O ensaio, assim como o conto, trata-se de um gênero que provoca muitas polêmicas. O que na realidade é um ensaio? Apesar de sempre consultar as teorias a respeito do assunto, o bom senso nos guiam na identificação daqueles textos que permanecem perenes ao longo dos anos, que não se esgotam pelas novas informações do dia seguinte. É esta a premissa que nos orientam na produção de textos com este perfil. Alguns textos publicados aqui pelo blog, por exemplo, permanecem perenes ao longo dos anos, como aqueles onde abordamos as mudanças no mundo do trabalho - que já foi um tema do nosso interesse no passado - assim como uma série de textos que publicamos sobre os novos regimes de governos autocráticos, a partir de livros distópicos, como 1984, de George Orwell, onde nos apropriamos das formulações do escritor inglês sobre regimes autoritários para analisarmos as novas autocracias ou as chamadas democracias iliberais.
Esta é a nossa primeira experiência com o gênero, ao revolvermos reuni-los num único livro. Há alguns anos atrás, realizamos uma pesquisa ainda no escopo do guarda-chuva institucional sobre relações étnico-raciais, onde mantivemos contato com a Irmandade da Boa Morte, uma entidade religiosa que realiza um festejo prestigiado internacionalmente, sempre nos meses de agosto, na cidade de Cachoeira, localizado na região do Recôncavo Baiano. O evento, realizado em conjunto por religiões de matriz africana e a Igreja Católica, reúne turistas do mundo inteiro. A cidade, repletas de templos católicos, prédios históricos é banhada pelo Rio Paraguaçu, um rio genuinamente baiano.
O último livro do escritor Itamar Vieira, Salvar o Fogo, é ambientando num casarão histórico da cidade. A experiência foi muito positiva, uma vez que estabelecemos contatos com pessoas importantes, que nos repassaram informações cruciais sobre a origem da entidade, assim como sobre a integração das religiões de matriz africana com os ritos da Igreja Católica. Alias, a Igreja Católica, na realidade, foi quem criou a Irmandade na cidade de Cachoeira. Quando os negros fugiram de Salvador, em razão das perseguições, foi na cidade de Cachoeira e junto à Igreja Católica que eles receberam guarida e proteção. Há quem sugira que Luiza Mahin, mãe do abolicionista Luiz Gama, esteve no epicentro desses acontecimentos, mas a historiografia - pelo menos a oficial - não deixou nenhum registro que pudesse confirmar tal hipótese. Nas horas de folga, ainda sentimos o gosto dos petiscos locais, da rica culinária baiana, apreciados com uma cerveja gelada, ao pôr do sol, nas margens do Paraguaçu. Curioso que o suco de jenipapo, uma fruta hoje rara em alguns estados da região Nordeste, ainda pode ser encontrado com abundância na região do Recôncavo Baiano.
O livro tem vários ensaios, a começar pelo primeiro que escrevemos, quando fizemos algumas intervenções, a partir de uma entrevista de um dirigente institucional, sobre os embates entre o sociólogo Gilberto Freyre e a ditadura do Estado Novo no que concerne ao direito à cidade. Sugerimos no texto que as propostas do Estado Novo sobre as intervenções urbanas no Recife podem ser classificadas como, possivelmente, a primeira inciativa de caráter higienista sobre o traçado das intervenções urbanas da cidade, que passaram a ser ditadas, a partir de um determinado momento, num conluio firmado entre o poder público e o capital. Curioso que essa lógica esta acima das ideologias, atingindo tanto gestões conservadoras quanto as ditas progressistas. Aliás, o higienismo é uma unha e carne do Estado Novo em sua primeira fase. Até um presídio que eles construíram em Pernambuco recebia o nome de Brasil Novo. Seus algozes ameaçam prender o cronista Rubem Braga neste presídio em razão de sua ácidas críticas, produzidas a partir da Folha do Povo. Mas isso já é uma outra história.
O professor da London School Economics, Ulrick Becker, ainda como professor de universidades alemães, fez uma espécie de pós-doutoramento sobre a realidade da economia informal no Brasil. Numa visita ao país, teceu loas à nossa forma de organização do mercado informal, algo que ele classificou como um modelo que poderia ser reproduzido para todo o Ocidente. Seria a Brasilianização do Ocidente, termo cunhado por ele à época. Por outro lado, apontou alguns entraves, enfatizando que tal fenômeno somente seria possível no Brasil, uma vez estávamos diante de um país com características específicas, adaptável à nova realidade da economia naquele período, num ambiente de democracia racial, onde seria possível congregar, num mesmo espaço de comércio ambulante, negros, mestiços, brancos, mulheres, homens, crianças, evangélicos, católicos, praticante de religiões de matriz africana. O que seria praticamente inviável na Europa. Isso numa época em que a economia informal se apresentava como o grande contraponto aos empregos formais, de carteira assinada, antes do surgimento do UBER, do IFOOD e sua legião de "empreendedores". Colegas do próprio Ulrick fizeram ponderações críticas sobre o entusiasmo do alemão sobre a nossa democracia racial e é este um dos pontos que discutimos num desses ensaios. Ao tomar conhecimento do artigo do professor alemão, dizem, Gilberto Freyre se revirou na tumba.