras e cauda de leão, cabeça de mulher, asas de águia e unhas de harpia, que propunha enigmas aos viandantes e devorava quem não conseguisse decifrá-lo”. Vejamos que bela imagem: decifra-me ou te devoro!
Agora devemos indagar: faltaria um sábio na república capaz de decodificá-lo? Ou, sabiamente, não decifrá-lo parece pertinente para a manutenção deste sistema? Decodificá-lo pode ser a ruína! Nestes termos, pode-se inferir que a ausência de um sábio pode ser proposital e deve atender a amplos interesses de diferentes atores políticos no atual cenário.
Por um lado, o PMDB talvez seja o principal partido do sistema que melhor representa as imperfeições da república, por outro, um dos pilares de sustentação do estado de coisas. Eis o seu legado!
Mas, voltemos ao ponto. E o desembarque do PMDB do Governo? É bom informar que ele nunca esteve integralmente no Palácio do Planalto. Algumas de suas lideranças orgânicas sempre estiveram declaradamente na oposição. O comportamento oportunista é escancarado. Na reunião do Diretório Nacional os que discordavam do desembarque não compareceram, a decisão foi oficializada por um personagem intrigante desta república, o senador Romero Jucá, até há pouco líder do Governo. Mas, ao que tudo indica, alguns dissimulam. Dos oito ministros, apenas dois saíram. A nave do desembarque continua solta, mas sem tripulantes. Entretanto, a decisão oficial não deixa de exercer pressão bombasticamente utilizada pela Grande Mídia como tentativa de demonstrar isolamento do Governo. É um verdadeiro teatro de sombras no qual a velha esfinge se debate viva e traiçoeira!”
IGS Web: O Impeachment agora é uma certeza?
Marcondes Secundino: “Sem dúvida o cenário continua politicamente complexo. Eu diria que o ciclo de vitórias do PT para presidente – 14 anos e 4 mandatos de presidente – tem acirrado os ânimos políticos e definido esta polarização nacional PT-PSDB, a qual se traduz em luta dos dois partidos pela hegemonia política no Brasil. Em outras palavras, luta pelo modelo de Estado que se quer vigente com anuência do voto, espera-se!
De um lado, a defesa de um Estado regulador capaz de intervir para reduzir as desigualdades sociais através da garantia de direitos fundamentais, promoção de políticas sociais, de inclusão e distributivas. Valores e ações do campo progressista. Do outro, referência do campo conservador, a defesa da autonomia do mercado como forma de regular a vida em sociedade, o que na prática significa supor que o mercado irá regular as desigualdades, naturalmente. Para tanto, reduz-se o papel do Estado e a sua intervenção em relação às políticas sociais e distributivas. É a defesa do chamado Estado mínimo. Ambos os lados, ressalte-se, são legítimos e a disputa política pela hegemonia deve respeitar as regras do jogo democrático. Dentro de uma sociedade que optou pela democracia como sistema político, a escolha, em última instância, deve ser feita pelos eleitores.
A minha hipótese é que esse acirramento esquizofrênico que assola o cenário político nacional atual ganhou fôlego no último pleito eleitoral (2014) e se consolidou com o resultado: vitória apertada de Dilma (PT) em relação a Aécio (PSDB), com uma diferença de 3,26%. Somente comparado a dois outros pleitos na história da república. A eleição de 1955 na qual JK-Jango (PSD-PTB) venceu Juarez Távora (UDN) com a ínfima diferença de 5,41%. E a de 1989, em que Fernando Collor (PRN) ganhou de Lula (PT) com 6,06%.
Tendo em vista esta pequena diferença, a oposição num primeiro momento entendeu que tinha legitimidade para protestar o resultado e, posteriormente, pedir o impedimento do mandato de Dilma. Esta celeuma se arrasta e traz sérias conseqüências para o País porque até o momento não existe fato jurídico capaz de interromper o mandato da presidenta eleita. É importante a observância em relação à Ordem Constitucional e o comportamento da Justiça, do próprio Executivo Federal, do Congresso e da Grande Mídia sob pena de se ter maiores conseqüências relativas aos pilares democráticos da nação.
