Alessandra Parente
Quando o mundo está de pernas para o ar e há quem ranja os dentes, babe de ódio ou até enalteça armas de fogo na vida política, não raro imagina-se que a melhor forma de resistência seja pender, tão rápido quanto possível, para outro lado, no qual ainda restam intactos sinais de bom-senso e sanidade. Renuncia-se às sutilezas, aos detalhes, à complexidade e aceita-se de pronto tudo que preserve feições civilizadas. Dito de forma sucinta: ante circunstâncias tão insólitas, advoga-se a irrelevância das minúcias. Primar pela reflexão cuidadosa ou atentar para pequenas diferenças emerge, então, como sinal de futilidade – não é incomum que tenazes análises da situação sejam vistas como veleidades. O que passa a interessar é um bem maior, contrário a qualquer marca de barbárie.
Falar sobre arte parece ainda mais grave – luxo descabido, disparate excêntrico. Violar juízos dessa natureza, porém, é uma das razões deste texto. Outra é uma aposta de que o gesto de zelar pelos pormenores torna-se, em si, espécie de antídoto contra a barbárie. Igualar arbitrariamente diferenças ou simplificar dificuldades implica renunciar à árdua tarefa de garimpar os mais preciosos afetos e ideias – o medo do pior pode levar tudo de roldão, até as melhores coisas.
Falemos, pois, sobre arte. Tratemos, em verdade, de aspectos ainda mais particulares: certas sutilezas psíquicas em processos de produção e recepção de obras artísticas e algumas diferenças formais atreladas às peças de arte que resistem à barbárie ou que se pretendem mesmo revolucionárias.
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Depois de ter sido duramente criticado por Theodor Adorno em sua Teoria estética (1970), o conceito freudiano de sublimação atravessa as balizas exclusivamente clínicas da psicanálise; ainda que atacado, penetrou irreversivelmente o campo da Estética.
O conceito de sublimação era, como Freud fora em termos de arte, anacrônico até mesmo para as primeiras décadas do século 20. Guardava sabores conservadores que, junto ao ar novo, também compunham o gosto da Belle Époque. Seu mérito, de todo modo, foi radiografar, pela primeira vez, detalhes da engenharia psíquica no ato da criação ou da recepção da obra.
Mas traçar o conceito de sublimação não foi o último passo dado por Freud no campo da Estética. Logo após a guerra, Freud desenhou uma nova categoria que, ao contrário da sublimação, vibra potente ainda hoje: das Unheimliche.
Talvez não seja exagero considerar que o grupo de críticos americanos, reunido em torno das publicações da revista October, seja aquele que mais sistematicamente utilizou conceitos da psicanálise para suas análises da arte contemporânea. Coordenada por Rosalind Krauss e Annette Michelson, a revista conta, entre outras, com a contribuição de Hal Foster, proeminente nome da crítica de arte. A articulação entre obras artísticas e as teorias freudiana e lacaniana abriu caminhos verdadeiramente inéditos no campo da Estética. Entre o vasto trabalho de Hal Foster, o fenômeno unheimlich ganha lugar especial no estudo sobre o surrealismo em Beleza Compulsiva.
Seguindo Freud, Foster percebe a íntima relação entre trabalhos surrealistas e a experiência do trauma: “se o maravilhoso como leitmotiv do surrealismo envolve o Unheimliche, e se a experiência unheimlich, como o retorno do reprimido, envolve trauma, o trauma deve, de alguma forma, estar no interior da arte surrealista […]”.
Na psicanálise, o trauma está ligado à temporalidade (Nachträglichkeit) e ocorre em dois estágios: seguindo a ordem cronológica, o tempo 2 ocorre antes e se refere às marcas do recalque originário, e o tempo 1 é o do après–coup ou o da nachträglich (só-depois). O trauma é a única maneira de estabelecer elos entre impressões mnemônicas do infantil e a força do presente. Ou seja, para que seja possível conceber alguma ordem temporal, o tempo 1 – que ocorre só-depois – deve incidir sob a forma de um golpe sobre os nós psíquicos do tempo 2 – que ocorre cronologicamente antes. Só pelo golpe do trauma estabelece-se a lógica psíquica do antes e depois, só ele torna possível a articulação de uma representação temporal.
