Duas corporações se destacaram na luta pelo impeachment da presidenta Dilma Roussef e foram decisivas para a consumação do golpe contra as instituições democráticas brasileiras: os médicos e os profissionais do direito. A criação do programa Mais Médicos, pelo governo Dilma, que pretendia levar assistência médica para as periferias das grandes cidades, para as cidades do interior, para as comunidades rurais, indígenas e quilombolas, combatendo o deficit de profissionais médicos no país, com a contratação de médicos estrangeiros, com a criação de novos cursos de medicina e novas vagas de residência médica, foi recebido com muita indignação e protestos por parte das instituições e órgãos de representação médicos. Os carrões dos profissionais médicos se encheram de adesivos em que lia “Fora Dilma, e leve o PT junto”. Os médicos cubanos foram recebidos com vaias, cascas de banana, xingamentos, agressões racistas e xenófobas. Até o velho discurso anticomunista veio à tona para justificar o que parecia não ter justificativa perante a mínima lógica: os médicos estrangeiros e brasileiros contratados pelo programa não estavam retirando o emprego de ninguém, estavam sendo enviados para áreas do país onde os médicos não queriam ir, para atender comunidades e grupos sociais que não era do interesse deles atender, estavam sendo remunerados nas mesmas bases salariais que os médicos já contratados pelo Sistema Único de Saúde e tendo acesso às mesmas condições de trabalho dos colegas, quando não enfrentavam condições de trabalho mais precárias. No entanto, os médicos se tornaram cabos eleitorais de Aécio Neves, assediando, até em seus consultórios, os clientes para que votassem na oposição. Panfletos eram distribuídos junto com receitas médicas, clientes petistas eram hostilizados, quando não negligenciados no atendimento. Médicos, profissionais que deveriam militar em favor da vida, desejando explicitamente a morte daqueles que não concordavam com suas ideias políticas. Os médicos foram presença destacada nas passeatas coxinhas: aqui em Natal, distribuíam sanduiches para alimentar os membros da corporação integrados à marcha. As principais lideranças da categoria vieram a público condenar o programa e militar por sua não aprovação no Congresso Nacional e, posteriormente, por sua extinção, colocando-se contra, até mesmo, a abertura de novos cursos de medicina no país, notadamente em cidades do interior.
Os profissionais do direito não fizeram diferente. A participação das várias instâncias do poder Judiciário no golpe é indiscutível. Aqueles que deveriam zelar pela observância das leis, pela defesa do Estado de direito, inclusive, pela defesa da Constituição foram decisivos para que leis fossem violadas, princípios básicos do direito fossem desconsiderados, que a Constituição fosse desrespeitada. A começar do vice-presidente da República, um jurista, constitucionalista, que, sabemos hoje, militou em todos os momentos pelo golpe e pela desobediência à lei maior do país. Sabemos, hoje, também, que ele não se destaca pela observância das leis. O Supremo Tribunal Federal se omitiu durante todo o processo, quando não militou a favor do desfecho que conhecemos. Até hoje não julgou o pedido de anulação do impeachment impetrado pelo advogado da presidenta legitimamente eleita. A atuação partidária e parcial de alguns de seus membros chega a ser escandalosa. O Procurador Geral da República se omitiu diante das inúmeras violações constitucionais perpetradas pelo juiz Sérgio Moro, não denunciou o deputado Eduardo Cunha enquanto esse foi importante para a realização do golpe e se mostrou parcial em inúmeras oportunidades. A Operação Lava Jato foi fundamental para a desestabilização do governo, trabalhando explicitamente para criminalizar o partido majoritário no governo, atuando para encurralar as lideranças do PMDB, obrigando-os a se afastar da aliança com o PT e tramar o golpe. As inúmeras violações à Constituição e ao Estado de direito cometidas pelo juiz Sérgio Moro, pelos procuradores que faziam parte da força-tarefa da Lava Jato, acompanhadas da espetacularização pela mídia de todas as suas ações prepararam o ambiente para o golpe. Não podemos deixar de lembrar o espetáculo promovido pela advogada Janaína Paschoal que, ao lado do jurista reacionário de priscas eras, Miguel Reale Jr, apresentaram o pedido de impeachment encaminhado por Eduardo Cunha para julgamento no Congresso Nacional. A reprovação em recente concurso na Universidade de São Paulo deixa explícito o saber jurídico da “musa do impeachment”. A Ordem dos Advogados do Brasil esteve na linha de frente em apoio à ruptura da ordem democrática e constitucional através de uma farsa parlamentar, sem nenhuma base jurídica sólida. Os cursos de direito, assim como os de medicina, espalhados pelo país, se tornaram centros de militância a favor do golpe, como haviam sido centros de militância em favor da eleição de Aécio Neves que, como sabemos hoje, mas já sabíamos à época também, tem muitas contas a ajustar com a justiça.
