segunda-feira, 16 de novembro de 2020
Paris: Como o dinheiro arrasa as grandes cidades
Paris: como o dinheiro arrasa as grandes cidades
Crônica da gentrificação global: na metrópole palco da Comuna, os investidores agora dão as cartas. Aluguéis impagáveis expulsam milhares a cada ano. Em vez da pulsação urbana, turistas. Mas a História não acabou, dizem os que resistem
OUTRASPALAVRAS
CIDADES EM TRANSE
por Cole Stangler
Publicado 12/11/2020 às 21:50 - Atualizado 12/11/2020 às 22:02
Por Cole Strangler, no The Nation | Tradução de Simone Paz Hernández
Soumia Chohra, secretária de consultório médico, 34 anos de idade, se refere ao seu apartamento térreo, em Paris, como “ninho de ratos” — literalmente, como faz questão de enfatizar.
Chohra diz que, à noite, consegue ouvir ratos correndo no pátio que fica do lado de fora da única janela de seu apartamento de 20 metros quadrados. “Eles são grandes, mais ou menos assim”, explica, traçando uma linha que vai da ponta dos dedos até um terço do antebraço. “Eles estão por toda parte.”
Para lidar com o problema, ela e seu companheiro, que trabalha como funcionário de armazém e ganha um salário mínimo no Monoprix, um supermercado local, passaram a dormir com as janelas fechadas, preferindo o calor ao risco de visitantes noturnos. Os dois dormem em um colchão escondido em um mezanino acessível por escada. Às vezes, eles também hospedam a filha de 9 anos de seu parceiro, que dorme em um colchão separado no chão, ao lado da entrada.
Quando Chohra e seu parceiro se mudaram, há pouco mais de dois anos, 790 euros de aluguel [R$ 4900] por mês e, em agosto, a taxa já tinha passado para € 806 [R$ 5100]. Ela considera o preço absurdo para o nível do apartamento, mas essa é a inevitável realidade de hoje: é o custo de habitar no 18º arrondissement, distrito historicamente operário, localizado na zona norte de Paris, onde Chohra cresceu — agora no meio de um boom imobiliário.
“É como se vivêssemos só para pagar o aluguel”, desabafa Chohra, que está de licença médica de seu trabalho desde o ano passado — resultado de uma condição conhecida como hipertensão intracraniana, que produz dores de cabeça debilitantes. “Não podemos sair. Não podemos tirar férias. Não podemos ir a restaurantes.”
Muitos parisienses de baixa renda compartilham do mesmo sentimento, lutando para sobreviver enquanto sua cidade se transforma em um ímã global de serviços financeiros, turismo, tecnologia e indústrias altamente criativas. Pior: muitos deles vêm sendo totalmente apagados da paisagem urbana, fugindo para os subúrbios em busca de moradias populares ou simplesmente deixando a área metropolitana de vez.
Entre 2012 e 2017, o ano mais recente com esses dados disponíveis, cerca de 11 mil residentes deixavam a capital francesa por ano, com autoridades estaduais projetando que o declínio da população continue, pelo menos, até 2024. Nesse ínterim, a proporção de residentes parisienses que se enquadram na tradicional definição do censo como classe trabalhadora caiu de 35% (em 1999), para apenas 26% — um contraste gritante com o 51% da força de trabalho total que esses trabalhadores representam nacionalmente.
As coisas já eram desafiadoras antes da pandemia, mas agora, com a França passando por sua recessão mais profunda desde a Segunda Guerra Mundial, o êxodo poderia se tornar ainda maior. Sem uma grande reforma das políticas públicas ou uma rápida reversão das tendências macroeconômicas, teme-se que a crise atual possa ser o último prego no caixão de uma Paris habitável, onde as pessoas comuns conseguiam bancar uma vida. Nesse caso, a capital da França terá quase concluído sua transformação no que os franceses chamam de ville musée, ou literalmente uma “cidade-museu”: um parque temático para turistas e visitantes ricos em homenagem eterna ao seu passado.
A crise imobiliária em Paris já vem fermentando há algum tempo. Na última década, os preços de venda cresceram a uma impressionante taxa de 66% e, no outono passado, ultrapassaram o limite simbólico de € 10 mil [R$63 mil] por metro quadrado. Os custos agora subiram para uma estratosfera muito diferente das outras grandes cidades da França — a taxa média por metro quadrado em Paris é quase o dobro da de Lyon e Bordeaux, e cerca de quatro vezes a do centro de Marselha — se aproximando mais das chamadas cidades alfa globais como Hong Kong, Londres e Nova York.
Mas mesmo quando comparado com esses centros do capital internacional, o mercado imobiliário parisiense se encontra na extremidade mais alta do espectro. Em seu índice anual de imóveis de 2019, com foco nas maiores cidades do mundo, o UBS — banco de investimentos suíço — mudou Paris para “território bolha”, alertando que os preços das moradias “se desvincularam da renda local”. Este ano, a empresa estimou que um “trabalhador qualificado de setor de serviços” levaria 17 anos de trabalho para comprar um apartamento de 60m² perto do centro da cidade, mais tempo do que em qualquer outra cidade do relatório, com exceção de Hong Kong, famosamente superlotada
Um dos fatores que alimentam a explosão de preços é a simples geografia. Embora Paris em si tenha cerca de três vezes a população de Washington, D.C., ela ocupa apenas 60% da área da capital dos Estados Unidos. Com os limites da cidade fixados e a capacidade de construir novas acomodações restrita por uma paisagem urbana que já é muito densa, a oferta de moradias ficou muito aquém da demanda.
“O mercado imobiliário é um mercado de escassez”, explica Michel Mouillart, economista da Universidade de Paris-Nanterre e porta-voz do índice de habitação SeLoger, um grupo que organiza anúncios de imóveis e pesquisa habitações em toda a França. “Paris não tem um estoque de moradias privadas em crescimento, por razões históricas. Não vamos construir por cima da Pirâmide do Louvre. ”
Em um ambiente como esse, os apartamentos tendem a representar o lance mais alto. E, assim como Londres e Nova York, Paris se tornou um lugar para aqueles profissionais que viajam pelo mundo estacionarem seu dinheiro — um investimento que vem com pouco risco e algum prestígio cultural de brinde. A eleição do presidente Emmanuel Macron, em 2017, ex-banqueiro de investimentos que enfrentou uma série de protestos em massa por buscar reformas favoráveis às empresas nas leis trabalhistas, pensões e benefícios de desemprego, apenas reforçou a sensação de que a capital francesa continuava sendo um porto seguro em um tempos de incerteza.
“Talvez, as pessoas considerem que há um presidente conciliador, que há estabilidade política e que é uma boa situação”, diz Marc Foujols, fundador e CEO da Marc Foujols International Properties, uma empresa imobiliária de luxo com sede em Paris. “Mesmo existindo alguns problemas, greves, coisas do tipo, nada disso prejudicou de verdade a imagem de Paris. É uma cidade associada ao prazer e ao entretenimento. Está bem localizada na Europa e os imóveis são bons, então as pessoas querem se dar esse prazer, elas acham que existe uma boa acumulação de dinheiro [aqui].”
De forma extraordinária, os preços continuaram aumentando durante a pandemia, embora de forma mais lenta. De acordo com a SeLoger, os preços em Paris cresceram 4,5% entre agosto de 2019 e agosto de 2020. Esse aumento foi impulsionado, em grande parte, pela demanda sustentada de compradores nas camadas superiores do mercado, como os que Marc Foujols atende.
Mas o aumento no preço das moradias é também alimentado por pessoas com poder aquisitivo relativamente menor, famílias de classe média-alta e alta, que compram apartamentos em áreas da cidade antes amplamente desprezadas por aqueles de sua classe social. Eles não estão na mesma faixa de renda dos investidores de alto padrão, mas fazem parte do mesmo processo fundamental, de acordo com Michel Mouillart
“Não é que os residentes de bairros bonitos estejam se mudando; parece mais que aqueles que querem se mudar para os ‘bairros nobres’ (‘beaux quartiers’) já não podem, e têm que ir para outros lugares”, diz Mouillart. “Com o tempo, os bairros da “classe trabalhadora”, viram seus preços subir com a chegada desses clientes que não teriam para ido lá antes.
Esse processo se repetiu muitas vezes, engolindo cada vez mais espaço ao norte e nordeste da cidade. As linhas de frente da gentrificação em Paris mudaram gradualmente ao longo da última década, avançando cada vez mais para o 18º, 19º e 20º arrondissements, que em outros tempos foram bairros amplamente de baixa renda
Lentamente, mas com passos firmes, esse processo transformou a cidade. “Não é um movimento conjuntural”, diz Mouillart. “É um [processo de] deslocamento, uma transformação do que é território, uma transformação sociodemográfica que ocorre ao longo de um extenso período de tempo.”
Soumia Chohra mora no 18º arrondissement há vinte e um anos, desde que emigrou de Saïda (Argélia) para a França, com sua mãe. Quando ela saiu do apartamento de sua mãe há alguns anos e começou a procurar um novo lugar com seu parceiro, não tinha dúvidas de onde queria morar.
“Meu companheiro me disse: Vamos procurar em outro lugar. Mas eu lhe disse: Isso está fora de questão, preciso ficar no 18º”, lembra Chohra. “Eu tenho meus pontos de referência. Minha mãe mora na esquina; meu irmão mora na esquina. Minha base é no 18º, você sabe.
Chohra cursou o ensino fundamental e o colegial no bairro, crescendo na esquina da Rue Doudeauville com o Boulevard Barbès, que também é a principal artéria norte-sul do distrito. Sem nenhum dos marcos culturais que tornam Paris famosa para os estrangeiros, a diversidade da rua e o ritmo frenético de vida contrastam com muitos dos bairros frequentados por turistas.
O boulevard começa na estação de metrô Barbès Rochechouart, uma estação parcialmente acima do solo que se eleva sobre um cruzamento movimentado, que tem uma infeliz — senão totalmente injusta — reputação de perigoso pela sua delinquência. Conforme a avenida segue em direção ao norte, ela dá lugar a lojas de roupas africanas, cabeleireiros baratos, açougues halal, uma variedade de lojinhas de esquina que vendem de tudo, desde telefones celulares e utensílios de cozinha até inhame e banana, bem como dezenas de pequenos restaurantes populares que servem kebabs gordurosos e batatas fritas até altas horas da madrugada. Mais adiante, o Boulevard Barbès se torna o Boulevard Ornano e termina nos limites oficiais da cidade — um ponto que é praticamente impossível não perceber porque, como quase todos os outros lugares de Paris, sua fronteira é marcada pelo imponente Boulevard Périphérique, uma rodovia elevada, repleta do burburinho de caminhões e motocicletas
O famoso Périph’ separa Paris de seus subúrbios, circunda a cidade e serve para reforçar o abismo socioeconômico e cultural que separa seus lados opostos. (No departamento de Seine-Saint-Denis que faz fronteira com Paris ao nordeste, por exemplo, a remuneração média é de cerca de 60% dos níveis da capital, enquanto a taxa de desemprego é cerca de 1,5 vezes maior.) No 18º arrondissement, boulevards Barbès e Ornano desempenham um papel similar. Eles marcam uma linha divisória crítica — em riqueza, demografia e política — sinalizando as fronteiras ainda existentes da gentrificação, acenando para serem cruzadas.
Grandes mudanças já estão acontecendo na estação de metrô Barbès. De um lado da avenida fica a principal loja da Tati, uma rede de lojas de departamento, que planeja fechar as portas definitivamente ainda este ano. Fundada por um imigrante sefardita da Tunísia logo após a Segunda Guerra Mundial, a Tati já vinha lutando para competir com rivais maiores, baseados na Internet — mas a pandemia deu o golpe final. Do outro lado da rua, entretanto, fica a Brasserie Barbès, um bar e café de quatro andares que foi inaugurado em 2015 e conseguiu resistir à tempestade do lock down. Com design art déco e adornado com um letreiro neon ostensivo com o nome do restaurante, oferece cheeseburgers de € 18 euros e coquetéis de € 9, muito além da faixa de preço que os transeuntes conseguiriam pagar.
Mais a oeste da linha divisória Barbès-Ornano fica Montmartre, uma meca boêmia do início do século 20 que há muito perdeu sua aura rebelde, mais conhecida hoje como um centro turístico internacional, por causa da basílica do Sacré-Coeur, e como um cobiçado local para imóveis de luxo. Do lado leste das vias públicas encontra-se uma série de bairros enfaticamente menos cênicos e mais acessíveis, como aquele em que Soumia Chohra cresceu. Isso inclui La Chapelle, uma estreita mistura de ruas delimitadas por trilhos de trem em três lados, um arquipélago urbano com poucas e preciosas áreas verdes. Nos últimos anos, acampamentos temporários para migrantes surgiram com frequência, mas também uma nova safra de mercearias orgânicas e de restaurantes da moda.
Também surgiram boutiques de roupa e cafeterias de estilo anglo-americano no bairro vizinho de La Goutte d’Or. Imortalizada no romance L’Assommoir de Émile Zola, que narra as dificuldades dos trabalhadores braçais no final do século 19 em Paris, a área conseguiu manter sua força de classe trabalhadora ao longo dos anos, embora seus residentes atuais estejam mais propensos a rastrear suas origens para o continente africano do que para a França metropolitana. E embora os profissionais de colarinho branco tenham aumentado gradativamente sua presença na vizinhança, os restaurantes ainda têm mais chances de servir mafé da África Ocidental do que macarons.
