José Castilho Marques Neto
Naqueles primeiros anos da década de 1970 de reconstrução democrática após a dizimação sangrenta de toda resistência ao arbítrio e à brutalidade da ditadura civil-militar, nós, que recomeçávamos a resistência contra a opressão, não sabíamos pensar ou agir no singular. O plural e o coletivo nos inspiravam e orientavam nossas ações, a despeito das diferenças entre os poucos e aguerridos grupos que reconstruíam o movimento estudantil (ME) na USP.
Escrever um depoimento na primeira pessoa, como me pede a CULT, sobre um inesquecível encontro com Michel Foucault em 1975, é uma difícil tarefa. Além, é claro, da lembrança incômoda de um período no qual muitos de nós tivemos parte da juventude ceifada pela onipresença do arbítrio e da usurpação dos direitos mais fundamentais.
A verdade é que tínhamos muito medo e do medo tiramos uma força solidária que nos fazia vibrar a cada colega que se juntava a nós tornando-se companheiro de luta e resistência, unidade indivisível que expressava uma vontade de liberdade cada vez mais plural. Queríamos mais do que sobreviver, queríamos viver plenamente.
Com esse espírito e vontade comecei meu curso na Filosofia da USP em 1972. O convívio entre os estudantes acontecia em ritmo lento, as conversas contidas se aprofundavam conforme o ritmo da confiança que ganhávamos entre nós pouco a pouco. Os colegas da pós-graduação se achegavam, procuravam nos influenciar sobre as questões do país e da necessidade de reerguer o ME. Engajar-se ou se alienar tentando manter distância dos tímidos movimentos de recriação de espaços representativos como os Centros Acadêmicos foram as primeiras dúvidas quase filosóficas que tive que enfrentar.
Eram tempos de censura às notícias e opiniões políticas nos diários e, ao mesmo tempo, de explosão cultural e transgressões da ordem imposta. Livros proibidos de humanidades eram comprados em outros idiomas na banca do Raul Castell nos “Barracos” da USP ou em algumas livrarias no centro velho, como a Duas Cidades, a Brasiliense, a Avanço, capas embaladas em papel pardo para o caso de alguma “batida” nas ruas paulistanas. Ao mesmo tempo surgiram novos ares na imprensa: “Brasil Mulher”, “Lampião”, “Em Tempo”, “Movimento”, “Nós, mulheres”, “Versus”, “Bondinho”, “ex”, “Jornal da República”, os chamados “nanicos” eram contra a censura e a ditadura, se alinhavam à contracultura, à argumentação oposicionista, aos direitos das mulheres e homossexuais.
Tempos de medo, mas tempos de reação. Tomei a decisão de juntar-me aos colegas que reconstruíam o Centro Acadêmico de Filosofia – CAF, batizado por nós “João Cruz Costa”, o inesquecível professor aposentado da USP que nos acolheu algumas vezes em sua casa para contar histórias da faculdade e nos animar com sua erudição filosófica.
Éramos poucos, mas irmãos quase siameses. De todos, eu e Vânia, e mais tarde Jorge, éramos os mais inseparáveis. No CAF fazíamos murais de notícias, fomentávamos grupos de debates, montávamos mesas-redondas com professores da casa e outros aposentados compulsoriamente, como José Arthur Gianotti. A Filosofia foi a primeira unidade da USP a proclamar um CA livre. Não tínhamos uma diretoria hierárquica, mas um grupo de lideranças que coordenavam os trabalhos.
Na pauta de lutas estudantis a autonomia universitária, o Decreto 477, o combate ao ensino pago ganharam maior densidade em 17/03/1973 quando os órgãos de repressão assassinaram o nosso colega Alexandre Vanucchi Leme. A missa na Catedral da Sé em sua memória, celebrada por D. Paulo Evaristo Arns, mobilizou 3.500 pessoas que enfrentaram o enorme aparato repressivo que se formou na região. O passar pelo corredor de PMs para entrar na Sé naquele início de noite foi uma das experiências mais assustadoras por que já passei. Mas o ar de solidariedade e revolta ativa que recebíamos ao entrar na catedral enchia nossos pulmões de vontade e força para seguir resistindo.
Desde então o ME avançou em lutas por liberdades democráticas. Em 1974 constituiu-se o Comitê de Defesa dos Presos Políticos e, em 1975, a famosa “greve da ECA” marcou a USP com a primeira concentração estudantil desde o AI-5.
Foi nesse contexto de repressão, medo e resistência ativa, que conheci Michel Foucault em 1975, não como aluno ou pesquisador de sua obra, mas como jovem militante e estudante de filosofia combatente da ditadura militar.
À ousadia das manifestações estudantis em 1975, a ditadura reagiu efetuando várias prisões de estudantes, e fez o mesmo com a resistência civil ao golpe, prendendo jornalistas, professores e sindicalistas, alguns deles membros de partidos clandestinos de esquerda.