O comportamento dessas duas corporações – deixando claro que muito juristas e médicos não partilham dessas mesmas concepções – remetem à própria trajetória da formação médica e jurídica no país, como também explicitam a permanência entre nós de um elemento que foi decisivo na estruturação da sociedade brasileira: a lógica do privilégio. Durante todo o período colonial não tivemos a presença do ensino superior entre nós. Somente com a independência e a instalação do regime monárquico, no país, foram criadas as primeiras instituições de ensino superior, destinadas, justamente, a formatura de juristas e médicos. As Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro e as Faculdades de Direito de Recife e São Paulo foram as primeiras instituições voltadas para formar uma elite que iria servir ao regime monárquico e dirigir os destinos da nova nação. Como partes de uma ordem social, política e jurídica que ainda mantinha muitos elementos do chamado Antigo Regime, com a presença de uma pretensa aristocracia, de uma nobreza, que se destacava do todo da população por sua pertença a dadas genealogias de sangue e privilégios nobiliárquicos, os formandos dessas faculdades passaram a considerar o acesso ao ensino superior como uma marca de distinção, como um privilégio, como uma prebenda exclusiva daqueles pertencentes aos mesmos extratos sociais que eles, um privilégio estamental ou de classe. Como o ensino superior foi tardiamente introduzido no país, como as nossas primeiras universidades só foram criadas em pleno século XX, como o ensino superior continuou, por muito tempo, sendo de difícil acesso para a maioria de uma população formada majoritariamente por analfabetos ou por pessoas que tinham acesso precário às primeiras letras, consolidou-se, entre nós, a visão de que o acesso á universidade é um privilégio de que alguns devem desfrutar. Mesmo com a criação das universidades federais, a partir dos anos cinquenta, mesmo com a reforma universitária e a expansão do ensino superior realizadas após o golpe de 1964, a clientela universitária continuou se concentrando nas camadas médias e altas da sociedade.
É bastante significativo que, quando da implantação dos campi universitários por parte dos governos militares, tenha havido resistência por parte dos professores e alunos dos cursos de direito e medicina em se integrarem a essas novas instalações, defendendo a manutenção de seus antigos prédios, apartados da convivência com os alunos e professores dos demais cursos das universidades, era a lógica da superioridade ou do privilégio atuando. Os alunos egressos desses dois cursos são os únicos a receberem o título de doutor, mesmo que tenham apenas concluído a graduação, mesmo não tendo cursado o doutorado. Na maioria das outras áreas do conhecimento, mesmo que alguém tenha cursado o doutorado, não faz questão de ser chamado de doutor, já os médicos e, principalmente, os juristas fazem questão de ser assim chamados. O doutor funciona aqui como uma espécie de título nobiliárquico, ele indica a distinção e a diferença, não apenas de saber, mas inclusive de condição social. Mais ainda, a par com um sentido que vem das sociedades marcadas pela lógica do privilégio, o doutor aqui remete a pretensa existência de pessoas de uma qualidade superior às demais e, portanto, com direito a ser tratadas de modo diferenciado e ter direitos que os demais não podem ou não deveriam ter. As camadas populares brasileiras, muito marcadas pelo servilismo advindo da escravidão, chama de doutor todo aquele que é de condição social considerada superior ou distinta. Essa distinção, essa diferença em relação aos demais profissionais se explicita, também, no fato de que essas duas categorias utilizam roupas, paramentos, insígnias e, inclusive, uma linguagem que as distingue dos demais mortais. A roupa branca dos médicos, que os estudantes de medicina portam com orgulho desde o primeiro dia de aula, o paletó e gravata, obrigatórios para todos os membros do judiciário, a toga, remetem a uma sociedade de corte, a uma sociedade aristocrática, onde a distinção entre nobres e plebeus, inclusive, em relação ao burguês, ao morador das cidades, deveria ser visível, a começar pelas vestimentas e ornamentos. A escrita ininteligível dos médicos, o uso de uma terminologia própria, assim como a retórica medievalizante dos operadores do direito, com o uso de expressões em latim, com o emprego de palavras raras e imagens de pouco uso, são fundamentais para reproduzirem essa aura de seres especiais, privilegiados, distintos, de um saber superior e raro, em relação aos demais. A própria autoridade do médico e do jurista, o poder quase discricionário de que gozam, podendo, em uma fala, com uma penada, condenar alguém à morte ou à prisão, são pouco afeitas a uma sociedade democrática, republicana e cidadã.
