Tarso de Mel
Retrocesso após retrocesso, derrota após derrota, tragédia após tragédia, ouço meus amigos perguntarem até quando vamos tolerar tanto retrocesso, tanta derrota, tanta tragédia. Não achamos respostas e, a cada nova pancada, as perguntas ficam ainda mais pesadas. Alguns dizem logo: tudo vai ficar ainda pior – e nisso não há uma resposta. Outros preferem se alienar do debate político – e aí também não há uma resposta. Dizer, instruidíssimo, que nada vai barrar essa onda terrível ou, alienadíssimo, tapar os ouvidos para levar sua vida pessoal em frente, no fundo, são posturas com o mesmo efeito prático. Retrocessos, derrotas e tragédias não escolhem suas vítimas apenas entre aqueles que resistiram: atingem a todos que não puderam fugir.
No entanto, entre aqueles que não querem apenas assistir à vida por aqui se tornar ainda mais insuportável, se há algum consenso, é que temos que agir com urgência. É claro que toda essa onda vai bem além da eleição e o resultado das urnas não trará soluções mágicas, mas é inevitável que, neste momento, a pergunta “o que fazer?” se reduza à simples “em quem votar?”. Num certo sentido, as mesquinharias da eleição adiam debates e tarefas mais importantes para a esquerda (a propósito, escrevi sobre essa questão na CULT que chega às bancas nesta semana).
Quando nos perguntamos “em quem votar?”, tendo no horizonte retrocessos, derrotas e tragédias, é como se estivéssemos, enfim, diante da oportunidade de dar uma contribuição verdadeira para resolver alguns (e evitar outros) problemas do país. Com a proximidade do momento em que apertaremos as teclas na urna eletrônica, não é mais possível se esconder detrás daquele “nós” indeterminado que pergunta, a cada notícia ruim, “quando é que vamos fazer alguma coisa?”. Eu, meu título de eleitor e a cabine, enfim, fechamos um circuito em que expressões abertas como “os brasileiros”, “o povo”, “os trabalhadores”, “os pobres” não me socorrem mais.
É claro que não estou falando aqui de quem afirma “voto porque sou obrigado” ou “o voto é secreto, então é problema meu”. Refiro-me aos eleitores que, a despeito da obrigatoriedade, pensam com responsabilidade em seu voto e, a despeito do segredo, querem poder declarar e defender as razões do seu voto neste ou naquele candidato. A meu ver, essa é a parte do eleitorado que está neste momento buscando respostas para as questões que fiz no início do texto e, mais que tudo, perguntando com sinceridade a si próprio: “do que não abro mão na hora de decidir meu voto?”
Sem dúvida, esta é uma questão difícil. De início, apesar do seu caráter subjetivo, as razões do voto deveriam se limitar por alguns parâmetros objetivos. Por exemplo, se o voto é próprio da democracia, minhas razões para votar jamais poderiam ser antidemocráticas, mas estamos muito distantes disso. Não apenas no Brasil, parte expressiva dos votos tem sido uma espécie de reação à democracia, porque, basta surgir algum avanço democrático, logo aparece um candidato que surfa na defesa dos valores que, supostamente, foram atingidos por aquele avanço. Lembremos, para ilustrar, de tantos candidatos que se projetam defendendo “a família” contra o que afirmam ser a “degeneração dos valores tradicionais”, quando, na verdade, tal avanço decorre apenas do respeito à igualdade, à diversidade e a tantos outros direitos fundamentais.
No mesmo sentido, é lamentável que, após 30 anos de Constituição democrática, as campanhas eleitorais, em todos os níveis, apresentem uma participação crescente de candidatos que ostentam patentes militares (cabos, sargentos, tenentes) ou credenciais religiosas (bispos, pastores, missionários) e, mais que isso, são bem-sucedidos nas urnas em razão de propostas francamente antidemocráticas.
E o mesmo vale para outros parâmetros, também fixados na Constituição, que temos sido obrigados a debater novamente a cada eleição, como se não existissem, nos campos da economia, da cultura, dos direitos sociais, entre outros. Por conta disso, somos levados a debater as razões do voto num ambiente completamente sem margens, em que todos os posicionamentos têm o mesmo valor a despeito de corresponderem a ou, frontalmente, ofenderem diversos direitos e garantias.
No caso da eleição presidencial, chega a ser hilária a forma como discursos e programas dos principais candidatos atropelam quaisquer limites (entre as instituições, entre os países, entre o real e o sonho), como se, começando a frase com “no meu governo…”, ao eleito tudo fosse permitido – e possível. E, entre os efeitos perversos desse descolamento entre o que verdadeiramente está em jogo na eleição e as pirotecnias da promessa, está fazer com que, a cada eleição, vários eleitores se digam desiludidos e migrem para o bloco dos que não querem saber de política ou votam “contra tudo que está aí”. E a presidência é apenas a ponta desse triste iceberg.
Neste ano, em especial, a disputa pela presidência está sufocando, mesmo entre os eleitores mais dedicados, a atenção para os demais cargos, num momento em que, além da chefia do Executivo federal, estão em disputa todos os cargos de governador, deputado federal, deputado estadual e dois terços do Senado. Bem sabemos que é principalmente no Legislativo que retrocessos, derrotas e tragédias costumam ser promovidos ou evitados. Ainda que o Executivo seja decisivo para nossas alegrias e tristezas (Lula e Temer que o digam, respectivamente), bem pouco acontece sem passar pelo Legislativo e, cada vez mais, pelo Judiciário, que, não obstante, segue blindado a quaisquer formas de democratização de sua própria estrutura.
O nó, portanto, é dos mais complexos, porque entre as razões de cada voto deve estar a compreensão de que, por mais insignificante que seja nossa decisão pessoal no todo do eleitorado e, mais ainda, na correlação de forças dentro do Estado e da sociedade, o voto integra um esforço coletivo para que seja respeitado um determinado conjunto de decisões políticas protegidas constitucionalmente, que não podem ser simplesmente descartadas a cada eleição, porque, sem respeitá-las, não faz mais sentido qualquer uma das instituições. Por isso, votar em quem quer destruir até mesmo a possibilidade do voto ou em quem quer negar direitos e realizar políticas mirabolantes contra o núcleo fundamental da Constituição Federal, não é apenas um contrassenso. É uma forma de tornar nossos males ainda maiores.
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