De fato, como grande parte do nordeste parisiense, o 18º arrondissement foi forjado pela imigração. Durante os anos de expansão que se seguiram à Segunda Guerra Mundial — as três décadas conhecidas como les trente glorieuses — os imigrantes vieram do Magreb, especialmente da ex-colônia francesa da Argélia. Ondas de imigração da década de 1980 em diante viram chegar um fluxo de residentes da África Subsaariana e do subcontinente indiano, mas também da Europa Oriental, dando origem a microbairros sobrepostos e, para aqueles que cresceram aqui, uma capacidade estonteante de intercâmbios interculturais
“Estou acostumada a conviver com diferentes nacionalidades, com essa mistura, estou acostumada com as pessoas, com as diferentes culturas”, diz Soumia Chohra. “Não são só franceses aqui — há árabes, negros, chineses, pessoas de todas as nacionalidades. Eu gosto dessa mistura.”
Essa mistura não foi um acidente aleatório da história: foi, principalmente, o resultado das moradias populares. Quando Chohra chegou, no final da década de 1990, sua mãe conseguiu se mudar com ela para um apartamento de 29 metros quadrados que custava apenas € 500 euros a cada três meses. Dado que o apartamento tinha sido construído antes de 1948 — o ano em que a legislação nacional de habitação entrou em vigor — as leis de proteção de aluguel se estenderam à mãe de Chohra, com os aumentos de preços fortemente restringidos pelo Estado
Mas os apartamentos construídos depois de 1948, ou aqueles para os quais os inquilinos se mudaram após a revogação dessa lei, não eram cobertos pelos mesmos tetos de preços rígidos. E, com a subsequente queda dos controles de aluguel e os preços das moradias explodindo nas últimas duas décadas, bons acordos como o que a mãe de Chohra encontrou na época são muito mais difíceis de conseguir hoje. É por isso que tantos estão fazendo as malas e indo para o outro lado do Périph’, optando por abandonar Paris ao invés de tolerar a existência apertada que Chohra escolheu. Enquanto Paris propriamente dita tem apenas 2,2 milhões de residentes, a grande área metropolitana agora conta com mais de 12 milhões de pessoas.
Transformações desse tipo já devastaram outras regiões do que antes foi uma Paris da classe trabalhadora: Belleville, o berço da legendária Edith Piaf, antigo reduto da Frente de Libertação Nacional da Argélia e, mais recentemente, o centro da imigração chinesa em Paris, viu seus preços médios de aluguel mensal, para um apartamento de 40 m², atingirem o valor de € 1.200 [R$ 7.600]. No bairro de La Villette, cujas altas torres de habitação pública o tornaram, no passado, um dos bairros menos desejáveis de Paris, novos empreendimentos comerciais ao longo do Canal de l’Ourcq fizeram os preços dispararem para € 1.000 [R$ 6,3 mil], para um apartamento de tamanho semelhante. Junto com isso, intervenções regulares da polícia impediram os imigrantes de montar acampamentos na região por muito tempo, ajudando a manter o mercado imobiliário atraente.
A pandemia também pesou em alguns antigos moradores dessas áreas, como Esther Saadoun, de 56 anos, que mora com sua filha de 24 anos no 19º arrondissement. Agora, ambas estão à beira do despejo de seu apartamento de 46 m²
Imigrante judia da Tunísia, Saadoun mora em Paris desde 1958 e passou as últimas três décadas operando uma barraca de crepes perto da estação de trem Gare de l’Est, enquanto sua filha começou a fazer bicos para sustentar seus estudos universitários. Impedida de trabalhar durante a quarentena, Saadoun tem lutado para manter o pagamento do aluguel mensal de € 900 [R$ 5,7 mil]. Já atrasada nos pagamentos, que a certa altura atingiram uma dívida de mais de € 2.000 [R$ 12,5 mil], neste outono Saadoun foi intimada pelo proprietário ao tribunal
“Sinto que tenho que ir embora, o aluguel é muito caro e o bairro não me atrai mais”, diz Saadoun, que dorme no sofá da sala, deixando o quarto para a filha.
Certamente, há muito tempo que Paris é disputada entre ricos e pobres, e a luta de classes faz parte de sua identidade. Como escreveu o historiador Eric Hazan em 2011, a cidade é “o grande campo de batalha da guerra civil na França entre os aristocratas e os sans-culottes — independente da maneira como os chamemos hoje”. Da revolução de 1789 às barricadas de 1848, e da Comuna de 1871, e das greves em massa de 1936 e 1968, aos protestos dos Coletes Amarelos de 2018, os trabalhadores pobres repetidamente reivindicaram as ruas da cidade como suas.
É claro que as classes abastadas têm, há tempos, um senso de luta por privilégios. Na segunda metade do século 19, Georges Eugène (“o Barão”) Haussmann — talvez o primeiro gentrificador — destruiu grande parte da cidade velha, substituindo-a por avenidas largas e arborizadas e edifícios projetados para abrigar novos residentes burgueses. Já a segunda metade do século 20 viu os ricos solidificarem seu controle sobre o centro da cidade, à medida em que os moradores de baixa renda fugiam para as periferias e o quadrante nordeste.
Porém, mesmo no meio disso tudo, a Paris operária tinha o privilégio de continuar existindo. Na onda de gentrificação atual, não só se intensificou o ataque do capital, nem só os limites de uma vida acessível foram drasticamente alterados, mas as pessoas de baixa renda vêm sendo eliminadas da cidade por completo.
“Por enquanto, a batalha da classe trabalhadora de Paris está perdida”, disse Jean-Baptiste Eyraud, fundador e porta-voz do grupo de direitos à moradia Droit au Logement. “Não sabemos o que a história nos reserva, mas, no momento, está claro que os ricos tomaram a capital. Essa é uma realidade objetiva. É um fato.”
Uma das grandes ironias da onda cada vez mais irreversível de gentrificação que varreu Paris nos últimos anos é que ela ocorreu sob um governo de centro-esquerda. Desde 2001, o Partido Socialista lidera a cidade em coalizão com parceiros dos Partidos Comunista e Verde. Sob a liderança da prefeita Anne Hidalgo, reeleita para seu segundo mandato de seis anos em junho, a secretaria responsável pela política habitacional foi deixado para o Partido Comunista — especificamente para Ian Brossat, um esquerdista feroz que acabou de fazer 40 anos
Brossat é rápido em enfatizar que muito do que aconteceu está fora de seu controle. Como ele destaca, a herança jacobina do país conferiu poder demais às autoridades nacionais, enquanto tende a deixar os políticos locais com margens estreitas de manobra. “Isso tem suas vantagens, mas, neste assunto específico, é mais um inconveniente”, disse Brossat ao The Nation. “Estamos em um país que é muito centralizado, depende muito do estado e o poder dos municípios é relativamente restrito.”
A cidade de Paris por si só não consegue impor restrições aos preços dos aluguéis, a menos que obtenha autorização prévia do governo nacional — e, por anos, tem lutado para conseguir exatamente isso. Depois que a histórica lei de habitação de 1948 foi revogada pela maioria parlamentar de direita da França, em 1986, os seguidores do Partido Socialista — a força dominante na esquerda de então — abandonaram amplamente essa causa, a do controle dos aluguéis. As solicitações para restabelecer os limites de preços ficaram em segundo plano durante grande parte da década de 1990 e no início dos anos 2000.
Foi somente em 2014, sob o governo do presidente socialista François Hollande, que os legisladores — finalmente — restituíram a capacidade das cidades de impor seus próprios controles de aluguel. Isso permitiu que Paris impusesse limites aos preços e aumentos dos aluguéis entre 2015 e 2017, mas a lei foi enfraquecida logo após sua aprovação e os regulamentos municipais da cidade foram por fim rejeitados no tribunal. Somente no ano passado — depois que a Assembleia Nacional deu luz verde mais uma vez — o controle dos aluguéis voltou a Paris. Mas mesmo essa autoridade é bastante restrita. Os tetos dos preços de aluguel, que são definidos pelas autoridades regionais, permanecem relativamente altos, e a nova lei se aplica apenas a apartamentos alugados após julho de 2019.
Por outro lado, a cidade de Paris pode construir moradias públicas, e é exatamente isso que a liderança socialista tem feito. Desde 2001, a parcela de moradias públicas na cidade aumentou de 13% para quase 24% — conquista da qual Brossat se orgulha muito, mesmo reconhecendo que isso não seja, ainda, suficiente. (Esther Saadoun, por exemplo, contou que está na lista de espera por habitação social desde 1996.)
“Isto é um sucesso que não dá para negar”, diz Brossat. “Hoje, existem 550 mil parisienses vivendo em habitações sociais; e esses 550 mil parisienses estão protegidos da especulação imobiliária. De certa forma, eles estão seguros em Paris.”
Ao mesmo tempo, a cidade pretende atingir o limite estabelecido nacionalmente: de 25% de moradias públicas até 2025 — uma meta que muito provavelmente terá de envolver a compra e conversão de apartamentos privados e edifícios de escritórios. A equipe de Hidalgo também chamou à priorização de novas habitações sociais para os mais necessitados, em oposição aos residentes relativamente privilegiados que teriam mais facilidade de pagar por moradia em apartamentos privados.
As autoridades municipais também têm pressionado por maior poder de intervenção no mercado privado. No mais emblemático desses esforços, Ian Brossat tentou reprimir a plataforma Airbnb, que ele acusa de ter retirado 30 mil apartamentos do mercado entre os últimos sete e oito anos.
“O Airbnb não está nas origens da gentrificação de Paris, mas é um acelerador dela”, explica Brossat. “Em uma cidade onde temos poucas possibilidades de construir novas moradias, perder 30 mil apartamentos é muita coisa.”
Atualmente, em algumas das cidades mais visitadas, os proprietários podem alugar seus apartamentos no Airbnb por no máximo 120 dias ao ano — e a cidade aumentou as inspeções para garantir que a empresa respeite a lei. (Uma decisão recente do Tribunal de Justiça Europeu confirmou essa lei francesa, para a alegria de Brossat.) Mas a administração de Hidalgo quer ir mais longe. Desde agora até o próximo verão, eles planejam realizar uma série de consultas em toda a cidade, com foco na redução potencial desse número em Paris: para apenas 60 ou 30 dias por ano. O objetivo é pressionar a Assembleia Nacional a devolver o poder à cidade e, assim, restringir os aluguéis do Airbnb.
“Nosso cálculo é que se dezenas de milhares de parisienses pedirem por isso, o estado terá de agir”, diz Brossat, que acredita na mudança da opinião pública. Os resultados das recentes eleições locais — que viram Verdes e Socialistas vencendo em grandes cidades como Lyon e Bordeaux — podem trabalhar a seu favor.
Alguns críticos reclamam que o governo socialista ainda não foi longe o suficiente. Por exemplo, o ativista habitacional Jean-Baptiste Eyraud disse ao The Nation que a cidade deveria usar de forma mais agressiva o que é conhecido como droit de preemption — o direito de impedir a venda de propriedades privadas e assumi-las para a cidade. Ele também diz que o município deveria valer-se de seu direito de desapropriação, que é autorizado em circunstâncias especiais pela lei francesa
Brossat concorda que Paris deveria impedir novas vendas entre entidades privadas e tem lutado para aumentar a parte do orçamento da cidade dedicada exclusivamente a isso. De fato, durante o primeiro mandato de Hidalgo, o orçamento para essa finalidade aumentou de € 500 milhões para € 850 [R$ 5,35 bilhões]. Brossat também diz que não se opõe ao uso da ferramenta de expropriação, mas que, na prática, pode ser difícil de defender no tribunal. (Juízes podem decidir que propostas de desapropriação sejam tomada apenas como último recurso, e não de maneira “desproporcional”.) O político comunista acrescenta que gostaria de recorrer ao “direito de requisição” do setor público — que é o direito de se apropriar de construções desabitadas — mas, no momento, apenas o governo nacional detém esse poder
“É muito frustrante para um secretário de habitação como eu ver que os edifícios permanecem vazios por anos e que o Estado não aciona seu direito de requisição”, diz Brossat. “Em certos assuntos, seria bom dar mais capacidade de manobra aos municípios que assim o desejam.
Ao mesmo tempo, qualquer conversa séria sobre gentrificação não pode ignorar o grande elefante na sala: o fato de que a maioria da população que vive na área metropolitana parisiense, não vive mais em Paris, propriamente dita. Para o bem ou para o mal, agora, ela mora nos subúrbios, ou nas banlieues
O mainstream político concorda amplamente em que existe um grande problema com o status quo. Conscientes das desigualdades que a divisão “cidade-subúrbio” gera, os formuladores de políticas nacionais há muito afirmam querer integrar melhor os dois lados da Périph’ — e, durante anos, a conversa rendeu pouca ação. Mas, em 2016, esses esforços finalmente deram origem à tão esperada superestrutura administrativa de “Grand Paris”, integrando 131 municípios diferentes
Trazer a simpatia de progressistas para o projeto é seu maior potencial redistributivo: a nostalgia pode ser atraente em uma cidade com uma história tão rica, mas o quê que realmente significa defender a divisão administrativa entre Paris e seus subúrbios? Por que não reunir recursos em toda a área metropolitana e usá-los para criar um sistema habitacional mais igualitário — sem falar em escolas, transporte e instituições culturais que funcionem melhor? Afinal, a própria Paris se expandiu no passado, absorvendo vilas como Belleville, Montmartre e La Chapelle, que já foram independentes até meados do século XIX. Por que agora não fazer o mesmo com cidades como Saint-Denis, Pantin ou Clichy-sous-Bois?