Como estamos presenciando nestes dias que correm, no país, as leis podem ser utilizadas para perseguir e cometer injustiças, o que foi uma constante na história da justiça brasileira. Temos uma justiça que explicita bem o que é a própria sociedade a que pertence, sendo em muitos casos misógina, racista, homofóbica, perpetuadora de preconceitos e privilégios. Tanto o acesso a medicina de ponta, como o acesso à justiça continua sendo um privilégio na sociedade brasileira e, seus profissionais vêm, quase sempre, das camadas privilegiadas da sociedade e raciocinam e agem na defesa do privilégio. A lógica familista, típica da sociedade brasileira, se faz aqui presente, com os consultórios médicos passando de pai para filho, assim como os escritórios de advocacia, as togas, os cargos públicos. Muitos profissionais dessas áreas, pela própria formação que receberam e sua origem social têm pouco apreço pelas camadas populares, têm conceitos bastante desabonadores de seus clientes pobres, oferecendo para eles o pior serviço possível. Vistos ainda como plebe ignara ou como homens sem qualidades morais, sociais, éticas e até humanas, são tratados como gente de segunda categoria, não como cidadãos portadores dos mesmos direitos e deveres. Esses profissionais, formados na lógica do privilégio, só podem ser péssimos servidores públicos, já que possuem um baixo conceito acerca do público a que atendem, não os considerando merecedores do mesmo atendimento que dão àqueles privilegiados socialmente como eles.
Na sociedade contemporânea brasileira, estamos no pior dos mundos, pois essa lógica do privilégio não moderna, veio se articular com o desenvolvimento do capitalismo entre nós, dando a ele uma face muito particular. O ter dinheiro, o ser rico, o ser burguês se tornou sinônimo de ser alguém com direito a dados privilégios, inclusive, perante as leis. Ao mesmo tempo, essas categorias de profissionais liberais, vêm perdendo status social no interior da sociedade de mercado, vêm se proletarizando, o que gera um medo pânico em relação a perda de seus poucos privilégios ainda existentes, muitos deles de ordem apenas simbólica. Diante da ameaça de proletarização, essas categorias dos extratos médios da sociedade tendem a reagir ao processo de ascensão social dos mais pobres, ocorridos nos últimos anos no país. O fato das políticas educacionais, implantadas nos últimos anos, estar levando membros das camadas populares para os bancos das faculdades de medicina e direito acendeu o sinal de alerta, chamou atenção para esse processo de proletarização e ameaçou fortemente a prevalência da lógica do privilégio. A democratização do ensino superior, a adoção de políticas republicanas visando tornar as universidades públicas acessíveis aos mais pobres mexeu fortemente com esse imaginário do privilégio que ainda está presente nas faculdades de direito e de medicina. Os quase deuses têm que, agora, cair na real. A reação corporativa de médicos e juristas a várias ações de governos eleitos pela população, a pretensão de muitas instâncias do Judiciário de se apropriar de cada vez maior parcela do Estado, afrontando os representantes da soberania popular, aqueles que foram eleitos pelo povo, a defesa de privilégios insustentáveis numa verdadeira democracia como: salários acima do teto do funcionalismo, as várias gratificações e sinecuras que faz da justiça brasileira uma das mais caras do mundo, explicitam a sobrevivência, entre nós, dessa lógica do privilégio. Agir corporativamente, na defesa de interesses particulares, em detrimento dos interesses da sociedade, em detrimento dos cofres públicos, inclusive no desrespeito a lei, é um indício de que essas categorias ainda estão imbuídas de uma lógica estamental e nobiliárquica.
