Helô D'Angelo
O pesquisador Nick Sousanis, autor de 'Desaplanar' (Divulgação/Editora Veneta)
Teses de doutorado, em geral, podem ser leituras difíceis para o público leigo, especialmente quando tratam de conceitos complexos ou muito específicos. Buscando simplificar e democratizar o acesso ao pensamento – e sair dos “muros da universidade” -, o quadrinista americano Nick Sousanis deixou as palavras de lado para utilizar um formato pouco convencional para a publicação de um trabalho acadêmico: os quadrinhos.
Resultado da empreitada do pesquisador, Desaplanar (Veneta) foi publicada em 2014 nos Estados Unidos, mas só chega ao Brasil neste mês – junto com o autor, que deve participar da quarta edição das Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos da USP, de 22 a 25 de agosto, em São Paulo.
A obra foi a primeira tese de doutorado em formato gráfico da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, e no ano passado recebeu honrarias dentro e fora do mundo dos quadrinhos: além de ter sido indicada ao prêmio Eisner, equivalente ao Oscar das HQs, foi a primeira neste formato a vencer o American Publishers Awards, o prêmio mais tradicional de pesquisas e trabalhos acadêmicos dos EUA.
“As maiores barreiras que cercam a academia e mantêm pessoas de fora dela são de linguagem, não de inteligência”, afirma Sousanis à CULT . Em Desaplanar, o autor defende que a melhor forma de compreender o mundo é “analisando, respeitando e aceitando” diferentes perspectivas sobre ele, “em vez de tentar explicá-lo de forma plana” (daí o neologismo que dá título à obra).
À CULT, o autor falou sobre os quadrinhos como meio de transmissão e democratização do conhecimento, refletiu sobre o preconceito que o formato ainda sofre na academia – e defendeu que novas formas de pensar e transmitir o conhecimento podem ser essenciais para as crises sociais que vivemos nos dias atuais.
CULT – O que o inspirou a pensar sua tese em um formato gráfico?
Nick Sousanis – Eu já fazia quadrinhos há muito tempo, desde criança, passando pelo colegial e também de forma meio escondida na faculdade. Mas só me voltei a eles de forma completa e complexa quando já era adulto, com algumas HQs políticas que fiz durante as eleições presidenciais dos Estados Unidos em 2004. Essas histórias realmente abriram meus olhos: percebi que eu poderia usar quadrinhos como uma ferramenta para a educação e para a transmissão de ideias. Então as levei para alguns potenciais orientadores em Columbia, sugerindo que eu poderia fazer a minha dissertação e outros trabalhos acadêmicos neste formato.
Por que os quadrinhos facilitam os processos de educação e de transmissão de ideias?
Quando eu estava na academia, notei que a profundidade das ideias discutidas ali tende a permanecer presa entre os muros da universidade. Essas ideias dificilmente atingem o grande público – e eu sentia fortemente que as maiores barreiras que cercam a academia e mantêm as pessoas de fora são de linguagem, e não de inteligência. Com os quadrinhos, é possível juntar e transmitir informações complexas de forma sofisticada – sem que isso as torne idiotas ou bobas -, o que traz mais pessoas para debates que antes estavam confinados às salas de aula.
Como uma ideia pode ser simplificada sem se tornar “boba”?
Os quadrinhos nos permitem ver coisas de forma única, porque unem o pensamento sequencial (que é como nós lemos) e o pensamento simultâneo (como nós vemos) – o que, na minha opinião, é o mais próximo de como nossos pensamentos funcionam: nós temos pensamentos lineares, e daí tangentes; e ao mesmo tempo pensamentos pairando aos lados, e pensamentos que se sobrepõem. Tudo isso fica muito difícil de representar de uma forma rígida e direta sem que muito se perca. Acho que os quadrinhos colocam tudo no papel de uma vez, de forma organizada e com menos perdas de conteúdo, para que o leitor possa descobrir tudo em seu próprio tempo. E isso não é bobo: é o jeito que nossas mentes trabalham.
Desaplanar também aborda pontos de vista: você diz que, em uma discussão, os dois lados poderiam ouvir um ao outro, respeitar-se mutuamente e construir algo além do simples desacordo. No entanto, hoje há uma escalada dos discursos de ódio. Como vê essa questão?
