‘Cruzando Jesus Cristo com Deusa Schiva', de Fernando Baril, 1996; obra estava em exposição na mostra ‘Queermuseu’ (Divulgação)
Quase um mês antes do seu encerramento oficial, a exposição Queermuseu – Cartografias da diferença na arte brasileira, do Santander Cultural de Porto Alegre, foi cancelada depois de receber acusações de apologia à pedofilia e à zoofilia. Com curadoria de Gaudêncio Fidelis, a mostra tinha a intenção de debater temas como direitos LGBT, racismo e violência religiosa.
A seleção trazia 270 obras de 85 artistas como Lygia Clark, Leonilson, Portinari e Adriana Varejão, e estava à mostra desde 14 de agosto. No último final de semana, vídeos de trabalhos considerados ofensivos viralizaram nas redes sociais, levando a ataques virtuais – e físicos – incentivados pelo Movimento Brasil Livre (MBL). Uma agência do Santander foi pichada com a frase “Banco Santander apoia a pedofilia”.
As ações levaram ao fechamento da exposição pelo Santander Cultural. Em nota, o banco pediu desculpas “a todos aqueles que enxergaram o desrespeito a símbolos e crenças na exposição Queermuseu” e afirmaram reconhecer que “infelizmente a mostra foi considerada ofensiva por algumas pessoas e grupos”.
Sobre o assunto, a CULT conversou com o crítico de arte Luiz Camillo Osorio, ex-curador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, que já enfrentou uma situação semelhante em 2011. Atual Diretor do Departamento de Filosofia da PUC-Rio e especializado na área de Estética e Filosofia da Arte, Osorio fala sobre a arte como expressão do que é tabu, sobre as razões do incômodo causado pelas obras do Queermuseu e sobre os cuidados que as instituições privadas deveriam ter quando lidam com cultura – especialmente aquelas amparadas pela Lei Rouanet.
CULT – Considera censura o que aconteceu com a exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira?
Luiz Camillo Osorio – Acho que fechar uma exposição por conta de protestos sobre o conteúdo das obras é um ato extremo e uma forma de censura. Especialmente neste caso, em que questões relacionadas a gênero e sexualidade estavam sendo trabalhadas pela curadoria. É parte do papel da arte abrir debates sobre formas não canonizadas de comportamento e as instituições devem tomar estas situações como desafios educacionais. Para isso, em vez de fechar a exposição, [o banco] deveria assumir e convocar o dissenso, abrir o debate com as várias vozes e os diferentes tipos de abordagem das questões que estão em foco. Fazer isso com respeito às sensibilidades mais tradicionais. A liberdade de expressão é um princípio constitucional. As instituições culturais deveriam ser as primeiras a lutar por isso e buscar ouvir as vozes discordantes.
Historicamente, casos semelhantes são comuns. Um exemplo famoso é a exposição dos artistas “degenerados”, durante o nazismo na Alemanha de mais de 70 anos atrás. Acha que existe o perigo de um retrocesso tão grande a ponto de a arte se perder, especialmente no contexto de desvalorização da cultura que vivemos atualmente?
Não acho este exemplo bom pois é um outro contexto e uma situação bastante diferente. Eu aproximaria este caso da exposição da Nan Goldin [em 2011] que, antes da abertura, a Oi Futuro decidiu que seria impróprio para seus visitantes (e clientes). Esta exposição acabou indo para o MAM-Rio. Na época, eu era o curador do MAM e ao abrir a exposição recebemos um oficial de justiça com um processo pedindo o fechamento por crime de pedofilia. Conseguimos manter a exposição e a justiça acabou arquivando o processo, garantindo ao museu o direito de manter a exposição.
O que marcou neste caso? Algo pode ser aprendido e reaplicado na questão do Queermuseu?
No arrazoado muito bem feito pelo Procurador encaminhando o arquivamento, ele indica algo que me parece fundamental neste debate jurídico: “A maior demostração de amadurecimento institucional, em uma sociedade democrática e plural, é acomodar as divergências numa moldura de tolerância e reconhecimento da diversidade, até porque o dissenso depende da liberdade tanto quanto a concordância”. Este parecer da Justiça em defesa do museu e da exposição da Nan Goldin deveria servir como jurisprudência em casos de arbitrariedade institucional como a que estamos vendo agora.
É benéfico que um banco abra espaço para uma exposição de arte como a Queermuseu?
Um banco investir em uma exposição como esta acho ótimo. O problema é fechar por conta de pressão conservadora. Também acho preocupante que o Estado esteja investindo menos em cultura. Além disso, acho também muito preocupante que o Ministério da Educação esteja inibindo o debate sobre educação sexual nas escolas. Este debate é fundamental para a cidadania e para a pluralidade democrática.
A exposição, embora tenha sido fechada, captou R$ 850 mil via Lei Rouanet. Como vê isso?
Situações como esta evidenciam que centros culturais, mesmo quando bancados por empresas privadas, se recebem apoio via Lei Rouanet e renúncia fiscal, deveriam ter mais cuidado antes de fechar uma exposição e abrir um debate público mais plural e não apenas decidir segundo suas diretrizes de marketing. O centro poderia não ter aceito o projeto, mas fechar uma exposição parece-me uma violência à liberdade de expressão.
Há quem diga que a arte contemporânea pode parecer hermética, inacessível para a maior parte do público. Essa percepção favorece acontecimentos como esse?
Não acho que haja esta relação. Se a arte fosse mesmo tão hermética, pelo contrário, não incomodaria tanto. Se incomoda a ponto de fecharem arbitrariamente a exposição, é porque a arte toca em pontos delicados e que ficam represados como tabus. No século 21, fechar uma exposição por conta de questões de sexualidade é um retrocesso. Até a novela da Globo fala de transgêneros e de comportamentos sexuais não convencionais – o que é saudável para abrir o debate, falar do que tem que ser falado e desreprimir a expressão da sexualidade. Censurar uma exposição alimenta uma cultura de violência – que é retrato de uma época que dá as costas ao processo civilizatório que vem desde a década de 1960 buscando incluir e dar voz às minorias.
Há como evitar ou prevenir esse tipo de censura?
Seria o caso de pressionar para que o centro volte atrás e que, em vez de censurar a exposição, abram o debate dentro dela – convidem educadores, sociólogos, psicólogos, psicanalistas, advogados, artistas, curadores, o cidadão em geral para discutir os assuntos mais delicados que estão em exposição. Afinal, uma exposição é para expor, e expor é abrir-se, abrir-se ao debate, ao conflito, à pluralidade e ao respeito às diferenças.
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
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