Para muitos médicos brasileiros foi um acinte verem desembarcar os médicos cubanos no país. Eles eram, em sua maioria negros, vinham de condição social humilde, vinham de um país considerado mais pobre e inferior ao Brasil, além de que vinham trazer uma outra maneira de entender a prática da medicina, não transformada, principalmente, numa mercadoria visando dar dinheiro e status social, por isso foram vistos como comunistas perigosos. O racismo, um dos elementos estruturantes da sociedade brasileira, o fato de que a categoria médica, no país, é formada, em sua maioria, por gente que se considera branca, foi responsável pela recepção hostil que os colegas cubanos tiveram entre os médicos brasileiros, o que não aconteceu por parte da clientela, a maioria formada por pessoas pretas e pardas, vivendo nas periferias, que os recepcionaram muito bem. O racismo faz com que os negros e pardos formem a grande maioria da população carcerária, já que a presença de negros entre os operadores do direito é uma raridade. A forma ressentida com que o ministro Joaquim Barbosa atuou no STF, sua ira antissistêmica, que o levou a se tornar mais um paladino do que um juiz, julgando sem qualquer equilíbrio, só não foi maior do que a hostilidade que alguns colegas a ele devotavam, como a famosa diatribe com o ministro Gilmar Mendes explicitou.
Todos nós já escutamos, algum dia, a frase que dá título a esse artigo: Com quem você pensa que está falando? Ela é a materialização na linguagem da lógica do privilégio, da ideia de que existe alguns melhores que outros, alguns que têm mais direitos que outro e menos obrigação que os demais. Quando você é interpelado por essa frase é para que você se coloque em seu lugar de subalterno, para que você reconheça que está diante de alguém diferente dos demais, superior aos demais, que deve ser tratado com deferência e diferença. Ela aponta para o fato de que você cometeu um equívoco ao considerá-la uma pessoa como outra qualquer, uma pessoa com os mesmos deveres das demais. Essa frase normalmente é dita quando, numa dada situação, se cobra que alguém cumpra as leis, cumpra as obrigações, aja como deveria agir qualquer um. O problema é que essa pessoa não se considera uma pessoa comum, com os mesmos direitos e deveres que os demais. Portanto, uma sociedade fundada na lógica do privilégio terá uma enorme dificuldade em construir instituições democráticas e republicanas, terá uma enorme dificuldade de compreender, inclusive, o verdadeiro sentido da vivência da cidadania. Ser cidadão é justamente gozar de direitos e possuir deveres comuns a todos os demais. A cidadania foi entendida desde a emergência dos regimes políticos fundados na soberania popular como sendo universal, estendida a todos os membros da população da nação. Não pode haver cidadania efetiva quando alguns se julgam melhores do que outros, quando uns defendem seus interesses corporativos em detrimento dos direitos do restante da população, não existe cidadania quando se aparelha as instituições e o Estado para o atendimento de demandas corporativas e individuais. A cidadania é condição de acesso, a todos, à fala pública, quando todos podem falar e quando se pode falar com todos sem que se tenha que perguntar com quem se está falando.