Minha nossa, estou respondendo a isso horas depois de Trump dizer que a culpa do que tem acontecido nos Estados Unidos é de “diversos lados”, e que há “boas pessoas” entre os supremacistas brancos que marcharam em Charlottesville. O centro de Desaplanar é justamente a necessidade de adotarmos múltiplas perspectivas como uma forma de expandir o nosso ponto de vista, com o objetivo de chegar a um entendimento maior do mundo que nos cerca. Minha tese é sobre ouvir e aprender com aquilo que se ouviu. Mas nem tudo deve ser incluído nisso.
Como separar as coisas?
Em um debate sobre a mudança climática, por exemplo, não há como um pesquisador que estudou o assunto a fundo por anos conversar com uma pessoa que vê neve e dizer “viu só? as coisas não estão tão ruins”. Não há nada válido sobre o ponto de vista de uma pessoa que não acredita no aquecimento global, porque é uma perspectiva formada apenas por negação e ignorância. É esta pessoa, no final das contas, que não vê outras perspectivas – ela deveria abrir-se a novos olhares. Isso acontece de forma similar com os racistas e neonazistas. Se você dissemina ódio, eu diria que você já está cego para outras visões de mundo; sua visão já é planificada. Mesmo assim, se quisermos entender o que leva uma pessoa a ter um ponto de vista neonazista, é importante olharmos para isso de diversos pontos de vista também – até porque, fazendo isso, é mais fácil ajudar essa pessoa a perceber que ela pode deixar este ponto de vista para trás. É por isso que o título da tese é Desaplanar e não Desaplanado: porque este é um processo contínuo.
A imaginação é um dos temas centrais do seu livro. Sem ela, você diz que “é impossível se colocar no lugar do outro para compreender pontos de vista diferentes” – e você cita exemplos de histórias narradas por pessoas que não as viveram. Acha que a imaginação pode ser problemática em relação ao lugar de fala de minorias?
A imaginação não nos faz roubar o lugar do outro. Ela não nos transforma no outro; ela simplesmente nos dá a capacidade de desenvolver empatia, de tentar entender a perspectiva do outro. Nós aprendemos a fazer isso melhor se nos ouvirmos mutuamente, mas também se pudermos nos imaginar no lugar do outro. Posso dar um exemplo disso. Na graphic novel de Thi Bui, The Best We Could Do [ainda sem versão brasileira], a autora imagina a história de refugiados do Vietnã. Esta era a situação de seus pais, mas jamais foi a realidade dela. O ato de criar essa narrativa claramente fez com que ela entendesse melhor sua família e as experiências que eles passaram, o que, de certa forma, “desplanificou” sua visão sobre o assunto. Enquanto leitor, seria impossível não ser tocado pelos eventos que ela relata, e seria muito difícil não desenvolver uma relação mais tridimensional e profunda com este tema – coisa que, antes de ler o livro, eu não tinha.
O que pode ser feito para mudar a visão que se tem dos quadrinhos – e de outros formatos alternativos ao texto – de mídias “sem seriedade” ou valor acadêmico?
Quando as pessoas começaram a ouvir sobre o que eu estava fazendo, acabei sendo muito bem recebido na academia, o que só cresceu desde que publiquei Desaplanar em formato de livro. Por isso, acho que ter exemplos como o meu trabalho, com a atenção que ele recebeu, ajuda a criar precedentes para outros tentarem projetos um pouco fora do que tem sido pensado desde sempre. E não falo só de quadrinhos. No ano passado, um rapaz chamado A.D. Carson fez sua dissertação na Universidade de Clemson em formato de um álbum de rap [Owning My Masters: The Rhetoric’s of Rhymes and Revolutions, algo como “Dominando os mestres: a retórica das rimas e revoluções”], o que foi incrível. Quanto mais exemplos tivermos, mais pessoas terão coragem de se embrenhar em outros tipos de formato. E quem sabe, assim conseguimos atrair mais pessoas para a academia.
(Publicado originalmente no site da revista Cult)
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