Um dos obstáculos é um estigma cultural persistente. No imaginário popular, a banlieue parisiense de baixa renda sofre de uma associação com o crime e com o que os franceses chamam de “comunitarismo”: a manutenção de diferentes comunidades étnicas e religiosas que são só deles. Até mesmo alguém como Soumia Chohra, que conhece muitos do outro lado da Périph’, diz que não gostaria de se mudar para lá. “Eu me sentiria muito isolada. Eles não têm o mesmo estilo de vida. Não é a mesma mentalidade”, diz ela.
Um obstáculo talvez mais significativo para expandir os limites da cidade seja a resistência política. Atualmente, a Grande Paris é governada por uma maioria de direita que demonstrou pouco interesse em uma maior integração entre a cidade e seus subúrbios. Em tese, a metrópole tem o poder de impor políticas habitacionais comuns, mas essa decisão ainda não foi tomada.
“Tenho plena consciência do fato de que Paris não resolverá os problemas de habitação por si só”, diz Ian Brossat. “Mas a metrópole precisa ser liderada por pessoas que se preocupem com essas questões socioeconômicas. No atual equilíbrio de forças dentro da metrópole, isso está fora de questão. ”
Brossat acrescenta que, além de desenvolver a habitação social, uma Grande Paris bem-sucedida depende de municípios que estejam preparados para arcar com a carga habitacional coletivamente, em vez de transferir projetos para certas cidades e agravar as desigualdades. E, no final, esse tipo de cenário de sonho, ele argumenta, se resume a obter poder político — vencer as eleições locais e reformular as prioridades das prefeituras. Embora as eleições municipais deste ano tenham sido amplamente positivas para os partidos de esquerda, elas também ilustraram a sua dificuldade em conseguir ganhar muitos dos subúrbios de renda média que compõem a área metropolitana de Paris.
A chegada dos Jogos Olímpicos de Verão, daqui a quatro anos, pode complicar ainda mais o cenário. Apesar da marca oficial “Paris 2024”, grande parte dos jogos e quase toda a construção ocorrerá nos subúrbios, inaugurando novos estádios, novos empreendimentos habitacionais e redes de trânsito melhoradas, mas junto com eles, o aumento no valor das propriedades e um grande medo de novos deslocamentos e despejos. Antes disso, a eleição presidencial de 2022 também pode acabar desempenhando um papel fundamental na definição do futuro da Grande Paris e da política habitacional de maneira mais ampla. Mas o cenário não é dos melhores para as forças progressistas no momento: enquanto o presidente Macron e a extrema direita de Marine Le Pen lideram as primeiras pesquisas, a esquerda continua dividida, dividida entre socialistas, verdes e populistas de esquerda da França Insubmissa. Enquanto isso, o boom imobiliário continua, e a crise de covid joga luz, como um fósforo aceso, sobre as desigualdades latentes da região
“Minha filha gostaria de continuar aqui, mas eu fico bem de qualquer maneira”, diz Saadoun. “Se eu puder pagar um aluguel menor, é isso que importa.”
(Publicado originalmente no site Outras Palavras)
Umbanda: a longa resistência do sagrado brasileiro
Umbanda: a longa resistência do sagrado brasileiro
O Brasil oficial tenta enterrar sua religião mais originária — por não querer se enxergar complexo. A Umbanda recria, no plano simbólico, uma realidade fragmentada. A gira não é só um ato de fé: é alternativa à história dos poderosos
OUTRASPALAVRAS
DESCOLONIZAÇÕES
por Fran Alavina
Publicado 13/11/2020 às 18:18
Por Fran Alavina
Por ocasião do dia nacional da Umbanda, em 15 de Novembro
Quem quiser contar a história do Brasil quer pela vias da mestiçagem, quer pelas vielas da exclusão não poderá fazê-lo sem passar pela constituição da Umbanda, pois sua compreensão não se dá como simples história da religião. Diferente de outros credos, não adentramos bem na Umbanda perguntando “qual Deus professa essa religião?”, mas sim: “Quem são esses que a praticam, quem são os espíritos que nela se manifestam?”
De fato, não obstante suas contradições, a Umbanda se assume como religião nacional, como modo de fazer sagrado tipicamente brasileiro. Contudo, ante o atual cenário questionamos: como uma religião que se orgulha de sua brasilidade é alvo, cada vez com maior truculência, da intolerância e da barbárie fundamentalista? Em outros termos: Qual Brasil se persegue quando se persegue a Umbanda e outras religiões afro-brasileiras?
Para esta resposta não caberia aqui o adágio segundo o qual, “o Brasil não conhece o Brasil”, se tal vale para outras realidades, não se trata da mesma coisas no caso das perseguições sofridas pelos umbandistas. Mesmo existindo muito desconhecimento e mistificação massiva sobre a Umbanda como religião, ou seja, ignorância travestida de senso-comum; na maioria dos casos, aqueles que perseguem a Umbanda sabem muito bem qual o seu alvo. Não se trata de perseguir apenas uma religião, mas também aquilo que de uma realidade fragmentada e excluída, ela repõe no plano simbólico do sagrado: perfazendo certa integralidade que o real ainda não é capaz de oferecer.
Com efeito, a Umbanda repõe no seu interior e dá visibilidade àqueles que foram por séculos apagados, extirpados da história oficial como “resíduos” de um certo Brasil oficial que enxerga a si mesmo de modo míope e intencionalmente obtuso: são os povos originários que desçam aos terreiros como espíritos de caboclos das mais diferentes nações; negros escravizados na figura popular das pretas e pretos-velhos, homens e mulheres que dão vida a uma sabedoria resistente capaz de ultrapassar as marcas do tempo e dos açoites; os malandros que sempre nos lembram que a vida não é ditada por um tempo único. Ou seja, tipos que um certo discurso de brasilidade oficial busca extirpar como escombros exóticos que não possuem lugar em uma ideia de nação que quer se projetar como naturalmente boa.
Ademais, sendo uma religião do transe, a capa do exotismo, causadora de estranhamento, é dada a Umbanda como se fosse algo natural. Pelas lentes do exótico, ela deve ser necessariamente considerada menor, deslegitimada em sua dignidade de sagrado, depois de feito isso, associá-la como sendo intrinsecamente má é um passo que já foi dado há muito tempo nas avenidas da intolerância.
Assim, não temos um “Brasil que não conhece o Brasil”, mas sim “um Brasil que nega o Brasil”. Isto é, em torno da perseguição à Umbanda também está em questão o problema nacional e o modo como a cultura brasileira se pensa: se é capaz de elaborar para si mesma uma imagem mais fiel de sua realidade, reconhecendo suas contradições, ou se assume completa e cinicamente um ponto de vista que “varre para debaixo do tapete” tudo aquilo que considera exótico, portanto indesejável.
Nesse sentido, contra a Umbanda preponderou uma serie de preconceitos que com o passar do tempo foram naturalizados como questões aparentemente óbvias que não precisariam ser discutidas. Se até a década de ’80 ainda era possível uma certa maleabilidade e aceitação da cultura umbandista como expressão legítima da cultura nacional – recordemos fenômenos como o exu seu Sete o Rei da Lira, que incorporado ao vivo no programa do Chacrinha comandou uma gira televisionada; a expressão artística de Clara Nunes tanto no seu gestual, quanto nas músicas que a mineira ajudou a perpetuar, ou na prática popular de que não haveria contradição em ir à missa no domingo e durante a semana tomar um passe com o preto velho – hoje tudo isto parece distante. Um país que migrou pouco a pouco de si mesmo.
Em outras palavras, uma certa ideia de nação e de brasilidade expressa na Umbanda foi sendo abandonada até chegar ao limite da execração e da busca de seu aniquilamento. Desse modo, saiu-se dos discursos que lhe negavam legitimidade religiosa – alocando a Umbanda na teia generalista do folclórico – até o topo da guerra de fé que hoje ela enfrenta.
Recordar mais um dia nacional da Umbanda é afirmar que existe vividamente uma fé constituída como brasilidade, sagrado que se mantém firme apesar das rasteiras da intolerância. Não apenas como expressão daquilo que o país foi e é em suas mais determinantes contradições. Na Umbanda também repousa um desejo ainda não alcançado: toda gira não é apenas um ato de fé, é uma alternativa à história oficial, é um desejo de nação dramaticamente atual.
(Publicado originalmente no site Outras Palavras)
Arcas de Babel: Matheus Guménin Bareto traduz Rilke
Arcas de Babel: Matheus Guménin Barreto traduz Rilke
Curadoria Patrícia Lavelledisse:
9 de novembro de 2020
Arcas de Babel: Matheus Guménin Barreto traduz Rilke
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Matheus Guménin: Dificilmente se consegue falar em modernidade literária contornando o nome de Rilke (Fotos: Divulgação)
A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua e desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras. Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro… Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.
A série Arcas de Babel acolhe semanalmente traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir.
Na edição de hoje, o poeta e tradutor mato-grossense Matheus Guménin Barreto transcria e apresenta poemas de Rainer Maria Rilke.
Barreto (1992) é autor dos livros de poemas A máquina de carregar nadas (7Letras, 2017), Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (Carlini & Caniato, 2018) e Mesmo que seja noite (Corsário-Satã, 2020). Doutorando da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade de Leipzig na área de Língua e Literatura Alemãs – subárea tradução -, estudou também na Universidade de Heidelberg. Teve poemas traduzidos para o inglês, espanhol e catalão; publicados em revistas no Brasil, na Espanha e em Portugal. Integrou o Printemps Littéraire Brésilien 2018 na França e na Bélgica a convite da Universidade Sorbonne. Publicou em periódicos ou em livros traduções de Brecht, Bachmann, Bobrowski, Nelly Sachs, Celan, Peter Waterhouse, Rilke e outros. Entre os cursos que ministra esporadicamente está o “Verso vivo: introdução ao verso livre e ao verso fixo de Shakespeare a Criolo”.
Em seu doutorado, traduz textos de Hans Sachs (1494-1576), Angelus Silesius (1624-1677), Sibylla Schwarz (1621-1638), Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), Rainer Maria Rilke (1875-1926), Nelly Sachs (1891-1970), Ingeborg Bachmann (1926-1973), Herta Müller (1953), Peter Waterhouse (1956) e Ann Cotten (1982).
***
Rainer Maria Rilke (1875-1926) foi alçado, ainda em vida, à condição de poeta exemplar, e a contínua reatualização de sua figura no cânone literário ocidental faz dele um dos artistas mais influentes dos séculos 19 e 20. Sua obra – retomada por figuras tão díspares quanto Martin Heidegger (1889-1976) e Lady Gaga (1986) ou Dmitri Shostakovitch (1906-1975) e Patti Smith (1946) – se espalha por poemas em alemão e em francês, textos em prosa, cartas, ensaios, peças teatrais, traduções e discursos; de modo que, ao fim e ao cabo, dificilmente se consegue falar hoje em modernidade literária contornando seu nome.
Já foram escritas centenas e centenas de páginas sobre a conturbada recepção de Rilke no Brasil – e, para apontar os mundos inteiros (e quase antagônicos) que coexistem na obra rilkeana, basta nos lembrarmos que Rilke foi evocado entre nós tanto pelos poetas classicizantes da chamada Geração de 45 quanto pelos poetas concretistas e neoconcretistas algumas décadas depois. A estilização de um Rilke quase místico, brumoso, coexiste ainda hoje com a recepção deste como um artista experimental, vanguardista. Sugiro aos que se interessarem por esse tema o ótimo artigo de Vagner Camilo (USP), “Nota sobre a recepção de Rilke na lírica brasileira do segundo pós-guerra”.
Escolhi trazer para a coluna Arcas de Babel (com curadoria da poeta e professora Patrícia Lavelle, a quem agradeço mais uma vez o convite) três traduções minhas de poemas bastante díspares e, por isso mesmo, representativos da obra de Rilke: “[O que farás, Deus, se eu morrer?]” de O livro das horas (livro publicado em 1905, poema escrito em 1899), que dá a ver algo da atmosfera nebulosa comumente associada à obra rilkeana, porém através de uma voz lírica radicalíssima, absolutamente moderna ante um Deus frágil e dependente; “O alquimista” de A segunda parte dos Novos Poemas (livro publicado em 1908), que traz o insólito ao campo do poema e que poderia, sem grandes ajustes, ter sido assinado por Jorge Luis Borges (1899-1986); e, finalmente, “A oitava elegia” de Elegias de Duíno (livro publicado em 1923, poema escrito em 1922), poema longo que radicaliza a antiga tensão entre poesia e filosofia e lhe traz uma voltagem toda nova, levando o poema a encontrar eco em alguns dos mais influentes filósofos de língua alemã do século 20.
Procurei criar em minhas traduções poemas estruturalmente análogos aos poemas de Rilke, ou seja, poemas que estivessem em uma relação “paramórfica” (pensando aqui no conceito de Haroldo de Campos) com os textos em alemão, mas sem ignorar a clareza sintática destes – a exceção estaria nos versos um pouco mais cifrados de Rilke em “A oitava elegia”. Em outras palavras, busquei recriar as assonâncias, aliterações, rimas internas e externas, tensões frasais e espelhamentos sintáticos dos poemas rilkeanos (aquilo que Campos chama de fisicalidade ou materialidade dos signos).
No primeiro poema, por exemplo, no qual a estrutura de estrofes e rimas não é consagrada, achei mais importante criar uma profusão de rimas e assonâncias no decorrer do poema do que criar rimas externas nos exatos versos em que Rilke as cria.