Como efeito do trauma, muitas obras expressionistas, dadaístas ou surrealistas embaralharam a narrativa temporal que prevalecia na tradição e pressionaram antigos contornos formais e discursivos para novas configurações. Daí que seja possível observar como a engrenagem psíquica entre aqueles que produzem obras expressionistas ou surrealistas e aqueles que com ela se defrontam está muito próxima da descrita por Freud em das Unheimliche.
Não é difícil notar, que o recurso do estranhamento traumático ainda integra fortemente obras artísticas contemporâneas. Basta lembrar de alguns dos elementos agrupados por Freud em seu texto para reconhecê-los também no campo das artes – o duplo, o palhaço, a boneca, os autômatos, os fantasmas, os animais, a vagina etc. Por mais diferentes que sejam, Eduardo Berliner, Cindy Sherman, irmãos Chapman, Jane Alexander são alguns artistas que poderiam entrar no registro unheimlich. Cenas ou imagens que provocam asco, terror, medo, repulsa, mas que ao mesmo tempo atraem o olhar e incitam à reflexão – ao contrário do que atestava Gotthold Ephraim Lessing, essas peças grotescas ou monstruosas impactam e exigem mais da imaginação justamente ao escancararem violentamente os limites do repertório previamente existente.
O vigor dessas obras é incontestável, mas talvez caiba hoje a pergunta: como elas, guardando esse teor vanguardista de choc traumático, se posicionam no cenário contemporâneo da produção artística? Talvez quem melhor expresse esse impasse seja Ricardo Fabbrini, que inspirado nos escritos de Otília Arantes, expõe a seguinte passagem:
Não é possível restituir à imagem o seu poder de choc […] no sentido da modernidade artística, pois no correr do tempo esse efeito de choc rotinizou-se, perdendo assim todo efeito emancipatório – ou seja, “não liberou os potenciais cognitivos supostamente aprisionados nos domínios confinados da cultura afirmativa”. A “estética do choc”, em síntese, não configurou […] “o embrião materialista de um novo iluminismo” visado pelas vanguardas artísticas internacionais, “que finalmente desaguaria na conformação de uma ordem social superior”, a Utopia.Vanguardas e modelo etnográfico: questões atuais
Levando em conta o quadro apresentado, cabe a questão: será mesmo que tudo o que restou hoje foi o fracasso das vanguardas? Voltemos alguns passos antes de responder à essa pergunta. Alguns críticos (Arthur Danto e John Roberts) sugerem que, após a proliferação dos ready-made nos anos 1960, finalmente tivemos o que Hegel antecipou ainda no século 19: o fim da arte. Para John Roberts, nas últimas décadas esse anúncio tornou-se uma espécie de fantasma tenebroso. Em Hegel, argumenta, o fim da arte corresponderia a dois pensamentos, nenhum deles muito terrível: 1) sob novas condições pós-românticas, a força centrípeta anteriormente ligada à beleza e à mimesis acaba liberada para a abstração (conceituação) nas artes; 2) destrói-se qualquer noção de arte ligada a algo natural e, com isso, nasce um idioma próprio ao reino artístico.
De qualquer maneira, serenidade não é o que acompanha a ideia de uma arte pós-histórica. Ora vista como libertação, ora como pesadelo de declínio absoluto, o fim da arte é tópico inebriante, do qual dificilmente se escapa.
Fugindo dos termos articulados por John Roberts ou Arthur Danto e, por outro lado, admitindo como incontornável o anúncio sobre o “fim da arte”, impasses atuais podem ser divididos da seguinte maneira: 1) aqueles que interpretam o “fim da arte” como algo emancipatório, exaltando o “pluralismo estético” e o fim da lógica da autoria como conquistas a serem expandidas até a implosão do sistema capitalista, baseado no imperialismo de viés identitário e; 2) outros que veem advir, com o fim da arte, um percurso condizente com os interesses do mercado e, portanto, um retrocesso em relação ao momento anterior, no qual estava estabelecida a autonomia da arte. Vejamos melhor esses dois diferentes prismas.
Pela ótica daqueles que comemoram a queda da redoma de vidro que preservava a arte em sua condição de autonomia formal, bem como a suposta eliminação dos últimos restos heroicos do artista, fundados na ideia de autoria-criadora, a arte está a poucos passos de integrar-se aos destinos políticos e sociais compartilhados pelos demais cidadãos do mundo. Fazer cada vez mais parte da experiência cotidiana e do domínio da técnica não-artística seria, por conseguinte, caminho desejável. Inversamente a esse viés, há aqueles que veem nas ruínas da l´art pour l´art um fatal desastre, do qual só pode resultar a mais completa decadência.