Nenhuma força política tornou-se hegemônica e capaz de superar o contexto, nem mesmo surgiu um forte líder com capacidade legítima de reconstruir e pactuar o atual sistema entre os pares. O atual estado de coisas denuncia os dois pólos. Entre os conservadores, representado pelos partidos DEM, PPS, PSB, PMDB e PSDB, a falta de compromisso com os valores democráticos e republicanos. Por parte dos progressistas, o envolvimento em escândalos, o distanciamento de sua base social de sustentação e o afastamento de bandeiras históricas, entre elas, a da ética. Aspecto que une todos os atores e partidos políticos que integram o atual sistema político.
Nestes termos, o imbróglio continua e as conseqüências políticas e econômicas também. Mas os últimos passos da justiça e dos atores políticos parecem deixar cada vez mais evidente a fragilidade do processo de impedimento do mandato da Presidenta da República. No entanto, no decurso do processo existe um enorme desgaste dos atores e das instituições que abalam a legitimidade dos poderes – executivo, legislativo e judiciário. Por conseguinte, esperemos um pouco mais para conhecer o desfecho do imbróglio e suas conseqüências para o Brasil!”
IGS Web: Há alguma possibilidade de sobrevivência para Dilma e Lula?
Marcondes Secundino: “Como mencionei antes, o cenário político é complexo e todos os atores e partidos políticos sairão deste processo altamente desgastados. A classe política desgastada juntamente com o princípio de igualdade e de isonomia nas instituições republicanas. Por outro lado, o cidadão poderá sair desse processo com uma consciência mais crítica em relação aos valores democráticos, aos seus direitos sociais e, conseqüentemente, em relação ao processo político eleitoral. Pode se tornar um cidadão mais criterioso e vigilante. Poderá avaliar e cobrar imediatamente a reforma deste sistema político carcomido e superado.
Dilma e Lula poderão sobreviver politicamente? Acho que sim, mas depende da vontade e habilidade deles, sobretudo de Lula. Em entrevista este ano, Tarso Genro, ex-Governador do Rio Grande do Sul pelo PT, tratou deste assunto. Mencionou que o vigor do partido e da liderança política de Lula depende da capacidade e disposição dele para se reencontrar com as bases sociais que o apóiam. E manda um recado, somente ele teria livre trânsito e legitimidade no partido e entre os movimentos sociais para reconstruir esse novo pacto democrático e popular. Eis o desafio!”
IGS Web: A imagem do mito Lula e a onda reacionária: Quem ganha? Quem perde?
Marcondes Secundino: “O mito Lula foi construído no campo político democrático-popular. Sem dúvida uma liderança carismática, mas de vertente democrática, incluindo defeitos e virtudes da condição humana. Ao chegar a Presidência da República, optou por um modelo de Estado provedor, voltado para a defesa de direitos fundamentais, políticas públicas inclusivas e distributivas como forma de reduzir desigualdades sociais e regionais. Mexeu com estruturas arcaicas da sociedade brasileira contemporânea. Resultado, reação reacionária. De acordo com o Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, refere-se ao comportamento “que se opõe às idéias voltadas para a transformação da sociedade”. Ou seja, o poder do atraso no Brasil é resultado de acontecimentos históricos e opções políticas das elites dirigentes conservadoras, as quais marcam tramas, trajetórias e personagens da nação.
Para exemplificar e compreender o acirramento ideológico atual, pode-se recuar no tempo e observar o que aconteceu no processo eleitoral de 1955 e no Golpe de 1964. Momentos históricos que explicitaram a tentativa de avanço de forças políticas reacionárias, na marra e a margem das regras democráticas.
A eleição de Juscelino Kubitschek e João Goulart (1955) representou a vitória democrática de um amplo arco de aliança de centro esquerda (PSD, PTB, PCB, etc), após o traumático suicídio de Getúlio Vargas. Do outro lado, a direita derrotada, representada principalmente pelos udenistas e a liderança emblemática de Carlos Lacerda, logo tentou boicotar o processo eleitoral. Num primeiro momento divulgou-se uma falsa carta que supostamente envolveria o então Ministro do Trabalho e vice-Presidente eleito, João Goulart, com o Presidente argentino, Juan Péron, no sentido, segundo a denúncia, de viabilizar no Brasil uma República Sindicalista. Outro passo foi a tentativa de anular o pleito no âmbito da Câmara dos Deputados, sem sucesso. Essas tentativas a margem da Ordem Constitucional criou um ambiente ideologicamente acirrado e de incertezas políticas e jurídicas.