Em relação ao metro dos três poemas, busquei me limitar aos mesmos metros jâmbicos que Rilke emprega (sendo o jambo um par de sílabas no qual a primeira tende a ser fraca e a segunda tende a ser forte): no primeiro poema, versos tetrâmetros jâmbicos (sequência de quatro jambos); no segundo, variação entre tetrâmetros e pentâmetros jâmbicos (sequências de quatro e de cinco jambos); no terceiro, pentâmetros jâmbicos não rimados (sequência de cinco jambos).
Que aprendamos, aos poucos, a (re)ler essas outras – vertiginosas – modernidades. – Matheus Guménin Barreto
***
[O que farás, Deus, se eu morrer?]
O que farás, Deus, se eu morrer?
Sou eu teu cântaro (e se quebro?)
Sou o que bebes (se apodreço?)
Sou tuas vestes, teu dever,
perdendo-me, perdes sentido.
Sem mim perdes um lar só teu
onde te acolham com carinho.
Cai dos teus pés já combalidos
tua sandália, que sou eu.
Teu amplo manto te abandona.
O teu olhar – que no meu rosto,
recosto morno, vê repouso –
vai procurar-me muito tempo –
e vai deitar-se, quase noite,
entre rochedos estrangeiros.
Deus, que farás? Tremo de medo.
O alquimista
Sorri amargo o alquimista e afasta
o frasco, que fumega um pouco ainda.
Já sabe do que carecia
pra que essa tal substância renomada
surgisse ali. Carecia de tempo,
de séculos pra si, pro frasco ardente;
de toda uma constelação na mente;
na consciência, do mar todo ao menos.
A enormidade que ele desejara,
ele a soltou na madrugada. E ela
voltou a Deus, sua medida antiga;
mas ele, como um bêbado, mal fala,
deitado sobre a arca, e desespera
pra ter o ouro que já tinha.
22.8.1907, Paris
A oitava elegia
Dedicada a Rudolf Kassner
A criatura vê, dos olhos todos,
o Aberto. Só os nossos olhos são
como invertidos e, como armadilhas,
armados ao redor do seu fugir.
O que lá fora existe só o sabemos
do rosto do animal; mesmo a criança
pomos de costas – pra que veja apenas
contornos, não o Aberto, tão profundo
na face do animal. Livre de morte.
Só nós a conhecemos; livre, o bicho
traz sempre atrás de si o seu ruir
e, à frente, Deus; e se se vai se esvai
na eternidade, qual se esvaem fontes.
Nós nunca temos, nem por um só dia,
o espaço puro à nossa frente, aquele
no qual as flores florem sem parar.
Só mundo – nunca há o Lugar Nenhum
sem Não: a liberdade ou a pureza
que se respire e saiba e não se anseie.
Crianças há que perdem-se em tal calma –
chacoalham-nas. Os que morrem, a são.
Pois perto de morrer ninguém vê morte
e olha além, talvez tal qual os bichos.
Amantes – se não fosse o outro, o outro
que embaça a vista – chegam perto, pasmam…
Atrás do outro, quase por descuido,
lhes surge… Mas não vem nada de lá
e logo o mundo volta a ser só mundo.
Virados sempre à Criação, nós vemos
somente, ali, reflexo do que é livre,
reflexo que encobrimos. Ou que o bicho
mudo nos olha e perfura de calma.
Isso é o destino: só se chegar quase
e sempre quase e nunca mais que quase.
Se o bicho audaz tivesse a consciência
que é nossa – ele que vem ao nosso encontro
de outra direção – nos mudaria
com sua mutação. Mas o seu ser
lhe é sem fim, sem tino, sem visão
daquilo que ele é; puro o que vê.
E onde vemos Futuro ele vê Tudo
e a si em Tudo e salvo para sempre.
Mas há, mesmo no bicho alerta e morno,
pesar e apreensão – melancolia.
Pois também ele é presa ainda disso
que às vezes nos domina – uma lembrança
de que aquilo que se anseia já foi
outrora quase nosso e seu unir-se
dulcíssimo. Aqui tudo é distância;
lá, ar. Após sua primeira pátria
lhe é esta segunda bruma e dúvida.
mmmAh, bendita a pequena criatura,
que se mantém no colo que a gestou;
alegria do inseto que, lá dentro,
saltita até o fim: pois colo é tudo.
Vê, pois, da ave a meia segurança:
por ser quem é, conhece ambas pátrias,
como se fosse a alma de um etrusco,
liberta, que habitasse ainda espaços,
porém só como estátua sobre a tumba.
E como abisma ter de ir pra longe
tendo vindo de um colo. Eis, assustado
de si, cortando o ar (qual fosse trincos
em uma xícara), eis o morcego
rachando a porcelana do crepúsculo.
E nós: espectadores só e sempre,
voltados para tudo e nunca lá!
Inunda-nos. Botamos ordem. Rui.
Ordem mais uma vez – ruímos nós.
E quem nos inverteu, malgrado nós,
pra que tenhamos sempre este aspecto
de quem se vai?, de quem para no topo
de um monte – o último de onde se vê
seu lar – e vira e olha e permanece.
Assim vivemos – sempre em despedida.
***
[Was wirst du tun, Gott, wenn ich sterbe?]
Was wirst du tun, Gott, wenn ich sterbe?
Ich bin dein Krug (wenn ich zerscherbe?)
Ich bin dein Trank (wenn ich verderbe?)
Bin dein Gewand und dein Gewerbe,
mit mir verlierst du deinen Sinn.
Nach mir hast du kein Haus, darin
dich Worte, nah und warm, begrüßen.
Es fällt von deinen müden Füßen
die Samtsandale, die ich bin.
Dein großer Mantel lässt dich los.
Dein Blick, den ich mit meiner Wange
warm, wie mit einem Pfühl, empfange,
wird kommen, wird mich suchen, lange –
und legt beim Sonnenuntergange
sich fremden Steinen in den Schoß.
Was wirst du tun, Gott? Ich bin bange.
Der Alchimist
Seltsam verlächelnd schob der Laborant
den Kolben fort, der halbberuhigt rauchte.
Er wusste jetzt, was er noch brauchte,
damit der sehr erlauchte Gegenstand
da drin entstände. Zeiten brauchte er,
Jahrtausende für sich und diese Birne
in der es brodelte; im Hirn Gestirne
und im Bewusstsein mindestens das Meer.
Das Ungeheuere, das er gewollt,
er ließ es los in dieser Nacht. Es kehrte
zurück zu Gott und in sein altes Maß;
er aber, lallend wie ein Trunkenbold,
lag über dem Geheimfach und begehrte
den Brocken Gold, den er besaß.
22.8.1907, Paris
Die achte Elegie
Rudolf Kassner zugeeignet
Mit allen Augen sieht die Kreatur
das Offene. Nur unsre Augen sind
wie umgekehrt und ganz um sie gestellt
als Fallen, rings um ihren freien Ausgang.
Was draußen ist, wir wissens aus des Tiers
Antlitz allein; denn schon das frühe Kind
wenden wir um und zwinistgens, daß es rückwärts
Gestaltung sehe, nicht das Offne, das
im Tiergesicht so tief ist. Frei von Tod.
Ihn sehen wir allein; das freie Tier
hat seinen Untergang stets hinter sich
und vor sich Gott, und wenn es geht, so gehts
in Ewigkeit, so wie die Brunnen gehen.
Wir haben nie, nicht einen einzigen Tag,
den reinen Raum vor uns, in den die Blumen
unendlich aufgehn. Immer ist es Welt
und niemals Nirgends ohne Nicht: das Reine,
Unüberwachte, das man atmet und
unendlich weiß und nicht begehrt. Als Kind
verliert sich eins im Stilln an dies und wird
gerüttelt. Oder jener stirbt und ists.
Denn nah am Tod sieht man den Tod nicht mehr
und starrt hinaus, vielleicht mit großem Tierblick.
Liebende, wäre nicht der andre, der
die Sicht verstellt, sind nah daran und staunen …
Wie aus Versehn ist ihnen aufgetan
hinter dem andern … Aber über ihn
kommt keiner fort, und wieder wird ihm Welt.
Der Schöpfung immer zugewendet, sehn
wir nur auf ihr die Spiegelung des Frein,
von uns verdunkelt. Oder daß ein Tier,
ein stummes, aufschaut, ruhig durch uns durch.
Dieses heißt Schicksal: gegenüber sein
und nichts als das und immer gegenüber.
Wäre Bewußtheit unsrer Art in dem
sicheren Tier, das uns entgegenzieht
in anderer Richtung , riß es uns herum
mit seinem Wandel. Doch sein Sein ist ihm
unendlich, ungefaßt und ohne Blick
auf seinen Zustand, rein, so wie sein Ausblick.
Und wo wir Zukunft sehn, dort sieht es Alles
und sich in Allem und geheilt für immer.
Und doch ist in dem wachsam warmen Tier
Gewicht und Sorge einer großen Schwermut.
Denn ihm auch haftet immer an, was uns
oft überwältigt, die Erinnerung,
als sei schon einmal das, wonach man drängt,
näher gewesen, treuer und sein Anschluß
unendlich zärtlich. Hier ist alles Abstand,
und dort wars Atem. Nach der ersten Heimat
ist ihm die zweite zwitterig und windig.
O Seligkeit der kleinen Kreatur,
die immer bleibt im Schooße, der sie austrug;
o Glück der Mücke, die noch innen hüpft,
selbst wenn sie Hochzeit hat: denn Schooß ist Alles.
Und sieh die halbe Sicherheit des Vogels,
der beinah beides weiß aus seinem Ursprung,
als wär er eine Seele der Etrusker,
aus einem Toten, den ein Raum empfing,
doch mit der ruhenden Figur als Deckel.
Und wie bestürzt ist eins, das fliegen muß
und stammt aus einem Schooß. Wie vor sich selbst
erschreckt, durchzuckts die Luft, wie wenn ein Sprung
durch eine Tasse geht. So reißt die Spur
der Fledermaus durchs Porzellan des Abends.
Und wir: Zuschauer, immer, überall,
dem allen zugewandt und nie hinaus!
Uns überfüllts. Wir ordnens. Es zerfällt.
Wir ordnens wieder und zerfallen selbst.
Wer hat uns also umgedreht, daß wir,
was wir auch tun, in jener Haltung sind
von einem, welcher fortgeht? Wie er auf
dem letzten Hügel, der ihm ganz sein Tal
noch einmal zeigt, sich wendet, anhält, weilt,
so leben wir und nehmen immer Abschied.
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
Editorial: O Recife continua uma cidade cruel.
Penso ser um pouco precipitado fazer uma avaliação mais consistente sobre as últimas eleições municipais neste momento. Conforme havia comentado nos editoriais anteriores, torcia que esta eleição assumisse um caráter plebiscitário, ou seja, que os eleitores sinalizassem, através do voto, para um caminho progressista e civilizatório, repudiando essa onda ultradireitista que varre o mundo, responsável por uma barbárie anunciada ou já em curso. Mesmo em se tratando de eleições municipais, seria importante essa sinalização. Neste momento de instabilidade política, não se pode perder nenhuma oportunidade de nos colocarmos contra esse retrocesso hmanitário. Embora seja possível observamos alguns fatos alvissareiros nas eleições de ontem, outros indicadores nos aconselham prudência, como o elevado número de prefeitos eleitos por partidos de uma tradição conservadora - do centro para a direita - como é o caso do DEM e do PSD, de Gilberto Kassab. Um comentarista informou que o DEM se apresentou aos eleitores com uma "roupa nova" - mais tolerante - mas sua essência não muda. Esse guarda-roupa é oriundo ainda dos tempos da antiga Arena, que dava suporte ao regime militar. Um dos seus mais emblemáticos postulantes orgulhava-se na campanha de ter tirado a esquerda do poder. E sabemos que isso ocorreu de forma torpe e ilegítima.
Historicamente - e por motivos até certo ponto coerentes - as eleições mucinicpais são descasadas das eleiçóes nacionais. Pesa na decisão do eleitor o buraco na rua, o recolhimento do lixo, o transporte coletivo, competências que estão diretamente relacionadas ao gestor local. O problema é que atravessamos uma crise política sem precedentes, contingenciando-nos a adotarmos atitudes que nos facultem uma efetiva tomada de posição em relação a este cenário obscurantista. Grosso modo, não dá para tirar essas conclusões a partir do resultados da eleição de ontem, embora, pontualmente, tenhamos eleito bancadas de vereadores com uma forte militância social, com uma folha de serviços prestados à população mais carente e às minorias, como representantes das mulheres negras, de grupos LGBT+, por exemplo. Alguns nomes eleitos para a Casa de José Mariano, no Recife, como é o caso de Dani Portela, Cida Pedrosa, Liana Cirne, Ivan Moraes, nos permitem dizer que estamos na luta. Por outro lado, a lista também apresenta os inevitáveis nomes de representantes de grupos conservadores e neopentecostais, um grupo com um projeto de poder muito bem definido e urdido cotidianamente. Hoje, um dos maiores suportes políticos do projeto de ultra-direita no Brasil. É preciso, portanto, cautela e atenção em defesa dos princípios democráticos, republicanos e civilizatório. Eles ainda estão sob ameaça.
