Carla Rodrigues
“O século 20 é o século dos objetos, e o objeto que melhor representa o século 20 é a ruína, um objeto bem formado, conforme à compreensão comum que se tem do objeto, que ocupa um lugar no espaço, pode ser produzido, ser acessível aos sentidos, ainda que, na prática, este se apresente como ligeiramente desestruturado”, escreveu o psicanalista francês Gérard Wajcman em Lacan, o escrito, a imagem (Autêntica, 2012), a quem vou recorrer para pensar os escombros do Museu Nacional como parte das ruínas que atravessam a cidade do Rio de Janeiro. As ruínas descritas por Wajcman marcam de forma indelével o Rio de Janeiro: é na implicação entre a nossa arquitetura e as nossas ruínas que está hoje o ponto de encontro que se configura como origem e destino da nossa tragédia.
Transformamos em museus ou centros culturais uma imensa quantidade de prédios históricos e temos palácios espalhados por toda a cidade. O Palácio Guanabara foi residência da princesa Isabel, desapropriado na República, fonte de uma batalha judicial até hoje. O Paço Imperial, como diz o nome, foi residência da família Real, em 1808. Temos o Palácio do Itamaraty, o Palácio Laranjeiras – hoje residência oficial do governo do estado – e o Palácio Tiradentes, sede da nossa primeira câmara, ainda no Brasil colônia, e também a cadeia onde Tiradentes ficou preso antes de ser enforcado. Na passagem para a República, abrigou o Ministério da Justiça e o DIPP da ditadura Vargas. Temos ainda Palácio do Catete, transformado em museu depois do suicídio de Getúlio e da transferência da capital para Brasília, a primeira sede do Banco do Brasil, hoje centro cultural, assim como a primeira sede dos Correios.
A tragédia do Museu Nacional era ser parte desse grupo de heranças históricas – virou cinzas a Sala do Trono, usada como gabinete de dom Pedro II – e ao mesmo tempo ser muito mais do que isso. Seu acervo abrigava preciosidades da história da humanidade e por isso provocou manifestações mundiais de pesar, tamanha a importância e raridade das peças e coleções ali perdidas, do incomensurável do que nunca mais poderá ser substituído. A perda é muito aguda para quem vive no Rio de Janeiro, para quem trabalha na UFRJ (universidade cujos prédios estão sendo destruídos pelo fogo há alguns anos), e por isso me parece que o único trabalho de luto possível é insistir na importância do museu para além das terras cariocas, fluminenses ou mesmo brasileiras.
Transformá-lo em metáfora de um país em ruínas é pouco diante do tamanho da perda, é um olhar provinciano sobre o patrimônio mundial que abrigávamos. Penso que as ruínas identificadas por Wacjman na Europa do século 20 chegaram ao continente latino-americano depois, diacrônicos que somos em relação às temporalidades hegemônicas dos países do Norte. Fomos sendo arruinados aos poucos – ao contrário dos países arruinados de uma só vez pelos bombardeios da Segunda Guerra –, destruindo o Morro do Castelo aqui, derrubando o Palácio de Monroe ali, apagando a arquitetura do passado sempre em nome de uma promessa vã de modernização de fachada. Jamais fomos modernos e nem assim fomos capazes de dar valor ao passado, à história, à memória.
O Museu Nacional é, apesar das ruínas, um monumento à ciência, ao valor do conhecimento, à pesquisa. Estar instalado num prédio histórico é, em parte, consequência de como essa ciência começou a ser feita no Brasil, para contar as nossas próprias origens como povo e continente, o que terminou por fazer do museu referência internacional em antropologia e arqueologia. Por isso, mais uma vez as ruínas de Wacjman me são tão úteis: me ajudam a sustentar como hipótese de que arruinar a história não é um tipo perverso de descaso, é um projeto. Não deste governo, dos governos passados ou retrasados. Arruinar a história é a reafirmação de um processo permanente de colonização, aqui entendida como forma de dominação sobre todos aqueles cujas histórias não podem ser contadas. Ou, como tão bem identificou o filósofo Walter Benjamin diante das primeiras ruínas do século 20: “Os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E o inimigo não tem cessado de vencer.”
Carla Rodrigues é professora do departamento de Filosofia da UFRJ
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
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