Quase uma década depois, essa Ordem foi quebrada com o golpe militar-civil de março de 1964. Derrubou-se o Governo João Goulart, representante do campo político progressista e democraticamente eleito. O processo teve início com as chamadas marchas da “Família com Deus pela Liberdade”, onde se exaltava a tradição, símbolos nacionais, os valores familiares, a “salvação da democracia”. Os que representavam o golpe, o campo político reacionário, prometiam limpar as instituições da corrupção, recuperar a economia e restaurar a “disciplina e a hierarquia das Forças Armadas” para se destruir a expansão do “perigo comunista”. Leia-se, o avanço do campo democrático e popular. O golpe contou com o apoio dos empresários, da imprensa, dos proprietários rurais, dos setores conservadores da igreja católica e da classe média contrários ao avanço do campo político democrático e popular. Além do apoio dos governadores da Guanabara, Minas Gerais e São Paulo; o golpe foi apoiado também pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), pela Federação das Industrias do Estado de São Paulo (FIESP) e pelo Governo Americano. Os representantes do golpe pregavam, ainda, a instalação de um governo “definitivo e apartidário”. Tamanha fantasia!
Resultado, ruptura da Ordem Constitucional, o Congresso foi fechado, as liberdades revogadas e a transformação de cargos eletivos em cargos biônicos, indicados! Ou seja, a instauração de quase três décadas de um regime militar-civil. Ora, é impressionante perceber a semelhança desses momentos históricos com o contexto atual, até mesmo tendo em vista a agenda e os discursos.
É relevante ressaltar que essas ações, acirramento ideológico e embate político delimitam fronteiras e marcam trajetórias de personagens e alianças no campo político em prol de projeto(s) de nação. Para diferentes personagens, diferentes caminhos. Direita e esquerda até hoje disputam projetos de Brasil, embora, no momento, todos os lados tenham em comum relação com práticas que destoam de uma virtude republicana e, por assim dizer, comprometidas com esse sistema político da democracia representativa. Entretanto, em meio a esse cenário complexo e acirrado, espera-se transformação social capaz de reformar o sistema e possibilitar o exercício de uma consciência cidadã, mais crítica e vigilante, baseada em valores éticos, democráticos e republicanos. Somente nestes termos poderá se combater ações e práticas reacionárias e nos tornarmos peregrinos de uma marcha comprometida com o presente e com um futuro radicalmente democráticos, mesmo conhecendo seus limites e imperfeições. Pois, é melhor errar coletivamente e dialogando na ágora da polís, do que definir o destino de uma nação com a certeza autoritária e reacionária de generais, tutores e iluminados combatentes de quartéis e gabinetes. O que se pode ganhar no presente, é garantir a independência entre os poderes, salvaguardar os pilares da democracia e criar mecanismos institucionais que inibam práticas de corrupção em todos os níveis da sociedade como forma de promover justiça social. Ressalte-se, que não seja apenas uma retórica!
IGS Web: Quais os impactos políticos e sociais da possível queda de Dilma?
Marcondes Secundino: “Já se instalou no País uma profunda crise política, muito assemelhada a que antecedeu o Golpe de Estado de 1964, como anteriormente mencionado. Uma parte dessa responsabilidade é creditada ao Governo. Outra, a oposição quando assume em público que vai encurralar o Poder Executivo, deliberadamente, tornando-o inerte. Os prejuízos são enormes e atingem a economia. Nessa área a oposição ganha aliados, representantes dos grandes grupos econômicos, que aprofundam a crise com boicotes no mercado através de altas abusivas de preços. A exemplo, o apoio recebido da FIESP.