Durval Muniz é professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(Publicado originalmente no site Saiba Mais, agência de reportagem, aqui reproduzido com a autorização do autor)
Os profissionais do direito não fizeram diferente. A participação das várias instâncias do poder Judiciário no golpe é indiscutível. Aqueles que deveriam zelar pela observância das leis, pela defesa do Estado de direito, inclusive, pela defesa da Constituição foram decisivos para que leis fossem violadas, princípios básicos do direito fossem desconsiderados, que a Constituição fosse desrespeitada. A começar do vice-presidente da República, um jurista, constitucionalista, que, sabemos hoje, militou em todos os momentos pelo golpe e pela desobediência à lei maior do país. Sabemos, hoje, também, que ele não se destaca pela observância das leis. O Supremo Tribunal Federal se omitiu durante todo o processo, quando não militou a favor do desfecho que conhecemos. Até hoje não julgou o pedido de anulação do impeachment impetrado pelo advogado da presidenta legitimamente eleita. A atuação partidária e parcial de alguns de seus membros chega a ser escandalosa. O Procurador Geral da República se omitiu diante das inúmeras violações constitucionais perpetradas pelo juiz Sérgio Moro, não denunciou o deputado Eduardo Cunha enquanto esse foi importante para a realização do golpe e se mostrou parcial em inúmeras oportunidades. A Operação Lava Jato foi fundamental para a desestabilização do governo, trabalhando explicitamente para criminalizar o partido majoritário no governo, atuando para encurralar as lideranças do PMDB, obrigando-os a se afastar da aliança com o PT e tramar o golpe. As inúmeras violações à Constituição e ao Estado de direito cometidas pelo juiz Sérgio Moro, pelos procuradores que faziam parte da força-tarefa da Lava Jato, acompanhadas da espetacularização pela mídia de todas as suas ações prepararam o ambiente para o golpe. Não podemos deixar de lembrar o espetáculo promovido pela advogada Janaína Paschoal que, ao lado do jurista reacionário de priscas eras, Miguel Reale Jr, apresentaram o pedido de impeachment encaminhado por Eduardo Cunha para julgamento no Congresso Nacional. A reprovação em recente concurso na Universidade de São Paulo deixa explícito o saber jurídico da “musa do impeachment”. A Ordem dos Advogados do Brasil esteve na linha de frente em apoio à ruptura da ordem democrática e constitucional através de uma farsa parlamentar, sem nenhuma base jurídica sólida. Os cursos de direito, assim como os de medicina, espalhados pelo país, se tornaram centros de militância a favor do golpe, como haviam sido centros de militância em favor da eleição de Aécio Neves que, como sabemos hoje, mas já sabíamos à época também, tem muitas contas a ajustar com a justiça.
O comportamento dessas duas corporações – deixando claro que muito juristas e médicos não partilham dessas mesmas concepções – remetem à própria trajetória da formação médica e jurídica no país, como também explicitam a permanência entre nós de um elemento que foi decisivo na estruturação da sociedade brasileira: a lógica do privilégio. Durante todo o período colonial não tivemos a presença do ensino superior entre nós. Somente com a independência e a instalação do regime monárquico, no país, foram criadas as primeiras instituições de ensino superior, destinadas, justamente, a formatura de juristas e médicos. As Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro e as Faculdades de Direito de Recife e São Paulo foram as primeiras instituições voltadas para formar uma elite que iria servir ao regime monárquico e dirigir os destinos da nova nação. Como partes de uma ordem social, política e jurídica que ainda mantinha muitos elementos do chamado Antigo Regime, com a presença de uma pretensa aristocracia, de uma nobreza, que se destacava do todo da população por sua pertença a dadas genealogias de sangue e privilégios nobiliárquicos, os formandos dessas faculdades passaram a considerar o acesso ao ensino superior como uma marca de distinção, como um privilégio, como uma prebenda exclusiva daqueles pertencentes aos mesmos extratos sociais que eles, um privilégio estamental ou de classe. Como o ensino superior foi tardiamente introduzido no país, como as nossas primeiras universidades só foram criadas em pleno século XX, como o ensino superior continuou, por muito tempo, sendo de difícil acesso para a maioria de uma população formada majoritariamente por analfabetos ou por pessoas que tinham acesso precário às primeiras letras, consolidou-se, entre nós, a visão de que o acesso á universidade é um privilégio de que alguns devem desfrutar. Mesmo com a criação das universidades federais, a partir dos anos cinquenta, mesmo com a reforma universitária e a expansão do ensino superior realizadas após o golpe de 1964, a clientela universitária continuou se concentrando nas camadas médias e altas da sociedade.
