pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO. : Durval Muniz: Pornopolítica: a não existência do outro
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domingo, 5 de novembro de 2017

Durval Muniz: Pornopolítica: a não existência do outro

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Estou no Recife, no apartamento de uma amiga. A noite toda tentei dormir. No entanto, vizinho ao prédio, num pequeno bar popular, músicas são tocadas a toda altura. Indiferentes aos vizinhos, a quem, se supõe, têm o direito de dormir, no mínimo de escolherem as músicas que querem ouvir, seus gostos musicais são impostos a todo mundo, como se estivessem sozinhos no mundo, como se a rua, a cidade, o mundo fossem só deles. Agora são 8h35 da manhã, estou a exatamente dez horas ouvindo as mesmas músicas se repetirem infinitas vezes. Há cerca de uma hora escuto sem cessar “Sedutora”, a mesma música que convida a “apagar a luz e vir brincar”, mas minha vontade não é propriamente de brincar.
Vivo numa cidade que, desde que cheguei, me impressiona pela total falta de noção do coletivo, da existência em comum, fundamento da própria cidadania, do habitar a cidade. Em frente ao meu prédio, mora uma família típica da classe média brasileira. Moram em uma casa imensa, que ocupa o que antes foram dois lotes de terreno. Mas tanto espaço é muito pouco para nossa elite, dona do mundo. Ao construir a casa, o espaço reservado às calçadas de pedestres foi invadido. As calçadas deles têm metade da largura que deviam ter. Achando pouco, árvores foram plantadas no que sobrou, fazendo com que os pedestres tenham que caminhar pelo leito da rua. Mas não foi suficiente: quando raízes de uma das palmeiras que foram plantadas no jardim racharam o muro da casa, a solução não foi cortar a palmeira, mas fazer um bucho no muro para o lado de fora, reduzindo ainda mais o espaço de circulação de pedestres. Na curva que se formou no muro, foi feita uma espécie de jardineira, onde se plantou uma trepadeira que, ao crescer, não deixa os pedestres passarem. Sempre que se precisa tirar tralhas do quintal, elas são colocadas sobre a calçada. Os pedestres que se virem.
Todo ano, em algumas datas, a rua em frente a essa casa é simplesmente fechada, por essa família. Sem qualquer aviso à Prefeitura, ao Setor de Trânsito, um caminhão é atravessado na entrada da rua, tornando-se palco onde bandas tocam para que as pessoas dancem em plena rua. Não sei se com a anuência ou não dos vizinhos, gambiarras de lâmpadas são estendidas em frente aos imóveis alheios, mesas e cadeiras de plástico são espalhadas pela rua, brinquedos para crianças são instalados em frente a entrada das casas vizinhas. Sem qualquer sinalização de que a rua está bloqueada, os carros nela entram e têm, então, que voltar de ré. Toda a vizinhança é premiada com músicas tocadas até a meia noite. Numa casa que tem uma garagem que abriga seis carros das mais diferentes marcas e duas motos, não há espaço para fazer suas festas, é preciso privatizar o espaço público, invadir as ruas, atravancar o trânsito, ocupar as calçadas de pedestres, fazer da frente das casas dos vizinhos extensão da mansão, que parece ser sempre pequena para o ego, o poder e o falta de noção de vida coletiva de seus moradores.
A inação da Prefeitura Municipal, diante desse e de tantos outros casos, sempre me chamou atenção. Em Natal, os proprietários de imóveis não obedecem qualquer legislação na hora de construir as calçadas. Ser pedestre em Natal, notadamente se for idoso ou portador de necessidades especiais, é uma tarefa hercúlea. Calçadas são construídas como obstáculos à passagem, são elevadas, íngremes, irregulares, muitas desprovidas até de batentes. Fazendo caminhada, um dia, vi adolescentes usando uma calçada para fazer manobras de skate, de tão íngreme que era. Algumas calçadas são transformadas em continuação de jardim ou gramados, indicando que não devem ser pisadas, não são para passar. Continuamente as calçadas servem de extensão das casas comerciais, dos bares, das barracas. Mesas e cadeiras são instaladas, lanchonetes são improvisadas, fregueses comem tranquilamente sentados sobre as calçadas, por onde deveriam circular os pedestres, que se arriscam no leito da rua. Calçadas são constantemente obstruídas por carros e motos estacionados sobre elas. Por falta de ciclovias, ciclistas circulam sobre as calçadas. As oficinas mecânicas fazem das calçadas a continuação de seus prédios. As calçadas são privatizadas, obstruídas, ocupadas, sem que se veja qualquer ação por parte do poder público.