Uma conhecida raposa da ciência política no Estado de Pernambuco, uma vez instigada a pronunciar-se sobre uma dessas eleições municipais do Recife, saiu-se com uma pérola: Nas eleições do Recife, tudo pode ocorrer, inclusive nada. Uma ótima saída para alguém que não desejava se comprometer. Afinal, macaco velho não põe a mão na cumbuca. Sabe-se lá o que ele pode encontrar ali dentro. Recife é uma das cidades onde o pleito será definido num segundo turno, entre os candidatos Marília Arraes(PT) e João Campos(PSB). Será um páreo duro, sobretudo se consideramos o fato de que a repressentante do PT está surfando numa espécie de onda de crescimento. Onda de crescimento que não foi aferida pelos institutos de pesquisa, por sinal. Um dos segundos turnos mais bem equilibrados, posto que os postulantes chegaram à reta final com percentuais de votos bem próximos um do outro. O alento é que o Recife, como afirmava o ex-governador Agamenon Magalhães, continua uma cidade cruel. Com uma forte tradição de rebeldia, Recife disse não às candidaturas identificadas com um ideário conservador ou de direita, não permitindo, sequer, que essas candidaturas chegassem a um segundo turno.
domingo, 15 de novembro de 2020
sábado, 14 de novembro de 2020
The best day Michel Foucault'life
Soon, as a listener, we will be participating in an international seminar on the philosopher Michel Foucault. Lately I have been very interested in his work, especially after studying the exhaustion or "saturation" of the prison system, a topic on which the French philosopher left some important contributions. On Monday, if everything goes as planned, I will also be receiving two unpublished books from the philosopher, these more focused on his relationship with literature. In his biography, written by Didier Eribon, the biographer emphasizes not only his reflections on literary discourse, but, above all, his incursions in this field, which aroused our interest. Foucault, in fact, wrote very well. A set of essays on her visits to Brazil, written by Heliana de Barros Conde Rodrigues, is also on our reading list.
Until recently, his biographer, Didier Eribon, released an autobiography, where he reveals his personal difficulties, as a poor young man, from the outskirts of Paris. It is a kind of encounter with himself, something that, throughout his life, he tried to hide. His biographer, Michel Foucault, as we know, was from an upper middle class family. His personal problems were very much related to the difficulties with his sexuality or, more precisely, about how homosexuality was observed in France of those old people. Foucualt assumed several public functions in the area of education, including bureaucratic positions in the French government, not without the inevitable reticence of some, out of pure prejudice. I read Eribon's book looking for a happy Michel Foucault. In his time in Sweden, he even has fun in powerful cars, frequents good resutaurantes, performs great binges, takes homeric drunkenness, but his relationship with the Swedish academic system is not the best. It seems that his best time there was during the summer holidays, when he ran to his Parisian strongholds.
I found this Michel Foucault happy in Tunis, Tunisia, where he was a representative of the French Government. Already legitimized in the academic world, Foucault conducts his classes with a large audience of young people enthusiastic about his ideas. Tunisia was facing a troubled political moment and he aligned himself with the students in their protests against the local government, which even closed some academic centers. He liked the archives, it is true, but it would be unfair to deny this political engagement by the French philosopher. Not only in that country, but in France itself, at crucial moments such as May 1968. In his spare time, alongside his friend Daniel Defert, he lived good times, in possession of his inseparable mat, on that country's paradisiacal beaches, in the sunny mornings, on deserted peninsulas, completely isolated, without those indiscreet or prejudiced presences. Didier Eribon is almost poetic in describing this scenario. As I said before, it was a period of protests, the closure of university centers, but, nevertheless, quite fruitful and happy for French philosopher.
The same cannot be said of his experience in Brazilian Venice, during one of his visits to Brazil, in 1975, when the hosts narrowly left the philosopher isolated, for fear of the reprimands of the Military Dictatorship still in force in the country. A lunch was even proposed, but, one by one, the guests declined the invitation. Foucault would still have given a lecture at UFPE, where he got irritated by the insistence of some teachers to link him to Marxism. It remained for the philosopher to isolate himself in a hotel in the Pina neighborhood, which he would call the golden cage, and, of course, to appreciate women with their big butts exposed, the boys with their short shorts and a pleasant appearance, to follow the work of the street vendors, sellers of coconuts, freshly baked fish, and other human types.
He was helped by Professor Silker Weber, who took him to the Casa da Cultura, which in the past was a prison built in the style of French architecture prisons, of the Panoptic type, of Watch and Punish fulcrum of their studies. According to the hostess, the philosopher asked several questions about the building, showing great interest. Then, with the help of another professor at UFPE - who said he was just his driver - he went to Igarassu, Ilha de Itamaracá and Alto da Sé. In all these spaces, without showing great enthusiasm. In some moments, even without interacting with their interlocutors. It is not possible that you passed through Alto da Sé without experiencing the traditional tapioca locals. A feather. A few years later, after visiting the United States as a visiting professor, he would die in France.
José Luiz Gomes
sexta-feira, 13 de novembro de 2020
Crônica: O Quinze, uma literatura para cabra macho?
Raquel de Queiroz, assim como José Lins do Rego e Jorge Amado tornaram-se amigos do escritor alagoano, Graciliano Ramos, compondo com este uma espécie de círculo literário, em Maceió, onde se reuniam com regularidade. Quando O Quinze foi lançado, no entanto, Graciliano teve uma reação misógina ao romance, afirmando, numa crônica, que aquele romance não poderia ter sido escrito por uma mulher. Abro aqui o jogo com os leitores e leitoras e afirmo que pesou, certamente, algum ciúme em relação ao seu Vidas Secas.
"Romance de mulher e ainda por cima mulher jovem. Só podia ser um pseudônimo. Raquel era um homem", bradava o autor de Angústia. Graciliano ainda não conhecia Raquel, tornando-se amigos algum tempo depois do lançamento de O Quinze, que foi muito bem recebido pela crítica e pelo público. A amizade entre ambos permitiu não apenas que essas idiossincrasias do escritor alagoano fossem desfeitas, mas também possibilitou a revelação de detalhes sobre a concepção da obra, produzida no chão, de pernas para cima, numa fazenda da família no interior do Ceará.
Neste mesmo contexto, o escritor alagoano faz referência aos inúmeros questionamentos recebidos por ele com críticas a uma literatura “amarga” observada em seus romances. Responde que tal literatura reflete, tão somente, a sua própria experiência de vida, as dificuldades que teve que superar, as adversidades enfrentadas, as agruras do cotidiano. Conclui que sua literatura não poderia estar dissociada dessa realidade. Não apenas em Vidas Secas, mas em Angústia, Infância e Memórias do Cárcere essa característica do autor em estabelecer uma conexão entre a sua experiência de vida com a ficção escrita – não sem alguns contornos biográficos - fica bem evidente.
Aliás, no campo da literatura “amarga”, O Quinze é um concorrente de peso quando se está em discussão as avarezas e sofrimentos do homem nordestino, castigado pelas estiagens da vida na região. Em ambas as indisposições, seja no campo sexista ou literário, essas impressões são logo superadas. Ambos tiveram uma convivência sem sobressaltos no círculo literário de Maceió. Neste período, por ocasião do lançamento de um outro texto da escritora cearense, Caminhos de Pedra, Graciliano se derrama em elogios à autora.
Sempre li uma literatura focada na realidade. Não necessariamente engajada, mas focada, sim, na realidade social e econômica do nosso país, onde surgem sujeitos operários, prostitutas, negros, escravos, homossexuais, personagens que vivem sob condição de miséria ou profunda exclusão social. Não são todos os leitores que gostam desse tipo de literatura, mas há alguns que leem, por entender, de certo, que a miséria é incômoda mas que, num país como nosso, tal problemática estaria refletida nas obras literárias. Há sempre um pouco de indignação e solidariedade naquilo que escrevo e não vejo nenhum problema nisso. Por conseguinte, convém tomar cuidado com os possíveis excessos.
Costumo sempre introduzir umas pitadas de humor naquilo que escrevo, mas a literatura cor-de-rosa não é mesmo comigo. Não me importo em contar que a moenda da usina triturou o braço do negro escravo (José Lins); que os operários da CTP eram mantidos em alojamentos insalubres (José Luiz); que um sujeito meteu a faca até o cabo na barriga do outro (Jorge Amado). Como observa o escritor Graciliano Ramos, em tom de ironia, de fato, os narradores nordestinos estão se dando ao desplante de escrever inconveniências, como relatos de fome, trabalho sob condições desumanas, perseguições, gente magra, injustiças de toda espécie.
José Luiz Gomes da Silva
De Michail Bakhtin a Milan Kundera, os intérpretes de Dostoiévski
De Mikhail Bakhtin a Milan Kundera, os intérpretes de Dostoiévski
Aurora Fornoni Bernardinidisse:
15 de agosto de 1997
De Mikhail Bakhtin a Milan Kundera, os intérpretes de Dostoiévski
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Fiódor Dostoiévski foi um escrito russo nascido em 1821 e falecido em 1881 (Foto: Pintura de Vassili Perov, 1872/Reprodução)
“O universo dostoievskiano de gestos exacerbados, profundezas tenebrosas e sentimentalismo agressivo era-me repulsivo”, escrevia Milan Kundera para o New York Times Book Review, numa polêmica com Joseph Bródski reproduzida em 9/6/ 85 pelo suplemento Cultura de O Estado de S. Paulo. E, referindo-se à proposta, que teria recusado, de adaptar para o teatro O idiota, o romance favorito de Dostoiévski, durante a ocupação russa na Tchecoslováquia, continua: “O que me irritava em Dostoiévski era o clima de seus romances: um universo em que tudo se transforma em sentimento; por outras palavras, onde os sentimentos são promovidos à categoria de valor e de verdade.”
“Esta afirmação em si mesma”, retruca o exilado Bródski ao racionalista Kundera, “é, no mínimo, uma distorção altamente sentimental. (…) Esses sentimentos (uma hierarquia deles) são reações a pensamentos expressos altamente racionais” – e continua explicando que Dostoiévski parte do pressuposto de que o homem é uma entidade espiritual que se debate entre o bem e o mal (essas as “profundezas tenebrosas”) e que, onde Kundera vê universos de sentimento (o radicalismo emocional oriental como que opondo-se ao universo da razão ocidental), Dostoiévski vê a propensão humana ao mal, sendo, portanto, a ideia kunderiana de equilibrar sentimento e razão, além de uma abordagem reducionista, algo condicionado, quando não redundante. “Qualquer ideia que valha tão somente um tostão é reconhecível e medida pela qualidade da resposta que suscita. Pois bem, se a literatura tem alguma função social, talvez seja ela a de mostrar ao homem seus parâmetros extremos.” (Por sinal diz Dostoiévski, via Henri Troyat, seu biógrafo: “Quanto a mim, o que eu fiz foi somente empurrar até o extremo, em minha vida, o que vocês só têm coragem de empurrar até a metade”.) “A esse respeito” – conclui Bródski -, “o homem metafísico dos romances de Dostoiévski é de maior valor que o racionalista magoado do senhor Kundera – não importa o quão moderno, não importa o quão comum. (…) Privado da graça,” – embora talvez fosse melhor dizer consciência – “cujo único equivalente racional é a resolução de parar de se torturar, o indivíduo racional muda para um hedonismo culposo.”
Desafios e revides à parte, vale a
pena ver o que teriam a dizer sobre
o assunto os dois críticos, ainda hoje,
mais reconhecidamente importantes
de Dostoiévski: Leonid Grossman e
Mikhail Bakhtin.
O leitor discute com as personagens de Dostoiévski, diz Bakhtin no seu famoso livro Problemas da poética de Dostoiévski, e verifica, coisa bastante curiosa, que elas podem insurgir-se contra o autor. O que é, de fato, a tão decantada “polifonia” senão a multiplicidade de consciências, plenamente qualificadas, cada uma com seu mundo e seu pensamento por trás, que a justifica? Consequência disso é a não-objetividade (objetualidade) da consciência dos protagonistas, contrariamente ao que costumava acontecer no romance tradicional: o acontecimento profundo da narrativa de Dostoiévski dá-se num mundo de sujeitos, não de objetos, e não se presta à interpretação via enredo, via desenvolvimento da ação, via monólogo filosófico, onde impera a concepção privilegiada de uma personagem (na maioria das vezes, coincidindo com a “voz” do autor). Qualquer pensamento é considerado por Dostoiévski como a tomada de posição de um indivíduo, sua ideia-sentimento, sua ideia-força.
Mais ainda, o próprio princípio da visão literária que Dostoiévski tem do mundo é justamente o de saber se o herói conseguirá ou não permitir que o eu do outro se coloque, se afirme enquanto sujeito, superando o egoísmo moral de cada um. O conteúdo dos romances de Dostoiévski gira, segundo Bakhtin, essencialmente em volta desse tema: a catástrofe que ronda uma consciência isolada.
Leonid Grossman, autor de Dostoiévski artista, começa procurando os germes do sistema narrativo de Dostoiévski, seus traços estilísticos e as leis complexas de sua composição em sua formação familiar e profissional (ele era engenheiro de fortificações), e nas ávidas leituras por ele empreendidas de centenas de autores da literatura mundial, acompanhando depois seu desenvolvimento nos diferentes contos e romances.
Em Gente pobre, o primeiro romance do autor (1841), por exemplo, Grossman encontra três camadas constitutivas: l) o fundo realista, expresso através do assim chamado ensaio fisiológico (característico da escola natural russa da década de 1840, que descrevia “daguerreotipicamente” a vida da população pobre da cidade e tinha implicitamente caráter de protesto), e que provinha muitas vezes de crônicas da imprensa diária; 2) o desvendamento de tensões, ou dramas sociais e individuais; e 3) a generalização concludente, ou seja, a crença numa justiça universal ou utopia do julgamento, a ilusão de uma justificação definitiva do homem, que se repetem, naturalmente, em outros romances do autor.
Em termos literários, essas três camadas conferem a cada obra do escritor o aspecto de um poema filosófico, composto de poesia, drama e epopéia e cuja composição obedece à lei da “multiplicidade de planos”, acoplada à lei de “não sei que outra narrativa” e seus desdobramentos.