É bastante significativo que, quando da implantação dos campi universitários por parte dos governos militares, tenha havido resistência por parte dos professores e alunos dos cursos de direito e medicina em se integrarem a essas novas instalações, defendendo a manutenção de seus antigos prédios, apartados da convivência com os alunos e professores dos demais cursos das universidades, era a lógica da superioridade ou do privilégio atuando. Os alunos egressos desses dois cursos são os únicos a receberem o título de doutor, mesmo que tenham apenas concluído a graduação, mesmo não tendo cursado o doutorado. Na maioria das outras áreas do conhecimento, mesmo que alguém tenha cursado o doutorado, não faz questão de ser chamado de doutor, já os médicos e, principalmente, os juristas fazem questão de ser assim chamados. O doutor funciona aqui como uma espécie de título nobiliárquico, ele indica a distinção e a diferença, não apenas de saber, mas inclusive de condição social. Mais ainda, a par com um sentido que vem das sociedades marcadas pela lógica do privilégio, o doutor aqui remete a pretensa existência de pessoas de uma qualidade superior às demais e, portanto, com direito a ser tratadas de modo diferenciado e ter direitos que os demais não podem ou não deveriam ter. As camadas populares brasileiras, muito marcadas pelo servilismo advindo da escravidão, chama de doutor todo aquele que é de condição social considerada superior ou distinta. Essa distinção, essa diferença em relação aos demais profissionais se explicita, também, no fato de que essas duas categorias utilizam roupas, paramentos, insígnias e, inclusive, uma linguagem que as distingue dos demais mortais. A roupa branca dos médicos, que os estudantes de medicina portam com orgulho desde o primeiro dia de aula, o paletó e gravata, obrigatórios para todos os membros do judiciário, a toga, remetem a uma sociedade de corte, a uma sociedade aristocrática, onde a distinção entre nobres e plebeus, inclusive, em relação ao burguês, ao morador das cidades, deveria ser visível, a começar pelas vestimentas e ornamentos. A escrita ininteligível dos médicos, o uso de uma terminologia própria, assim como a retórica medievalizante dos operadores do direito, com o uso de expressões em latim, com o emprego de palavras raras e imagens de pouco uso, são fundamentais para reproduzirem essa aura de seres especiais, privilegiados, distintos, de um saber superior e raro, em relação aos demais. A própria autoridade do médico e do jurista, o poder quase discricionário de que gozam, podendo, em uma fala, com uma penada, condenar alguém à morte ou à prisão, são pouco afeitas a uma sociedade democrática, republicana e cidadã.
Como estamos presenciando nestes dias que correm, no país, as leis podem ser utilizadas para perseguir e cometer injustiças, o que foi uma constante na história da justiça brasileira. Temos uma justiça que explicita bem o que é a própria sociedade a que pertence, sendo em muitos casos misógina, racista, homofóbica, perpetuadora de preconceitos e privilégios. Tanto o acesso a medicina de ponta, como o acesso à justiça continua sendo um privilégio na sociedade brasileira e, seus profissionais vêm, quase sempre, das camadas privilegiadas da sociedade e raciocinam e agem na defesa do privilégio. A lógica familista, típica da sociedade brasileira, se faz aqui presente, com os consultórios médicos passando de pai para filho, assim como os escritórios de advocacia, as togas, os cargos públicos. Muitos profissionais dessas áreas, pela própria formação que receberam e sua origem social têm pouco apreço pelas camadas populares, têm conceitos bastante desabonadores de seus clientes pobres, oferecendo para eles o pior serviço possível. Vistos ainda como plebe ignara ou como homens sem qualidades morais, sociais, éticas e até humanas, são tratados como gente de segunda categoria, não como cidadãos portadores dos mesmos direitos e deveres. Esses profissionais, formados na lógica do privilégio, só podem ser péssimos servidores públicos, já que possuem um baixo conceito acerca do público a que atendem, não os considerando merecedores do mesmo atendimento que dão àqueles privilegiados socialmente como eles.
Na sociedade contemporânea brasileira, estamos no pior dos mundos, pois essa lógica do privilégio não moderna, veio se articular com o desenvolvimento do capitalismo entre nós, dando a ele uma face muito particular. O ter dinheiro, o ser rico, o ser burguês se tornou sinônimo de ser alguém com direito a dados privilégios, inclusive, perante as leis. Ao mesmo tempo, essas categorias de profissionais liberais, vêm perdendo status social no interior da sociedade de mercado, vêm se proletarizando, o que gera um medo pânico em relação a perda de seus poucos privilégios ainda existentes, muitos deles de ordem apenas simbólica. Diante da ameaça de proletarização, essas categorias dos extratos médios da sociedade tendem a reagir ao processo de ascensão social dos mais pobres, ocorridos nos últimos anos no país. O fato das políticas educacionais, implantadas nos últimos anos, estar levando membros das camadas populares para os bancos das faculdades de medicina e direito acendeu o sinal de alerta, chamou atenção para esse processo de proletarização e ameaçou fortemente a prevalência da lógica do privilégio. A democratização do ensino superior, a adoção de políticas republicanas visando tornar as universidades públicas acessíveis aos mais pobres mexeu fortemente com esse imaginário do privilégio que ainda está presente nas faculdades de direito e de medicina. Os quase deuses têm que, agora, cair na real. A reação corporativa de médicos e juristas a várias ações de governos eleitos pela população, a pretensão de muitas instâncias do Judiciário de se apropriar de cada vez maior parcela do Estado, afrontando os representantes da soberania popular, aqueles que foram eleitos pelo povo, a defesa de privilégios insustentáveis numa verdadeira democracia como: salários acima do teto do funcionalismo, as várias gratificações e sinecuras que faz da justiça brasileira uma das mais caras do mundo, explicitam a sobrevivência, entre nós, dessa lógica do privilégio. Agir corporativamente, na defesa de interesses particulares, em detrimento dos interesses da sociedade, em detrimento dos cofres públicos, inclusive no desrespeito a lei, é um indício de que essas categorias ainda estão imbuídas de uma lógica estamental e nobiliárquica.