Em setembro e outubro essas prisões se intensificaram e, justamente nesse período, Michel Foucault, que acabara de lançar uma de suas mais importantes obras – Vigiar e punir –, estava ministrando um concorridíssimo curso na Psicologia da USP, nos mesmos “Barracos” em que estudávamos.
A primeira vez que eu o vi foi atendendo a um chamado de socorro dos organizadores que me procuraram, e à Vânia, para convencer nosso colega Luiz Gonzaga, que sofria de alguns distúrbios emocionais, a se retirar da frente da mesa onde Foucault ministrava sua conferência. Com uma garrafa de cachaça na mão, já alterado, Luiz falava alto: “Bobagem”, “Mentiras”, para espanto do culto auditório. O clima estava quase hostil para com ele e entre os poucos olhares de compreensão e de aceitação daquela contravenção explícita da ordem, estava o de Foucault. Delicadamente conversamos com nosso amigo e o conduzimos para seu habitat naqueles anos, o CAF. Mas me sobrou o olhar não discriminatório do ilustre palestrante.
A repressão se intensificou, o clima estava tenso e o medo à flor da pele. No dia 22 de outubro a Profa. Marilena Chaui nos procurou e nos informou que Foucault estava disposto a se manifestar contra a repressão de Estado que estávamos sofrendo e gostaria de saber o que sugeríamos enquanto ME. Lembro que de pronto afirmamos que renunciasse às aulas, denunciasse a ditadura militar no exterior e expressasse sua solidariedade aos presos. No dia seguinte, 23, teríamos uma Assembleia Universitária no Salão Caramelo da FAU-USP contra as prisões e convidamos Foucault, que prontamente aceitou. Apenas pediu uma conversa prévia antes do evento.
Coube-me fazer essa conversa e por volta das 8 h do dia 23 de outubro de 1975, às vésperas da prisão e antevéspera do assassinato de Vladimir Herzog, lá estava eu, com 22 anos, em um banco na Praça Roosevelt, aguardando o famoso filósofo e seu colega (e nosso professor) Gerard Lebrun.
Recordo-me de que preparei esse encontro com toda a apreensão do mundo, não porque iria encontrar um filósofo de renome internacional, mas porque o assunto era por demais importante e estratégico para a nossa luta democrática. É incrível como a juventude e a força da época de combate ao arbítrio podem tornar-nos, mesmo muito jovens, avessos ao deslumbramento.
Novamente a atitude de um verdadeiro mestre se impôs perante a notoriedade do filósofo estrelado. Tive dele diálogo objetivo, questionador, respeitoso e atento a um jovem estudante que o escutava, o compreendia em francês, mas que precisava de um tradutor (Lebrun) para fazer-se compreender. Não era um diálogo de intelectuais, entre pares, mas o respeito cidadão se impunha e tivemos uma longa conversação sobre o que estávamos construindo no ME, no foco de nossas lutas, na situação dos presos políticos e no horror cotidiano de estudar e trabalhar sob uma ditadura sanguinária. Ele ouvia, argumentava, questionava. Ao final disse-me: “vamos, estou pronto, podemos ir, farei lá uma declaração renunciando às aulas e denunciarei no exterior o que está se passando no Brasil”.
Tomamos o primeiro táxi que passou, um fusca apenas com o banco traseiro. Sentei-me ao meio, ladeado por Lebrun e Foucault e, naquele momento, senti “cair a ficha”, como se dizia na época. Subia a Consolação com um dos pensadores mais polêmicos e inovadores daquele período e o sentia próximo a nós, à nossa luta, à nossa identidade. Como tantos professores que estavam conosco naqueles tempos, Michel Foucault também era um dos nossos.
A chegada à FAU criou um justificado murmúrio na assembleia que já estava acontecendo. Levei-o aos bastidores onde alguns colegas já nos esperavam. Ele pediu papel, sentou-se à mesa e rapidamente escreveu um pequeno texto de dois parágrafos. Glauco fez a tradução para o português, alguns revisaram e me coube ler a versão para a assembleia ao lado de Foucault que leu o texto em francês. Aplausos emocionados, vibração genuína pelas palavras fortes do filósofo que se recusava a continuar dando aulas num país que prendia e torturava intelectuais e trabalhadores.
No manifesto, o prenúncio do que viria a se tornar realidade nos anos vindouros, a de aproximação do ME com o novo sindicalismo que já se anunciava em 1975 no ABC: “Na defesa dos direitos, na luta contra as torturas e a infâmia da polícia, as lutas dos trabalhadores intelectuais se unem à dos trabalhadores manuais”.
Terminada a leitura nos demos as mãos com energia e olhos emocionados. Nunca mais o vi, apenas o acompanhei ao longe, nas leituras e nas incontáveis polêmicas de sua vida. Mas o garoto aguerrido de 22 anos, ainda em formação, recebeu de Foucault outro tipo de lição que certamente o ajudou a marcar sua própria trajetória intelectual como professor e cidadão. Tempos duros, mas de grandes lições!
JOSÉ CASTILHO MARQUES NETO é doutor em Filosofia pela USP
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
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