Um taxista me mostrou um sinal de trânsito, de proibido estacionar, colocado em frente a uma casa que, segundo ele, não foi colocado pela Prefeitura, mas por um ex-militar aposentado, que por ter dificuldade de manobrar e sair com o carro de sua garagem, principalmente quando havia carros estacionados próximos, resolveu mandar fazer um sinal clandestino e colocar no lugar, sem que o poder municipal nada faça. Os postos de gasolina se tornaram bares noturnos, onde carros são estacionados com aparelhos de som ligados a toda altura. Não satisfeitos em instalar paredes de som em seus veículos, que são capazes de tornar qualquer um surdo em pouco anos, o fazem voltados para o lado de fora. O som não é para ser escutado pelo proprietário, mas distribuído e imposto a todo e qualquer um, nas ruas por onde vai se passando, a qualquer hora do dia ou da noite, não importando proximidade com escolas, hospitais, creches, hotéis para idosos, etc.
Essas atitudes são resultado de uma sociedade em que a noção de público, de coletivo, em que o outro é muito pouco respeitado. Nossa formação histórica, assentada na instituição familiar, na prevalência da vida privada sobre a vida pública, no predomínio dos interesses privados, em relação aos interesses públicos, trouxe essas características para nosso modo de ser. Desprezamos o que é público, é aquilo que não é de ninguém, que pode ser invadido, depredado, destruído. Ao invés de ser o que é de todos, o que deve por todos ser usufruído, é o que deve ser privatizado, tomado para si ou, então, destruído, abandonado, não cuidado. A visão senhorial, que marca as nossas elites, faz com que elas enxerguem apenas o seu próprio nariz, que achem que o mundo existe só para elas, que o outro é apenas um atrapalho, um empecilho que deve ser superado. O outro sequer é enxergado, se ele existir e tiver seus próprios gostos e interesses, o problema é dele. Esse desconhecimento da existência do outro, se estendeu para as camadas populares, que introjetaram essa dificuldade em lidar com a alteridade, essa busca pela identidade completa entre a realidade, os outros e seus desejos. O que importa que a vizinhança queira dormir, se eu estou querendo beber e curtir um som, ela que se dane ou se mude. Se reclamar, ainda é chata, intolerante, estraga prazeres.
Se encontro a vaga para idoso ou deficiente físico disponível no shopping center, por que não a irei ocupar, com meu carrão? Se eu tenho aquela caminhoneta imensa, por que não estacioná-la atravessada, tomando parte da vaga vizinha? Se preciso fazer compras, por que não estacionar em fila dupla, na frente da loja, obstruindo a saída de outro veículo? Trata-se de sempre tirar vantagem da oportunidade oferecida, desde que ela favoreça os interesses e objetivos privados e imediatos. Não dá tempo nem de pensar que existe um outro que pode ser prejudicado, que está tendo seus direitos desrespeitados. Ele também não faria o mesmo, se tivesse oportunidade? Numa sociedade dos mais espertos, dos que chegam antes e primeiro que os outros para roubarem ou desobedecerem seus direitos, não é possível termos a noção de cidadania desenvolvida. Cidadania implica o reconhecimento do outro como um ser de direito, como o limite de meus próprios direitos, como sendo o que põe fronteiras a expansão de meu ego. Numa sociedade que durante muito tempo teve na relação senhor e escravo a relação fundamental, relação na qual o outro inexiste como ser de direitos, era visto como uma extensão da vontade do senhor, era visto como uma coisa, um objeto a ser utilizado, o respeito pela alteridade, pelos direitos do outro foi bastante atrofiado.