Para muitos médicos brasileiros foi um acinte verem desembarcar os médicos cubanos no país. Eles eram, em sua maioria negros, vinham de condição social humilde, vinham de um país considerado mais pobre e inferior ao Brasil, além de que vinham trazer uma outra maneira de entender a prática da medicina, não transformada, principalmente, numa mercadoria visando dar dinheiro e status social, por isso foram vistos como comunistas perigosos. O racismo, um dos elementos estruturantes da sociedade brasileira, o fato de que a categoria médica, no país, é formada, em sua maioria, por gente que se considera branca, foi responsável pela recepção hostil que os colegas cubanos tiveram entre os médicos brasileiros, o que não aconteceu por parte da clientela, a maioria formada por pessoas pretas e pardas, vivendo nas periferias, que os recepcionaram muito bem. O racismo faz com que os negros e pardos formem a grande maioria da população carcerária, já que a presença de negros entre os operadores do direito é uma raridade. A forma ressentida com que o ministro Joaquim Barbosa atuou no STF, sua ira antissistêmica, que o levou a se tornar mais um paladino do que um juiz, julgando sem qualquer equilíbrio, só não foi maior do que a hostilidade que alguns colegas a ele devotavam, como a famosa diatribe com o ministro Gilmar Mendes explicitou.
Todos nós já escutamos, algum dia, a frase que dá título a esse artigo: Com quem você pensa que está falando? Ela é a materialização na linguagem da lógica do privilégio, da ideia de que existe alguns melhores que outros, alguns que têm mais direitos que outro e menos obrigação que os demais. Quando você é interpelado por essa frase é para que você se coloque em seu lugar de subalterno, para que você reconheça que está diante de alguém diferente dos demais, superior aos demais, que deve ser tratado com deferência e diferença. Ela aponta para o fato de que você cometeu um equívoco ao considerá-la uma pessoa como outra qualquer, uma pessoa com os mesmos deveres das demais. Essa frase normalmente é dita quando, numa dada situação, se cobra que alguém cumpra as leis, cumpra as obrigações, aja como deveria agir qualquer um. O problema é que essa pessoa não se considera uma pessoa comum, com os mesmos direitos e deveres que os demais. Portanto, uma sociedade fundada na lógica do privilégio terá uma enorme dificuldade em construir instituições democráticas e republicanas, terá uma enorme dificuldade de compreender, inclusive, o verdadeiro sentido da vivência da cidadania. Ser cidadão é justamente gozar de direitos e possuir deveres comuns a todos os demais. A cidadania foi entendida desde a emergência dos regimes políticos fundados na soberania popular como sendo universal, estendida a todos os membros da população da nação. Não pode haver cidadania efetiva quando alguns se julgam melhores do que outros, quando uns defendem seus interesses corporativos em detrimento dos direitos do restante da população, não existe cidadania quando se aparelha as instituições e o Estado para o atendimento de demandas corporativas e individuais. A cidadania é condição de acesso, a todos, à fala pública, quando todos podem falar e quando se pode falar com todos sem que se tenha que perguntar com quem se está falando.
Durval Muniz é professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(Publicado originalmente no site Saiba Mais, agência de reportagem, aqui reproduzido com a autorização do autor)
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