Trocando em miúdos: no primeiro caso, a perda da autonomia da arte é vista como conquista, apesar do mercado de arte; no segundo, trata-se de recuperar a força inerente à autonomia da arte, supondo sua validade, enquanto o sistema burguês persiste em vigor. Seguindo este último argumento, a resistência aos moldes atualmente defendidos – contrário ao caráter heroico do artista e favorável a certo “pluralismo estético” – se deve ao pressuposto de que ainda haveria um poder da arte, quando preservado o seu lugar de autonomia. Só deste espaço isolado, supõe-se, seria possível forçar a tensão negativa contra o sistema burguês e assegurar a força revolucionária capaz de se opor a ele.
Do outro lado, o “pluralismo estético” é tratado como uma das realizações mais importantes do período pós-histórico nas artes. Como Andy Warhol, Arthur Danto comenta que todos os estilos são de igual mérito. Nenhum deles poderia se sobrepor ao outro. Claro que reconhecer tal pluralismo não significa limitar o papel da crítica – a questão do “pluralismo estético” se opõe, em verdade, à normatividade inerente à lógica ainda presente no período das vanguardas. Com elas, era comum que um estilo ou um manifesto sempre se sobrepusesse a outros. Compreender a arte como pós-histórica, como fez Arthur Danto, implica substituir a noção de sucessão temporal pela ideia de simultaneidade. Nessa espécie de relativismo cultural e de valores, a ideia de universalidade se dilui e, por outro lado, abrem-se canais inéditos para a arte de outras culturas, distantes dos cânones colonialistas ocidentais.
Dentro desse espectro, O artista como etnógrafo (1993), escrito por Hal Foster há mais de vinte anos, preserva sua vigorosa atualidade. Out of Bounds de Ibrahim Mahama (2017), exibido na última Bienal de Veneza ou Ágora: OcaTaperaTerreiro (2016) de Bené Fonteles na última Bienal de São Paulo, são apenas dois exemplos de trabalhos recentemente produzidos com estratégias e temas que poderiam ser abrangidos pela categorização estabelecida por Hal Foster. Ou seja, a técnica etnográfica ou antropológica permaneceu sólida nas artes visuais.
Essa reviravolta etnográfica na arte contemporânea, marcada principalmente pelos estudos pós-coloniais, pelos debates em torno do biopoder, pela segunda e terceira ondas feministas e movimentos LGBT, assim como pela pesquisa material no mundo artístico, não se restringe mais às instituições clássicas (estúdio, galeria, museu etc.) e amplia-se como uma rede discursiva de práticas voltadas para outras subjetividades e comunidades, bem como intervenções em espaços geográficos inusitados. O texto de Hal Foster é uma tentativa de delinear um novo paradigma, correspondente atual ao que foi o modelo da esquerda avançada, desenhado por Walter Benjamin em O autor como produtor (1934). Foster expõe a ideia do artista como um etnógrafo trabalhando em nome de um Outro cultural ou étnico. Para Foster, “embora possa parecer extremamente sutil, essa troca de um assunto definido em termos de relação econômica por outro definido em termos de identidade cultural é bastante significativa”.
Parece que, como Benjamin queria, a arte transbordou, em muitos casos, os limites circunscritos da l´art por l´art. Tornou-se um modo de estudo cultural. Depois das ousadas rupturas das vanguardas que atacavam critérios e cânones nascidos na Europa, o campo artístico ousou ultrapassar suas fronteiras, tendo como norte essa modalidade de pesquisa, a etnográfico-antropológica.
O problema do modelo etnográfico de produção artística reside no fato de que ele pode ser a mera repetição do trauma e não sua ruptura temporal, como era a produção vanguardista de teor unheimlich. Ou seja, ao invés de a arte etnográfica abrir o circuito temporal dentro da lógica do trauma, para rearticular traços reprimidos, essas tentativas de lidar com o passado oprimido repetem inadvertidamente a violência traumática no presente.