Mas, tratar do possível impedimento do mandato de Dilma deve nos levar a refletir sobre o princípio da impessoalidade, o que nos remete a focar o debate nos valores e procedimentos inerentes a democracia. Os governos passam e a experiência democrática continua. É um patrimônio social. É uma experiência que deve ser vivenciada e aperfeiçoada permanentemente. Não existe um ponto ideal da democracia. Cada grupo social, coletividade, geração constrói sua própria experiência de convívio e de nação a partir do estabelecimento de regras e contratos sociais. É uma construção histórica, portanto, dinâmica e imprevisível. O desafio coletivo é não romper com o contrato social e o arranjo institucional vigente. E o legado é salvaguardar de forma imperativa os pilares da democracia. Numa perspectiva histórica, não consigo perceber o perigo de restabelecimento de um regime militar no Brasil, mas pode-se provocar um trauma social profundo com investidas à margem da Ordem Constitucional. Uma saída republicana seria a construção de um pacto nacional com a participação de líderes e representantes de todas as forças políticas instituídas com vistas à superação do impasse, obedecendo aos imperativos democráticos”.
IGS Web: É possível prevê algum cenário?
Marcondes Secundino: “Seria excessivamente especulativo. A única certeza que se pode expressar é a de que o impedimento do mandato de presidente nesse contexto e nessas condições não aponta para a superação da crise. O País continuará se arrastando sem leme – feito o PMDB que decolou uma nave sem tripulantes –, com uma opinião pública desconfiada das instituições garantidoras da isonomia e do direito da igualdade diante da Lei, bem como com uma classe política desacreditada e sem legitimidade. O cenário é imprevisível e depende dos interesses, da vontade e da habilidade dos atores políticos nacionais. Espera-se que atuem com a virtù maquiavélica, ou seja, conduza suas ações em defesa da vida pública e em detrimento de valores e interesses mesquinhos e pessoais”.
A grande polarização nacional se faz presente no município. O PT elegeu e reelegeu o atual prefeito que apoiará o sucessor do seu partido, o pré-candidato Luis Aroldo. O PSDB terá a sua pré-candidatura indicada pelo ex-prefeito Numeriano Martins, que também comanda o PP municipal, e certamente alinha-se com o PMDB e o PSB local, seguindo, provavelmente, uma orientaçãopalaciana. Concorre por fora da polarização PT-PSDB a pré-candidatura do PDT, de Aureliano Pinto. Candidatura que deve procurar entender o atual cenário e definir sua estratégia política visando construir um caminho alternativo a esta polarização. O desafio é atrair o eleitorado crítico e esgotado dessa polarização ideológico nacional, cansado de intolerância e de hipocrisia política que têm marcado o debate público brasileiro. Fica a pergunta, será esta candidatura capaz de se consolidar como alternativa no cenário político local? Qual a sua estratégia política e o eleitorado a que se dirige? São estes os desafios da candidatura do PDT!
Para finalizar, não poderia deixar de mencionar um exemplo de pragmatismo político em Águas Belas que sinaliza para uma ciranda familiar e ideológica, representativa do que ocorre no plano nacional. E aqui, ressalte-se, o ensinamento da filósofa Hannah Arendt que aponta o perigo dos interesses privados e familiares dominarem a Política. Caso ocorra, estaríamos diante da eliminação do caráter público da política, do diálogo e da participação, enfim, da própria democracia. Famílias ligadas ao campo político conservador na região – sobretudo, ao DEM, antiga ARENA, PDS e PFL e ao próprio PSDB –, inclusive apoiando o regime militar-civil na década de 1980, hoje integram o Governo Municipal do PT em Águas Belas e representam o PSDB em Saloá. Esse jogo político revela uma esquizofrenia política dessas famílias por serem ao mesmo tempo contra e a favor do impeachmentda Presidenta Dilma. Fato curioso para se entender um pouco a política local e a lógica da construção de alianças nacionais visando paixões e interesses em nome de virtudes republicanas”.
P.S.: do Realpolitik: Entrevista concedida pelo antropólogo Marcondes Secundino ao site IGS Web, aqui reproduzida com a autorização do autor. Esta entrevista foi concedida um pouco antes do desfecho das urdiduras golpistas que culminaram por usurpar o mandato da presidente Dilma Rousseff. Nela, o antropólogo analisa o cenário nacional pré-golpe, fazendo uma análise de conjuntura política lúcida e importante para entendermos um pouco mais sobre o contexto, manhas e artimanhas que levaram o país a esse estágio de crise e impasse institucional.
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