O egoísmo, a centralização em atitudes egóicas, a centralidade da vontade própria em detrimento da vontade coletiva, tem implicações políticas claras na sociedade brasileira. Somos uma sociedade que cultua e valoriza figuras ególatras, autocentradas, que atropelam o direito dos outros. O fascínio político que figuras como Vargas, Jânio Quadros, Carlos Lacerda, Antônio Carlos Magalhães, Fernando Collor, Jair Bolsonaro, exerceram e exercem sobre muita gente em nossa sociedade, vem desse culto a personalidades autoritárias, a esses líderes caracterizados pela prevalência de sua vontade individual sobre qualquer vontade coletiva, pelo “faz e arrebenta”, pelo “rouba mas faz”, típica de uma sociedade onde as figuras individuais imperam sobre as lideranças mais democráticas e republicanas. Se muita gente ama tiranetes e reivindica a volta dos militares, isso se deve a esse apreço de nossa sociedade por figuras que pouco se importam com os outros, que fazem de sua vida política a imposição de suas ideias, de seus projetos e de seus desejos. Não se admira o político que submete suas decisões a coletivos, ele parecerá fraco e sem iniciativa. No início de sua existência, o Partido dos Trabalhadores era muito criticado por discutir demais, por ser assembleísta, por tomar decisões coletivas. O surgimento da figura carismática e singular de Lula alimentou essa tendência política no Brasil de se buscar salvadores da pátria, de homens que sozinhos resolverão todos os problemas.
O que assistimos na política brasileira atual é a exposição, à luz do dia, de maneira despudorada, dessa prevalência do interesse privado sobre o interesse público. Claramente nossos parlamentares e governantes estão ali para atender seus interesses e vontades e não os da população, dos outros, no máximo os interesses de quem os paga e financia. Aquilo que era para ficar escondido, aquilo que era para ficar longe dos olhares e, no entanto, é mostrado em público é o que costumamos chamar de pornográfico. Podemos dizer que vivemos, no Brasil, nesse momento, sob o império da pornopolítica. Deputado aparece nu da cintura para cima exibindo o nome do presidente tatuado em seu corpinho. Negociações políticas são travadas a bordo da lancha Love Boat, acompanhadas de champanhe e garotas de programa. Parlamentar troca nudes pelo celular em pleno plenário. Aliado do governo confere em planilha quais dos deputados agraciados com verbas públicas honraram com seu voto o presidente acusado de corrupção. A situação do pinto do presidente eletriza o país, toda a nação querendo passar o dedo em sua próstata, para fazer o toque, alguns a querer salvá-lo, muitos querendo avaliar a possibilidade de sua morte iminente. Jornalistas, nas transcendentes entrevistas do presidente, querem saber como conheceu a moça com quem é casado, quem se declarou primeiro, qual o primeiro presente que a ofertou. Outro jornalista chegou a declarar que o presidente era bonitinho, uma gracinha. Nisso tudo, os outros, o país, a população, os trabalhadores, que se danem. Um golpe dado para atender, entre outras coisas, ao ego vaidoso de um ancião casado com uma jovem, a quem parece já não podia dar muitas emoções, é a expressão de uma pornopolítica, de uma política onde o privado se expõe na rua, onde o privado se estende e se mistura com o público, onde o privado se expõe sem pejo ou disfarce em todos os lugares.
Vou parando por aqui, porque tenho que me refugiar em algum lugar, em que possa escapar de mais uma vez ter que escutar “Sedutora”, Psirico e companhia. O som continua implacável, no bar, do outro lado da rua. Agora ataca de banda “A Loba”, ouço um uivo e penso que a fera que habita em mim vai esganar um a qualquer momento. Já são quase doze horas ininterruptas dessa tortura chinesa. Eu, o outro, quedo aqui aplastado, desrespeitado, invadido, perturbado, inexistente. Sou invisível e inaudível para aqueles que só enxergam a si mesmos, a seus desejos e vontades. A cidade é assim apropriada privadamente por uns, ela não é um ambiente em que todos possam conviver, respeitando regras coletivas e coletivamente estabelecidas, respeitando o direito dos outros, um ambiente de convivência civilizada das diferenças. Na cidade em que alguns são donos de tudo, podem fazer qualquer coisa que lhes dê na telha, têm mais diretos que outros, cidadania não existe. Esse parágrafo não havia terminado e eis que escuto novamente “Sedutora”, foi inevitável, o moto contínuo do desrespeito ao outro soa mais uma vez, nesse país de tempos tão pouco sedutores.
 
Durval Muniz é professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(Artigo publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem, aqui reproduzido com a autorização do autor)

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