Dito com todas as letras: o viés etnográfico pode ser uma reiterada colonização traumática do Outro – mulheres, povos indígenas, africanos, LGBTs. Apresentá-lo como um objeto exótico dentro das instituições, cujos quadros foram criados para promover obras clássicas ou de vanguarda tanto do período europeu quanto do tardio, pode ser não apenas regressivo, mas extremamente violento. O risco não é menor quando artistas-mulheres ou artistas-africanos, por exemplo, recebem uma aura-fetiche ao entrarem nos sistemas de exposição e mercado artísticos. Essas poderiam ser, aliás, algumas das razões pelas quais existem resistências legítimas e justificadas ao modelo etnográfico nas artes visuais.
Recentemente, por exemplo, Ernesto Neto foi à Bienal de Veneza acompanhado por indígenas para fazer o que chamou de “ação coletiva” em uma das mais regressivas e violentas “obras”. Não se trata de exceção – muitas seguem esse método. O problema pode ser sintetizado nos seguintes termos: por um lado, é feita uma tentativa de restaurar nos ambientes artísticos uma imagem ou situação anterior à incidência da opressão – tarefa impossível, uma vez que o trauma já aconteceu (colonização, genocídio, violência misógina, racismo, etc.). Por outro lado, a defesa de um retorno ao modelo disruptivo e revolucionário das vanguardas não deixa de ser também uma posição conservadora, dado que a insurreição inerente às obras estava visivelmente voltada contra os códigos burgueses europeus anteriores à Segunda Guerra Mundial.
Como disse Peter P. Ekeh sobre a África: “Nosso presente pós-colonial foi moldado por nosso passado colonial”. Nessa breve frase, fica claro como não é possível simplesmente apagar o que já aconteceu, assim como também não é possível voltar às velhas estratégias subversivas, quando os problemas já foram colocados sob novos prismas – o que foi mérito, diga-se, de trabalhos vanguardistas.
Daí que o olhar tem que ser ainda mais fino. Não se trata, então, de descartar o modelo etnográfico. Ainda que guarde alguns problemas, ele preserva uma potência vigorosa nas estratégias artísticas atuais. Por outro lado, deve-se repensar a função do trauma incrustado nas bases formais das obras artísticas/intelectuais.
Em O autor como produtor (1934), Benjamin trata como infrutífera a velha polêmica em torno das relações entre forma e conteúdo – permito-me aqui ousar outro prisma. Longe de ser infecunda, a articulação dialética entre forma e conteúdo exige que se considere esses dois elementos separada e alternadamente, observando atentamente ora um, ora outro em suas intenções, mediações e contradições. Com isso, são engendradas as cruciais questões: a forma de uma determinada obra contradiz o conteúdo revolucionário que ela pretende trazer? A intenção revolucionária do artista é observável também nas mediações da produção e na forma assumida pelo trabalho? A forma de exposição da obra, por sua vez, elimina ou fortalece aquela intenção?
Como diz Walter Benjamin: o trabalho [do intelectual ou do artista revolucionário] “não visa nunca a fabricação exclusiva de produtos, mas sempre, ao mesmo tempo, a dos meios de produção.”. Acresce ainda que a “utilidade organizacional [das obras bem como de suas técnicas de produção] não precisa de modo algum limitar-se à propaganda. […]. Aliás, diz ele, “a melhor tendência é falsa se não prescreve a atitude que o escritor deve adotar para concretizar essa tendência”. Longe da propaganda barata, o artista ou intelectual “só pode prescrever a atitude [revolucionária] em seu próprio trabalho, isto é, escrevendo [ou produzindo obras de arte].
Justamente essa passagem contradiz a afirmação, feita por Benjamin, sobre o caráter estéril do debate forma-conteúdo. Dito de maneira simples: tratar da técnica implica necessariamente observar o caráter formal assumido por uma obra e sua relação com o conteúdo nela trabalhado. Forma emerge aqui como resultado da própria técnica ou meio de produção da obra. Se, como diz Benjamin, é na técnica de produção que o artista ou o intelectual tem que operar para que a obra seja tida como efetivamente revolucionária, é necessário que o olhar crítico se volte detidamente para a forma assumida por uma peça de arte ou para a obra escrita.