Segundo Grossman haveria sempre,
porém, um tema-diretriz, um centro
moral definido de antemão, regendo
a composição de cada obra , e é aqui
que Bakhtin discorda dele.
Assim, por exemplo, no Romance de um grande pecador (é como deveria chamar-se originariamente Os irmãos Karamazov), o episódio do Grande Inquisidor é uma “outra narrativa” que se entrelaça ao romance e cujas fontes podem ser procuradas nas leituras que Dostoiévski fez de Schiller (Dom Carlos), pelo empolgamento moral, de Balzac, pela demolição desmistificadora, de Nicolai Fiódorov, pelo misticismo que prega a transformação da libido em Eros universal e espiritualidade. Nesse novo reino espiritual, segundo a utopia que Dostoiévski sugere, os homens já não precisam do Estado, substituído pela hagiocracia dos espíritos. Os grandes startsi (velhos considerados santos, fora da hierarquia eclesiástica e sem nenhuma ligação com o Estado) recebem as confissões, ministram as penitências e aceitam o mal como fenômeno humano inelutável.
Só que, aos poucos, no romance, vai se avolumando e tornando-se mais alta uma voz que se opõe a essa diretriz – a do irreligioso Ivan Karamazov. Embora convencido de que o mal é característico da condição humana, ele culpa a Deus por isso. Não é apenas contra a Roma Católica e a “espada de César” que se dirige a acusação de Ivan; é contra qualquer organização religiosa, qualquer tentativa de encontrar um sentido de predestinação neste mundo. Para que seja feita justiça é necessário que os homens, pecadores por natureza, se arrependam e procurem eles mesmos a sua expiação.
Como se vê, diz Bakhtin, a multiplicidade de planos e o mundo de associações heterogêneas submetidos à unicidade do projeto filosófico não dão conta da composição dostoievskiana. Da mesma forma que não pode manter-se um centro moral unificador definido de antemão – continua ele -, não há unicidade de estilo em Dostoiévski: à polifonia das vozes só pode corresponder a multiplicidade de estilos, ou seja, a multiplicidade de linguagens.
É por isso que, quando o crítico Joseph Frank se insurge contra o fato de Bakhtin ter dito que as personagens de Dostoiévski são autônomas e que se torna impossível e esteticamente indesejável querer estabelecer a diretriz unificadora (a mesma que propunha Grossman), sua crítica não procede. Se os materiais díspares de Dostoiévski se desenvolvessem num mundo unificado e se referissem à consciência de um autor monologante, o problema que ele coloca incessantemente, o da reunião do que é antinômico ou incompatível, não teria sido resolvido e o escritor teria realizado tão somente colagens.
O segredo que Grossman (e, em escala menor, Kundera) não descobriram é este: as diferentes consciências não são levadas a um denominador ideológico comum e nenhuma consciência acaba se tornando completamente objeto de outra. A ideia (e não a sensação) não é nem leitmotiv, nem princípio de representação do autor: ela é sujeito para o herói e objeto para o escritor. É uma ideia livre, sem passado, sem meios que a condicionem, ignora as categorias de gênese e causa – ela vive inteiramente no presente de cada um.
Aurora Fornoni Bernardini é professora de pós-graduação em Literatura Russa da USP.
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
quarta-feira, 11 de novembro de 2020
Uma seleção de títulos sobre a obra e o pensamento de Godard
Uma seleção de títulos sobre a obra e o pensamento de Godard
Edição do mês
Redaçãodisse:
5 de novembro de 2020
Uma seleção de títulos sobre a obra e o pensamento de Godard
3
O cineasta francês Jean-Luc Godard ganhou notoriedade com seus filmes políticos de vanguarda (Foto: Philippe Doumic/Domínio Público)
A Nouvelle Vague e Godard
Michel Marie
Papirus, 272 páginas
Tradução: Juliana Araújo e Eloísa Araújo Ribeiro
A história das origens da Nouvelle Vague e da elaboração do primeiro longa-metragem de Godard, Acossado, é examinada por um dos principais especialistas no movimento que revolucionou o cinema francês, originado entre os redatores da revista Cahiers du cinéma.
Godard e a educação
Organização: Ana Lucia Soutto Mayor e Mário Alves Coutinho
Autêntica, 192 páginas
O livro apresenta uma coletânea de textos sobre a contribuição de Godard para a formação humana e a educação. A partir da produção cinematográfica do cineasta, suas narrativas e estratégias discursivas, os autores refletem sobre estratégias pedagógicas inscritas em seus filmes.
Cinema, vídeo, Godard
Philippe Dubois
Cosac Naify, 324 páginas
Tradução: Mateus Araújo Silva
O teórico da imagem Dubois escreve sobre a presença do vídeo na obra de Godard. O livro é dividido em três partes: a primeira sobre as potencialidades artísticas do vídeo, a segunda sobre as relações do vídeo com o cinema e a terceira sobre o uso do meio eletrônico pelo cineasta.
Godard, imagens e memórias: reflexões sobre História(s) do cinema
Organização: José Francisco Serafim
EDUFBA, 226 páginas
Vários autores, como os franceses Céline Scemama e Antoine De Baecque e o próprio organizador, exploram a série de TV História(s) do cinema como um divisor de águas na obra de Godard, uma obra que combina gêneros, formatos e suportes, além de uma trilha sonora extremamente complexa.
Jean-Luc Godard: história(s) da literatura
Maurício Salles Vasconcelos
Relicário, 300 páginas
O autor, poeta, videoartista e pesquisador evoca no título a série televisiva História(s) do cinema de Godard. O livro identifica citações e alusões literárias na filmografia de Godard, além de relacionar, de forma original, elementos dos filmes com aspectos de obras literárias não referidas neles.
Godard e a revolução do cinema
Pietro Milan e Bruno Colli
Clube de Autores, 112 páginas
Os jovens críticos Milan e Colli conceberam o livro como uma introdução ao cinema de Godard por meio de suas influências cinematográficas e da história da arte. A primeira parte traz um resumo breve mas completo da obra do cineasta e a segunda enfoca a trilogia do sublime.
Escrever com a câmera: a literatura cinematográfica de Jean-Luc Godard
Mário Alves Coutinho
Crisálida, 288 páginas
Coutinho, escritor e ensaísta de literatura e cinema, mostra Godard como um cineasta que reinventou o próprio cinema e reconfigurou o fazer audiovisual. Para o autor, o cineasta sabe escrever com a câmera sem deixar de ser absolutamente cinematográfico.
Introdução a uma verdadeira história do cinema
Jean-Luc Godard
Martins Fontes, 312 páginas
Tradução: Antonio de Pádua Danesi
Reunião de palestras que Godard proferiu na Universidade de Montreal em 1978. A palavra “verdadeira” no título significa que a história do cinema seria contada sobretudo em imagens e sons, e não com textos expositivos – como o cineasta realizava na série em vídeo História(s) do cinema.
Godard de Acossado a Imagem e palavra
Mário Alves Coutinho
ETM, 264 páginas
Lançamento, em homenagem aos 90 anos de Godard, é uma compilação de ensaios sobre 14 filmes do cineasta, de seu primeiro longa-metragem ao mais recente, incluindo títulos menos conhecidos, como
O pequeno soldado (1963) e Meetin’ Woody Allen (1986).
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
terça-feira, 10 de novembro de 2020
Editorial: Ainda é possível debater o Recife que queremos?
Há alguns anos atrás, com uma antecipação bastante razoável, fiz uma previsão acertada sobre quem seria o novo prefeito do Recife. Isso, naturalmente, provocou a ira dos seus adversários, que fizeram gestões para que o artigo fosse retirado do ar. Tivemos algumas dores de cabeça com o assunto, mas isso hoje já não importa. Com uma antecedência de até dois anos, o blog acompanhava sistematicamente todo o processo eleitoral, numa atitude republicana, informando aos eleitores não apenas o perfil dos candidatos, mas, principalmente, debatendo os problemas da cidade e a plataforma programática de cada candidatura, quando ela existia. Ousávamos até em inferir sobre a avaliação de campanha de cada candidato, um assunto que, confesso, fugia um pouco à nossa alçada. Passados cinco séculos de existência, Pernambuco ainda é governado como uma capitania do período colonial, não ficando infenso à sua ira aqueles cidadãos e cidadãs - seja homem público, jornalista ou blogueiro - que resolver questionar essas relações de poder.
Não há, portanto, um ambiente transparente e republicano, que faculte a esses profissionais emitirem suas opiniões livremente. Que o digam um Aníbal Fernandes - espancado quando chegava em sua residência em boa viagem - ou um Rubem Braga, por diversas vezes ameaçados aqui na província, durante a vigência do Estado Novo. O cronista teve uma experiência tão traumática que nem gostava de falar sobre o assunto, exceto pelo sarapatéis degustados no Mercado do Bacurau, na companhia de Capiba e do sociólogo Gilberto Freyre. Pouca gente sabe disso, mais os cinco meses que Rubem Braga passou aqui na província foi o período de maior engajamento político do cronista capixaba. Certa vez, Cristiano Cordeiro o encontrou com um volume na cintura e quis saber do que se tratava. Rubem não se fez de rogado. É um martelo que uso para prender o terno quando for preso.
Mencionamos alguns exemplos do Estado-Novo, mas, no então estágio de redemocratização nada mudou em relação a isso. Nossa democracia, na realidade, é uma democracia de arremedo, susceptível aos constantes solavancos golpistas e sob a medida dos interesses de nossas oligarquias torpes, abjetas,covardes e entreguistas. Nunca passou de um grande mal-entendido, como afirmava o historiador Sérgio Buarque de Hollanda. Hoje, então, em pleno projeto de implantação de um programa perverso de ajustes neoliberais no continente aí mesmo é que os espaços de debates públicos ficam obstruídos. Assim, a eleição será no próximo domingo e publicamos apenas um editorial sobre o assunto, o que provocou um questionamento de um fiel eleitor, que nos dava a honra de nos acompanhar por aqui. A lista dos blogueiros e jornalistas vítimas de ações persecutórias dessas elites é extensa. Até professores universitários são perseguidos através de processos judiciais, numa clara demonstração de intimidação. A estrutura univeristária omite-se em defendê-los.
Assim, um debate necessário sobre os destinos da cidade que queremos fica comprometido, envolto em picuinhas, trocas de farpas, disseminação de fake news e coisas do gêneros. Uns dizem que vão acabar com os impostos, outros que vão prender os corruptos, construir plataformas de transportes mirabolantes. E a eleição acaba sendo definida não em razão do melhor projeto para a cidade, mas como resultado da candidatura que conta com maiores recursos, um bom marqueteiro, aquele que definiu uma melhor estratágia para o candidato. Há uma candidatura que não conta sequer com o apoio de alguns membros do seu próprio grêmio partidário, que a boicotam para apoiar o nome do candidato de um outro partido. Dar-se a eles o nome de "Queijos do Reino". Eu não seria tão condescendente.
Boa biografia narra as peripécias e polêmicas de Samuel Wainer, o grande antagonista de Lacerda que revolucionou a imprensa brasileira.
História
O invasor
Boa biografia narra as peripécias e polêmicas de Samuel Wainer, o antagonista de Lacerda que revolucionou a imprensa brasileira
Claudio Bojunga
01nov2020 02h00 (06nov2020 09h27)
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O jornalista Samuel Wainer
Monteiro, Karla
Samuel Wainer: o homem que estava lá
Companhia das Letras • 584 pp • R$ 89,90 / R$ 39,90
Bastava mencionar Samuel Wainer e Carlos Lacerda nos bares de outrora para identificar a esquerda e a direita da mesa. De um lado, gostavam das causas de Samuel: trabalhismo, nacionalismo, reformas. Do outro, atacavam seus métodos, nem sempre ortodoxos. Os primeiros viam em Carlos a mistura de Catão e McCarthy. Conservadores reduziam Samuel a sanguessuga do getulismo.
Idealizar ou pichar ainda hoje personagens tão complexos é o mesmo que embalsamar o maniqueísmo panfletário da Guerra Fria. John Dulles resgatou Lacerda dessa praga póstuma, em obra cujo primeiro volume saiu em 1991 e o segundo, em 1996. Maurício Dominguez Perez lançou, em 2007, um estudo acurado sobre o governador da antiga Guanabara. Chegou a vez de Samuel Wainer, quarenta anos depois de sua morte. Merecia mais do que o explosivo e magoado depoimento Minha razão de viver: memórias de um repórter, organizado por Augusto Nunes em 1987. O livro fez um barulho danado, vendeu mais de 200 mil exemplares em vinte edições.
Surge agora a biografia definitiva Samuel Wainer: o homem que estava lá, obra refletida, bem pesquisada e bem escrita por Karla Monteiro. Livro denso e leve, que lhe tomou cinco anos de trabalho. O bom vinho dessa pipa foi beneficiado pelo tempo, pelos meios digitais e pela sensibilidade da experiente autora mineira para os meios-tons. Suas mais de quinhentas páginas podem e devem ser saboreadas.
Não há pingo de moralismo no retrato do judeu imigrado, do repórter oportunista, do publisher movido a anfetaminas, que também foi bom amigo e pai extremado. O subtítulo apenas salienta o faro jornalístico e o agudo senso da oportunidade de Samuel para o momento decisivo, o fato relevante, o lugar certo, a hora certa. Karla esclarece de passagem o tom vingativo das primeiras memórias: “Samuel tinha contas a acertar na autobiografia. Fora uma vida inteira carregando a cruz do corrupto que se beneficiara da proximidade com o poder para assaltar o Banco do Brasil e fundar uma cadeia de jornais. Na sua opinião, todavia, não era o único. Estava mais para a regra que exceção, e seria um último deleite desmascarar a hipocrisia”.
