pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: Artigo: Havia um Recife, naquele tempo, que nunca mais se repetiu!
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terça-feira, 2 de abril de 2024

Artigo: Havia um Recife, naquele tempo, que nunca mais se repetiu!


Das cenas propriamente "pernambucanas" que marcaram o Golpe civil-militar-empresarial de 64, duas nunca saíram da minha memória: aquela do Governador Miguel Arraes sendo levado num Fusca para o IV° Exército, depois de ter recusado a proposta de "renúncia" (- "Só o Povo de Pernambuco tem o poder legítimo de me tirar daqui!"), e aquela em que dois tanques de guerra se postam à frente da sede do Movimento de Cultura Popular no Sítio Trindade, para em seguida queimarem arquivos e, sobretudo, o "subversivo" LIVRO DE LEITURA PARA ADULTOS DO MCP (Josina Godoy e Norma Porto Carreiro). Dessas duas cenas, a que acho mais representativa da infâmia e da barbárie dos militares, é a dos canhões apontados para a cultura!
Havia um Recife, naquele tempo, que nunca mais se repetiu!Havia as ligas Camponesas de Francisco Julião que tentavam, mais uma vez, nos livrar na díptico colonial - escravidão e latifúndio; havia o Acordo do Campo quando, pela primeira vez se estabeleceu um salário mínimo para o trabalhador rural; havia a Frente do Recife de Pelópidas da Silveira (PSB), Miguel Arraes (PTN), Artur Lima Cavalcanti (PTB), Gregório Bezerra, David Capistrano (PCB) que fizeram uma inaudita ampliação do ideal democrático através de consultas populares regulares em vista da definição e direcionamento do orçamento municipal; havia um cara chamado Paulo Freire que propunha uma revolução copernicana na educação tradicional (que ele chamava de "bancária"): um programa de alfabetização de adultos baseado na realidade, na vida e na palavra de um personagem "novo" na filosofia da educação: o OPRIMIDO, que não se confundia apenas com o "proletariado" do marxismo. Havia um movimento teatral (Hermilo Borba, Ariano Suassuna, Luiz Mendonça) que trazia a linguagem e os problemas sociais do homem do nordeste para o protagonismo da dramaturgia local; havia uma Orquestra Sinfônica (Geraldo Menucci, Fittipaldi, Mário Câncio) que se apresentavam nas praças públicas do Recife com explicações didáticas sobre a importância e significado da música chamada "erudita"; havia o Bumba-meu-boi do Capitão Pereira (O Boi Misterioso de Afogados), trazendo a tradição da ressurreição como promessa de uma nova vida; havia Abelardo da Hora com sua estética da denúncia de nossa miséria social; havia Tereza Costa Rêgo com sua moderna sensualidade; havia Anita Paes Barreto, Secretária de Educação, expandindo e organizando uma rede estadual de ensino com um orçamento jamais visto na história da educação local; havia a antiga Universidade do Recife, sob o reitorado de João Alfredo da Costa Lima, criando o Serviço de Extensão Cultural que, finalmente, colocava a nossa Universidade a "serviço" da sociedade inclusiva; havia um cara chamado Luís Costa Lima que criou a Revista Estudos Universitários, abrindo o ambiente acadêmico para a participação dos intelectuais da cidade; havia um outro chamado Laurênio Lima que dirigiu a Rádio Universidade (hoje Paulo Freire) dando voz e ouvido às demandas sociais e manifestações culturais recifenses... Havia uma "promesse de bonheur" (promessa de felicidade) no ar, havia estudantes, intelectuais, artistas, empresários, governantes, homens e mulheres do povo que viram, naquela quadratura, as chances de termos, finalmente, um país um pouco melhor com um pouquinho mais de modernidade social e institucional...
Mas havia também o IBAD de Marco Maciel, o General Bandeira, o Sr. Álvaro da Costa Lima, o Sr. Armando Samico, a Aliança para o Progresso, a USAID e um Consulado Americano com 14 "adidos culturais" (todos eles com uma faixa na testa escrito "Agente da CIA"). Depois veio Paulo Guerra, o CCC, a reativação da "Sorbonne da Rua da Aurora" (Secretaria de Segurança Pública), a perseguição aos professores, prisões e assassinatos de intelectuais, estudantes, militantes; veio o 477, o AI.5, veio o "jubilamento", os crimes de Estado, os desaparecimentos, as mortes e enterros clandestinos praticados por militares e agentes estatais que nunca foram punidos e que continuam achando que podem tutelar a sociedade com seus canhões apontados para a cultura, para a educação, para os adversários políticos, para a inteligência, para a Democracia...
Lamentável e inquietante a posição de Lula ao dizer que "tudo isso é história e não vamos ficar remoendo o passado"! Passado, Sr. Presidente, não se remói, não se tritura, não se joga na lata do lixo: se estuda, se rememora, se interpreta, se avalia, se julga..., não para que "nunca mais se repita", mas para que não possamos ter o álibi de que não sabíamos, de que não fomos avisados.
Havia - como naquele poema de Drummond- um Recife, havia um amanhecer, havia uma flor no jardim, havia uma criança que brincava...

Flávio Henrique Albert Brayner, professor emérito da Universidade Federal de Pernambuco.

(Publicado originalmente no Jornal do Commércio, em sua edição de 2\04\2024)

P.S.: Contexto Político: O livro de Educaçaõ de Adultos citado pelo professor Brayner, escrito por duas lideranças femininas do MCP, por algum motivo, embora a princípio esteja perfeitamente adequado aos pressupostos concebidos pelo Método Paulo Freire de Educação de Adultos, não era do agrado do autor. Sobre as lembranças boas daquele Recife, só faltou mesmo mencionar o delicioso cheirinho de biscoito saindo do forno da antiga Fábrica da Pilar, quando se transitava pela avenida Cais do Apolo.

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