Deixar de olhar para os meandros da produção e tratar a obra somente enquanto produto último são atitudes que também trazem certos riscos. Um deles é a estratégia equivocada de fazer da “miséria um objeto de consumo” ou pior: transformar “em objeto de consumo a luta contra a miséria”. Ao escrever essa observação, Benjamin tinha em mente artistas da Neue Sachlichkeit que, em sua visão, exemplificam bem a aparência revolucionária a serviço da diversão ou da distração burguesa. Nesse caso, a vontade de decidir no interior da luta política converte-se em artigo ofertado como objeto de consumo – nada diferente disso poderia ser dito sobre algumas obras contemporâneas.
Por isso, seria necessário analisar singularmente cada obra, vendo-a em relação ao conjunto de trabalhos do artista e, ainda, como tal produção se articula no campo no qual se situa. Tudo isso em zonas de atritos e tensões dialéticas permanentes.
Há um elemento suplementar, porém, que a estratégia etnográfica introduziu no campo cultural contemporâneo e que definitivamente deve ser levado em conta: a voz concreta daqueles que antes integravam as obras apenas como objetos-temas.
Para dizer da forma mais simples possível: pode ser que, vivo hoje, Paul Gauguin tivesse que responder a delicadas questões levantadas pelos espectadores, representados na própria pintura. Questões sobre colonização, sobre lugar de fala e de representação, sobre limites da atual configuração acadêmica de arte e de produção intelectual estão na ordem do dia. São incontáveis os exemplos recentes de embates entre público e artista/intelectual (tensões como as vividas a partir dos debates entre Daniela Thomas e Juliano Gomes, Dana Schutz e Hannah Black, Mirna Anaquiri Kambeba Omágua-Yetê e Lúcia Hussak van Velthem, Erinma Ochu e Judith Butler são apenas poucos exemplos).
Falas que brotam da plateia de forma profundamente intensa e vibrante, muitas delas cheias de dores e marcas traumáticas que ultrapassam a experiência singular do enunciador. Palavras às vezes desarticuladas, outras vezes visceralmente engajadas, trazem a carga de histórias compostas de feridas atuais e longínquas – catástrofes incalculáveis. Do lado do palco, a inquietação não é menor – ante os limites de suas categorias, de seus olhares, de suas palavras, aqueles que detêm poder de fala espantam-se, defendem-se, fragilizam-se, estremecem. E desde que prevalece o “pluralismo estético”, vozes antes inauditas irrompem e ganham os palcos, mostrando os limites vergonhosos de algumas análises que preservam resquícios colonizadores, misóginos ou racistas. É verdade que desencontros acontecem, é verdade que os endereços das falas nem sempre são precisos, é verdade que são momentos delicados, mas vamos mesmo querer defender outros modelos depois de termos alcançado patamar tão fundamental?
O estrangeiro como horizonte
Correspondentemente ao campo etnográfico da Estética, a esfera psíquica talvez precise ser reajustada, agora em outra inscrição, diferente da noção freudiana de Unhemliche. Surge, ainda no velho Freud, outra categoria que, entrelaçada ao âmbito estético, permite observar a engenharia psíquica nos atos de recepção e produção artísticas na atualidade: o estrangeiro, tal como aparece em O homem Moisés e a religião monoteísta. Com ela, ao contrário do trauma psíquico ante o choc da imagem, há o gesto de encarar fantasmas, arriscar passos imprecisos em territórios indeterminados, fazer soar, ainda incerta, uma voz de contestação – como é cada palavra do espectador que se dirige ao autor/artista ante as tensões que brotam a partir da obra. São ímpetos de uma racionalidade oriunda das marcas do inconsciente – eles penetram espaços fronteiriços, atuam em tempos anacronicamente sobrepostos e articulam balbucios que se esforçam por traduzir os mais intensos afetos e marcas históricas. A estrutura formal dessas manifestações não é menor por carregar, junto de si, sua precariedade – ao contrário, seu vigor está alocado exatamente aí.
Conceder estatuto de cidadania aos rudimentos da obra e ao que dela ainda vibra impreciso é uma das características do caráter etnográfico, que opera pelas funções do estrangeiro pensado por Freud. Do lado do espectador, fagulhas e tensões na recepção das obras são partes centrais do próprio encontro com elas – como, aliás, já previra, de certo modo, Marcel Duchamp. Nesses registros, cabe a cada um abandonar elementos narcísicos e arriscar formas inconsistentes daquilo que estremece desconhecido em nós e na cultura que sustenta pilares, muito frequentemente, nada confiáveis.
Alessandra Parente é psicanalista e pesquisadora de pós-doutorado do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
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