Paulo Francis, antigo comandado, não perdoou a tartufice dos desafetos. Escreveu que era melhor o BB emprestar dinheiro a um jornal popular do que doar bilhões a milionários que os aplicavam em especulação. Os príncipes suntuários da mídia, era sabido, nunca perdoaram o arrivista que inflacionara o salário dos repórteres.
A autora reproduz comentário atribuído a Roberto Campos: se os industriais assíduos do BB enfrentassem a devassa a que o patrão de Francis fora submetido, o Brasil ficaria com as contas em dia. Entre os donos de jornal, só Samuel morava de aluguel. Se houvesse testamento, o seu único bem disponível seria uma linha telefônica, comprada com a grana da venda de um Dodge Polara.
Pogroms
Os 29 capítulos seguem o meteórico trajeto do imigrante judeu nascido em 1912, na Bessarábia, atualmente Moldávia, no Leste Europeu, espremida entre a Ucrânia e a Romênia, na época sob domínio do Império Russo. A família Wainer era natural de Yednitz, um shtetl (povoado judaico) saído de algum quadro de Chagall e sujeito a eventuais investidas dos cossacos bêbados de Alexandre 3º. Sucessivos pogroms entre 1880 e 1920 forçaram mais de 2 milhões de judeus ao exílio. A família chegou ao Brasil em 1921.
Samuel tinha nove anos quando conheceu o Bom Retiro, reduto judaico no centro de São Paulo. O pai, Chaim, virou seu Jaime. Cantava na sinagoga com timbre igual ao de Al Jolson. Samuel nunca o viu rir. A mãe, Dora, promovia saraus e fazia pasteizinhos russos, os imperdíveis vareniks. Samuel era o sétimo de nove irmãos. Apenas Sofia, a caçula, nasceu aqui.
Karla registra: “Nesse meio russificado, ávido de aceitação e reconhecimento, Samuel começou a despertar para o nacionalismo trabalhista, ideologia que perseguirá vida afora”. Mais adiante, a fundação de Israel o atraiu para a vertente britânica do trabalhismo. Os soviéticos não inspiravam confiança: conhecia a Rússia e seu antissemitismo na pele. “Eu tinha declaradas simpatias pela esquerda, mas nunca fui bem assimilado pelo Partido Comunista e tampouco cheguei a afinar-me com sua ideologia”, escreveu ele.
Em São Paulo, o antissemitismo também se notava. “Continuavam frescas na memória as manhãs de sábado de Aleluia, dia de malhar o Judas, quando eram perseguidos pelas ruas do Bom Retiro [...] onde fora criado e aprendera o significado de ser judeu”.
Einstein comentou a respeito: “O homem só pode florescer quando é possível se fundir numa comunidade. O risco moral do judeu é perder contato com seu povo e ser olhado como estrangeiro pelo povo de sua adoção”. Samuel aceitou o risco ao longo da vida. Foi o oposto do protótipo usado pelos antissemitas: favorável à assimilação, foi mau aluno, era internacionalista, gastador, desprendido, incauto, festeiro, sonhador e dom-juanesco. Nada Shylock.
Quando veio para o Rio, ao final dos anos 1920, sua primeira experiência jornalística foi no órgão da Juventude Israelita, que ficava num canto da praça Onze. A sinagoga do bairro era vizinha da casa da Tia Ciata, onde o samba fora inventado poucos anos antes. O sotaque das ruas, diz Karla, misturava o iídiche à nasalidade dos portugueses e ao ritmo dos negros. Samuel não tinha direito de votar, mas podia brincar o Carnaval — era o que havia de melhor na praça Onze.
Samuel admirava a saga tenentista e as conquistas sociais da Revolução de 30. Compreendeu cedo a importância da imprensa na relação com o poder político: jornais contrários à nova ordem foram devidamente empastelados, como o Diário Carioca. Assis Chateaubriand aderiu: paraibano como João Pessoa — o vice de Vargas, cujo assassinato foi o estopim do levante —, convenceu Getúlio de que precisava de apoio incondicional na imprensa. Getúlio soube agradecer.
Os anos 1930 encontram Samuel na casa dos vinte. Com o charme dos olhos azuis, um jeito maroto de rir revirando a língua e a maneira certa de manejar seu Chesterfield, imitada de Clark Gable, seduziu Bluma Chafir, judia vigorosa, bela e culta, cujo pé no chão (era contadora) contrastava com o feitio sonhador do futuro marido.
Bluma se ressentia da discriminação das mulheres, sobretudo as solteiras. Só casadas podiam votar. Judia, independente e de esquerda, tinha medo de ser deportada caso Getúlio se aproximasse de Hitler. Samuel conseguiu, com astúcia, se registrar como brasileiro: alguém atestou seu nascimento em São Paulo. Bastava isso. Sentia-se brasileiro e preferia o que lhe parecia certo ao que era legal.
Wainer estava de olho nos judeus influentes: o Idiche Presse, de Aron Bergman, partidário de Ben Gurion e próximo do trabalhismo inglês, deu-lhe aulas sobre as correntes de pensamento. Seu irmão Artur, que atraíra os irmãos para a corrente sionista-socialista, era também importante, assim como o advogado Samuel Malamud e Israel Dines, pai do futuro jornalista Alberto Dines, um dos diretores da Relief, organização de amparo ao imigrante.
Por indicação de Wolf Klabin, industrial ligado aos sionistas e amigo de Artur, entrou para o Diário Carioca, encarregado da coluna Diário Israelita, cuja missão era conter o antissemitismo. Samuel chegara à primeira divisão, num Rio cindido entre os vermelhos de Prestes e os camisas-verdes de Plínio Salgado. Klabin o ajudaria a se transferir para a Revista Brasileira, do genro de Ruy Barbosa, Antônio Batista Pereira. Publicação séria: trezentas páginas, mais da metade traduzidas da francesa Ce Soir. Samuel conheceu ali a cozinha do jornalismo, da pauta à gráfica. Era colega de Antônio Azevedo Amaral, polemista que defendia a “democracia autoritária”. O encontro mudaria a vida de Samuel.
Em 1938, Amaral convidou-o a criar uma nova publicação. Samuel o considerava um fascista — mas tinha subsídio da Light, graças à boa vontade de Getúlio. O olho cresceu. “Dois contos mensais, um bom dinheiro. O polvo canadense controlava tudo: energia elétrica, gás, telefonia, iluminação, bondes. E esticava os tentáculos sobre a imprensa através das agências de publicidade.” Wainer imagina uma revista de reportagens sobre a vida política, econômica e social do país e do mundo. Como escreve Karla, ele “contrataria os comunistas da Revista Acadêmica e faria a melhor revista que o Brasil jamais tivera: Diretrizes”.
O primeiro número (5 mil exemplares), com Hemingway e Huxley, esgotou no primeiro dia em que ficou exposto na Livraria José Olympio. Samuel não demoraria a passar a perna em Amaral, registrando a revista em seu nome. Perdeu a Light, mas encontrou dinheiro em outros lugares: recebeu tanto do Departamento de Estado americano quanto dos nazistas, que não ligavam em financiar um judeu, contanto que fosse útil. E Samuel, como diz sua biógrafa, nunca foi muito kosher em matéria de dinheiro. A fila de colaboradores ilustres cresceu: Mário e Oswald de Andrade, Rachel de Queiroz, Eneida, Graciliano, Nelson Werneck Sodré e Álvaro Moreyra.
Lacerda e Wainer eram amigos na época. A expulsão do Partido Comunista e a pecha de traidor levaram Carlos a esmurrar, altas horas de noite, a porta do apartamento de Samuel e Bluma. Embriagado, desabou, aos prantos, dizendo “mataram a minha mãe, estou órfão”. Com o tempo, Lacerda foi se incompatibilizando com os colaboradores de Diretrizes. Uma crítica venenosa a Portinari afastou Moacir Werneck de Castro. Ataques a Jorge de Lima levaram Jorge Amado a cortar relações. Aos poucos tornou-se persona non grata. Samuel teve de demiti-lo. Diretrizes durou até julho de 1944, quando suas provocações levaram o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) de Lourival Fontes a suspender sua cota de papel.
No pós-guerra, Samuel assumiu a direção da redação de O Jornal, carro-chefe dos Associados de Chatô. Considerava o chefe desprezível, arrogante e entreguista, fazendo o jogo dos monopólios estrangeiros, vendendo-se a quem pagasse o melhor preço. Ficou três meses no cargo. Preferiu pedir ao chefe para fazer reportagens especiais. Viajou a Israel. Escapou do fogo cruzado, arranjou uma namorada iemenita e voltou ao Rio esquelético, tuberculoso. Passou algum tempo num sanatório em Minas e safou-se graças aos novos remédios que começaram a chegar.
Com o fim da guerra, Samuel foi enviado à Europa. Baseado em Paris, viajou à Espanha e publicou, no tão almejado Ce Soir, de Louis Aragon, reportagens sobre a face escondida do franquismo: torturas, prisões arbitrárias, violações dos direitos humanos. Rumou, em seguida, para a Alemanha, para cobrir o Tribunal de Nuremberg. Arrancou seu furo com o advogado de defesa do almirante Karl Dönitz, da Marinha alemã, que assinara a rendição nazista. O almirante confirmou a importância da base militar no Nordeste na derrota.
Última Hora
O furo decisivo de Samuel veio em 1949: a entrevista com Getúlio Vargas, que estava havia mais de quatro anos num exílio voluntário em São Borja. A conversa selou uma fraternidade que o beneficiaria até o suicídio do presidente, em agosto de 1954. O episódio foi o precipitador do retorno ao Catete do “pai dos pobres”. Vargas o chamou carinhosamente de profeta e facilitou a compra de um jornal para apoiá-lo. Samuel se demitiu dos Associados e instalou a Última Hora no antigo prédio reformado do Diário Carioca, na praça Onze. Armou um time de craques: João Etcheverry, Otávio Malta, Francisco de Assis Barbosa, Paulo Silveira, Otto Lara Resende e Nelson Rodrigues, entre outros. No colunismo social, Maneco Müller; como ilustradores, Nássara, Augusto Rodrigues e Lan, futuro criador do pérfido Corvo, apelido que grudaria em Lacerda.
Lacerda, do seu lado, demitiu-se do Correio da Manhã batendo a porta. Em dezembro de 1949, inaugurou a Tribuna da Imprensa, mediante ações de subscrição pública. O jornal do “xerife da rua do Lavradio” (expressão dele) fincou a bandeira conservadora — bastava olhar o Conselho Consultivo: Alceu de Amoroso Lima, Adauto Lúcio Cardoso, Gustavo Corção, Sobral Pinto. Estava armado o octógono para o vale-tudo entre os dois.
O centro do livro se ocupa dessa infindável e furiosa rinha. Samuel se tornara personagem dominante do segundo governo Vargas, era amigável ao poder nos anos JK e quase companheiro de Jango. Lacerda era o udenista aliado dos militares que apoiaram Eduardo Gomes e veriam sucessivas tentativas de golpe frustradas.
Não convém avançar demais nos spoilers do bafafá armado pelos jornais, tão bem reproduzido por Karla Monteiro. Seria roubar do leitor jovem os inacreditáveis expedientes e baixarias desse confronto de gladiadores que recorrem a métodos da imprensa marrom. Briga repleta de pasquinadas, golpes baixos, armadilhas diabólicas, cpis, infâmias, prisões, intrigas internacionais e, ao final, as poderosas e novas armas de massa — a TV Tupi de Chatô e a Rádio Globo de Roberto Marinho, postas a serviço da demolição de Getúlio e de Jânio, sucessivamente, por Carlos Lacerda.
O centro do livro se ocupa da infindável e furiosa rinha entre Samuel Wainer e Carlos Lacerda
O cabo de guerra incluiu acusações a Samuel de dumping, mediante financiamento com dinheiro público; de ter uma aliança clandestina com o sindicalismo peronista e de não ser nascido no Brasil, condição exigida para ser proprietário de um meio de comunicação. Lacerda enfrentou uma CPI por ter aberto ao público, por negligência, o código secreto do Itamaraty, no afã de comprovar denúncias, e por ter forjado uma testemunha (que nunca existiu) para tentar provar o favorecimento do Banco do Brasil à Última Hora.
Na apoteose do poder de Samuel, Paulo Francis viu-o como um Gatsby, festeiro, sedutor, rico, casado com a bela, independente e desejada Danuza Leão, com quem teve três filhos, recebendo e frequentando banqueiros, intelectuais, artistas e atores de Hollywood, sem falar na classe política em peso. A embaixada americana o vigiava para saber o que pensava o presidente. Teve mansão, mordomo empertigado e filhos que se educaram no que havia de melhor.
Mas Samuel quase nunca ficava lá. Vivia na redação, olhando por cima dos ombros de seus jornalistas. Sua paixão maior era o crepitar das Remingtons; o som das rotativas, o cheiro da tinta, que alguns suspeitavam correr em suas veias. Engolia anfetaminas para não dormir e, ao raiar o dia, arrancava boêmios extenuados do Sacha’s para apreciarem seu jornal mal saído do forno. Gostava tanto de jornal que perdeu duas mulheres excepcionais por negligência e ausência.
Muitas testemunhas da caça às bruxas de Samuel evocam o bafo da inveja do velho establishment a propósito de sua intromissão no jogo de poder e nas mamatas habituais. Perseguição que foi se agravando, à medida que a Última Hora espalhava sucursais por São Paulo, Minas e Nordeste. No final do processo de expansão, no início dos anos 1960, que culminaria no Recife, a Última Hora publicava onze edições em sete estados. Alberto Dines tinha vindo da Manchete para se tornar um dos xodós do chefe. Karla reproduz seu diagnóstico: “Muitos jornalistas meteram a mão no bolso do governo. Ninguém falou nada. O caso do Diário Carioca era sabido, ganhou do Dutra o dinheiro para construir a sede da Praça Onze, que Samuel compraria para instalar a Última Hora. A campanha contra ele não foi contra um jornalista que se vendeu. Mas contra um invasor que adotou uma linha política contrária”.
Depois da renúncia de Jânio, Samuel fincou pé na tese da legalidade, apoiou João Goulart até o fim. Tentou mediar ou suavizar conflitos, acautelar quanto aos excessos dos radicais, recomendar prudência e evitar pisar no que desabaria. Sobretudo não provocar o fim da aliança PSD-PTB e estimular a união dos adversários.
Não deu certo: tudo ruiu em abril de 1964. Samuel se exilou no Consulado do Chile. Era o 16º na primeira lista dos que tiveram seus direitos civis e políticos cassados por dez anos. Em Paris, chegaria a um entendimento civilizado com Danuza em relação aos filhos. Faria mil e uma tentativas de empreendimentos, mas as musas o tinham abandonado.
Quando conseguiu voltar ao Brasil, tentou reviver a Última Hora com novos parceiros, mas, dentro de um ano, o jornal exibia prejuízo de 1 milhão de dólares. Em dezembro de 1968, o AI-5 decretou a ditadura ampla e irrestrita. Os jogos estavam feitos.
Foram múltiplas as tentativas, em São Paulo, de manter-se, sem afundar. Mas seus muitos fôlegos começaram a se exaurir quando a saúde passou a ratear. Muito doente, com crises respiratórias, sequelas da tuberculose, agravadas pelo cigarro, não parava quieto. “Enquanto existir bambu, há flecha”, escreve Karla. A última delas foi certeira: em sua coluna na Folha de S.Paulo, identificada por um modesto S. W., apontava Lula como a grande novidade no cenário brasileiro — um líder sindicalista de verdade, com futuro promissor.
Só entregou os pontos no dia 2 de setembro de 1980.
(Publicado originalmente no site da Quantro Cinco Um, a revista dos livros)
segunda-feira, 9 de novembro de 2020
Camus, amor e vertigem
Muito já se disse que Albert Camus – sempre envergando capa de gabardine e com cigarro pendente dos lábios – compunha uma persona semelhante a Humphrey Bogart. Mas o que pouco se sabe é que o escritor protagonizou uma cena digna de Casablanca, filme de 1942 em que o ator norte-americano vive uma história de amor cujo início se dá em Paris ao som dos canhões nazistas.
Em 6 de junho de 1944, no mesmo dia em que os Aliados desembarcavam na Normandia, deflagrando a ofensiva final contra os exércitos de ocupação alemães, Camus começava, também em Paris, um relacionamento amoroso com a atriz espanhola Maria Casarès que duraria até sua morte.
Há no episódio outras ressonâncias, embora desencontradas, do longa-metragem de Michael Curtiz. Editor do jornal clandestino Combat, Camus participava ativamente da Resistência – assim como o marido de Ilsa Lund, a personagem de Ingrid Bergman por quem se apaixona o cínico Rick, interpretado por Bogart.
E a própria Maria Casarès tinha envolvimento familiar com o movimento anti-fascista. Seu pai, Santiago Casares Quiroga, foi um dos últimos chefes de governo da turbulenta Segunda República espanhola. Em sua breve gestão (maio a julho de 1936), eclodiu a sublevação militar que deu início à Guerra Civil, levando o general Franco ao poder e a Espanha a mais de 40 anos de ditadura.
De origem catalã por parte de mãe, Camus projetou sobre Casarès a profunda identificação que sempre teve com a Espanha. Seu primeiro texto autoral foi a peça Revolta nas Astúrias, criação coletiva baseada na revolução operária de 1934, em Oviedo. E o teatro camusiano voltaria à Espanha com Estado de sítio, peça ambientada em Cádiz num passado impreciso, mas que remete aos autos sacramentais de Calderón de la Barca. Contraponto ao romance A peste, que Camus publicara em 1947, Estado de sítio também lança mão do contexto imaginário da cidade assolada por uma epidemia como alegoria da opressão.
Detalhe importante: a peça estreou em 1948, quando a intelectualidade francesa se dividia ante as denúncias dos crimes de Stálin, prenunciando a ruptura entre Sartre (pró-comunista) e Camus (anti-totalitarista), que se daria após a publicação de O homem revoltado (1951), seu ensaio sobre a divinização da história e a justificação da violência pelas utopias revolucionárias, entre elas a utopia hegeliano-marxista que dera origem aos gulags soviéticos. Entretanto, é a Espanha – então governada pela extrema-direita – que fornece o cenário para Estado de sítio, da mesma maneira que A peste (ambientada em Orã, na sua Argélia natal), era uma evidente metáfora da Europa sob o nazismo.
Peça, romance e ensaio, portanto, cobrem todo o espectro político na obra desse escritor mais fiel à concretude de suas percepções, ao ethos de suas origens mediterrâneas, do que às abstrações ideológicas. E, nesse sentido, a espanhola Maria Casarès será seu duplo nas fases subsequentes de sua trajetória.
Esse enredo passional pode ser conhecido na intimidade com a publicação de Correspondência: 1944–1959, que a editora Record lança em 2020. Com 1.300 páginas na edição original da NRF/Gallimard, o volume reúne cartas trocadas pelos dois amantes, com texto estabelecido por Béatrice Vaillant e prefácio de Catherine Camus, filha do escritor.
Nesse prefácio, Catherine conta como ambos se conheceram no dia 19 de março de 1944, na casa de Michel e Zette Leiris durante leitura dramática de O desejo agarrado pelo rabo, de Pablo Picasso. O encontro foi celebrizado por fotografia de Brassaï em que aparecem, além do pintor espanhol e do anfitrião, Camus (responsável pela mise en scène), Sartre, Simone de Beauvoir, o psicanalista Jacques Lacan e o poeta Pierre Reverdy.
Entre outros convivas, também está presente uma atriz de 22 anos, descrita por Olivier Todd (biógrafo de Camus) como “magnífica, além dos cânones clássicos, olhos rasgados, queixo voluntarioso, voz rouca”. Pouco depois, Maria Casarès é convidada pelo diretor Marcel Herrand para integrar o elenco de O mal-entendido e descobre que o autor da peça é o mesmo jovem de “rosto altaneiro sem insolência”, com “ar de indiferença displicente”, cuja presença a impressionara na casa dos Leiris.
Tornam-se amantes no Dia D, o dia do desembarque na Normandia. O último verão da guerra (que acabaria no ano seguinte) nada tem de idílico. Camus vê colegas de Combat serem deportados e, embora não integre diretamente as ações do grupo (do qual o jornal que edita é porta-voz), chega a participar de operações clandestinas, tendo a anti-franquista Casarès a seu lado.
Desde 1940, Camus era casado com Francine Faure, que permanecera na Argélia durante a Ocupação. Com a libertação do território francês, ela pôde enfim reencontrar o marido. Diante das circunstâncias, Camus e Casarès se separam – mas voltam a se cruzar no Boulevard Saint-Germain em 1948, no dia 6 de junho, exatos quatro anos após o início do relacionamento.
Camus e Casarès em Paris, no final da década de 1940
Camus e Casarès em Paris, no final da década de 1940 (©Collection Catherine et Jean Camus)
Correspondência traduz tais intermitências. Em 1944, apenas cartas enviadas por Camus a Casarès. Durante o período de separação, silêncio quebrado somente pela mensagem de condolências que ele envia à atriz pela morte de sua mãe, em 1946. E, a partir de 1948, cartas trocadas regularmente pelos amantes.
Na última, de 30 de dezembro de 1959, Camus anuncia seu breve retorno a Paris, partindo da casa de Lourmarin (Provença) onde se instalara com a família após receber o Nobel de literatura de 1957. O encontro não acontecerá. Em 4 de janeiro de 1960, Camus – que planejara ir de trem – viaja de carona no carro do amigo Michel Gallimard, da família de seus editores. No trajeto, o Facel Vega de Michel se estraçalha contra um plátano. Camus morre na hora. Entre os destroços, estavam os manuscritos do romance O primeiro homem, que só seria publicado em 1994.
É arriscado situar o livro – póstumo e inacabado – na obra de Camus. Basta lembrar de A morte feliz, romance de juventude também publicado postumamente, mas que ele abandonou, conservando apenas (e com pequena variação de grafia) o nome do protagonista Mersault, que reapareceria como Meursault em O estrangeiro.
Por um lado, é certo que O primeiro homem sofreria modificações até tomar forma final. Por outro, sente-se a escrita de um autor seguro, apesar de algumas repetições e discretas incongruências (mudança de foco narrativo no meio de um período; troca do nome de um personagem) que soam como atos falhos a revelar como o enredo é calcado em sua biografia, com episódios como a morte do pai na Primeira Guerra, a infância pobre em Argel ou a paixão pelo futebol.
De todo modo, O primeiro homem, na forma que restou (incluindo as anotações fragmentárias ao final), associa dois elementos que correspondem aos últimos dos três ciclos que Camus esboçou para sua obra: uma antropologia do homem mediterrâneo e o tema mais geral do amor.
Camus e Maria Casarès em 1948, Paris, rua de Vaugirard, 148
Camus e Maria Casarès em 1948, Paris, rua de Vaugirard, 148 (©Collection Catherine Camus)
“Eu tinha um plano preciso quando comecei minha obra”, diz Camus em Estocolmo, por ocasião do Nobel. “De início, queria exprimir a negação. Sob três formas. Romanesca: foi assim com O estrangeiro. Dramática: Calígula, O mal-entendido. Ideológica: O mito de Sísifo. Eu previa o aspecto positivo também sob três formas. Romanesca: A peste. Dramática: Estado de sítio e Os justos. Ideológica: O homem revoltado. E já entrevia uma terceira camada, em torno do tema do amor.”
E, numa anotação de seus Carnets, ele associa a cada um desses ciclos uma entidade mítica: Sísifo para o absurdo, Prometeu para a revolta e Nêmesis para o amor. Se a tarefa absurda de Sísifo fora esquadrinhada no ensaio que leva seu nome, e se em O homem revoltado é fácil entrever a ambiguidade do gesto prometeico de roubar o fogo dos deuses (que pode tanto emancipar os homens como reproduzir, no plano secular, a injustiça divina), a figura vingativa de Nêmesis adquire, na leitura camusiana, duplo sentido.
É ao mesmo tempo a deusa que “vigia o equilíbrio” (punindo quem o quebra, como Camus afirmara no capítulo “O pensamento do meio-dia”, de O homem revoltado), mas também figura feminina, deusa-mãe, promessa de reconciliação dos contrários.
As referências míticas de Camus nunca redundam (com exceção de Estado de sítio, com sua retórica de auto sacramental) numa escrita simbólica, como ocorre em Kafka, no plano ficcional, ou Nietzsche, no filosófico – dois autores admirados por ele. Aplica-se a sua obra o que ele mesmo celebrou em Melville: “o símbolo sai da realidade, a imagem nasce da percepção”, nunca se apartando “nem da carne, nem da natureza”; Camus, como o autor de Moby Dick, “construiu seus símbolos sobre o concreto, e não sobre a matéria do sonho”.
Camus em Mont-Roch, nos arredores de Chamonix, alpes franceses, em 1956
Camus em Mont-Roch, nos arredores de Chamonix, em 1956 (©Collection Catherine et Jean Camus)
Assim, ao recriar mitos, Camus faria da figura de Dom Juan uma das expressões cotidianas do homem absurdo, ou seja, aquele que exaure as possibilidades de uma vida assombrada pela vertigem da finitude – e que revelará sua face perversa, subjugadora, no sombrio Clamence de A queda.
O próprio Camus se lançou, em sua vida amorosa, numa desesperada corrida contra essa vertigem. Paralelamente à paixão por Maria Casarès, manteve romances com a norte-americana Patricia Blake (que conhecera em Nova York), a atriz Catherine Sellers (de origem argelina como ele) e a desenhista dinamarquesa Mi (Mette Ivers).
Mas, em consonância com as antinomias que percorrem sua obra (hedonismo individual e cumplicidade coletiva; núpcias inocentes com a natureza e culpa pela danação de dar curso à história), o donjuanismo absurdo – insinuado nas referências a outras mulheres em suas cartas a Casarès – deveria dar lugar a um amor sob o signo de Nêmesis. Um amor que, como o ethos mediterrâneo celebrado em O primeiro homem (no qual as “divindades do sol, do mar e da miséria” eram um contraveneno para as crenças na vida futura ou nas promessas da história), equilibrasse exaltação e sobriedade, nudez e esquecimento.
Se a terceira fase da obra de Camus não chegou a se realizar, Maria Casarès permaneceu como expressão vital dessa fidelidade singular (tão singular quanto o acordo entre o homem e sua existência que ele sentia sob o sol da Argélia) em meio à “indiferença pelo futuro e a paixão de esgotar tudo o que é dado” (O mito de Sísifo). Talvez por isso, entre tantos amores, Camus se referisse a ela como “A Única”.
MANUEL DA COSTA PINTO é jornalista e crítico literário, mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Usp e autor de Albert Camus: um elogio do ensaio (Ateliê)
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
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