pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Educação, Trabalho e Pós-Capitalismo

 

Modelo escolar atual foi desenvolvido, ao longo do século XX, para formar mão-de-obra industrial. Mundo agora é outro, mas há quem acredite que a escola era melhor antigamente… Provocações para construir um ensino radicalmente novo

Por Roberto Rafael Dias da Silva | Imagem: Sara Wong

A educação profissional, em nosso país, surgiu assentada na dicotomia entre o pensar e o fazer. Em decorrência da divisão social do trabalho (e das classes sociais) entendíamos que a educação com foco profissionalizante deveria ser ofertada para as camadas mais pobres da população. Um marco nesta breve digressão histórica foi a criação da Escola de Aprendizes e Artífices, pelo presidente Nilo Peçanha, no ano de 1909. A partir da década de 1930, como decorrência de nossas experiências de industrialização no país, assistimos ao esforço político destinado à formação de recursos humanos, atendendo ao conjunto de diferentes exigências sociais e econômicas.

No decorrer da primeira metade do século passado, então, o Estado brasileiro engendrou um conjunto de dispositivos com ênfase na profissionalização e na preparação de nossas juventudes para o novo cenário. O ensino médio e a educação profissional – ora em ação articulada, ora separadamente – receberam um conjunto de investimentos políticos, dentre os quais poderíamos retomar: a) a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública (1931); b) as redefinições da educação secundária na reforma de Francisco Campos; c) a criação do sistema S (1942); d) o posicionamento das escolas federais como autarquias (1959). Em termos políticos, poderíamos afirmar que o Estado brasileiro, ao priorizar um modelo de desenvolvimento econômico centrado na industrialização, redefiniu alguns princípios e modelos formativos para a educação e inserção profissional das juventudes.

Em termos acadêmicos, também nos deparamos com reações aos modelos que predominaram e, da mesma forma, conseguiram propor alternativas críticas. Desperta nossa atenção nesta literatura a prioridade nas relações entre educação e trabalho, acompanhada de uma preocupação com a formação humana multidimensional (politécnica, omnilateral, dentre outras adjetivações). Nesta tradição apregoa-se a necessidade de justapor a formação acadêmica e a formação profissional, priorizando as importantes articulações entre cultura, ciência e tecnologia com o mundo do trabalho industrial.

Os modelos curriculares engendrados na segunda metade do último século assentavam-se sob os pilares da sociedade industrial e das formas subjetivas que dela se derivavam. Eram currículos focalizados na acumulação de conhecimentos e experiências, com uma formação a longo prazo e modelados pelas aptidões requeridas pelo mundo laboral. Seletivos na entrada e com altos índices de abandono e reprovação escolar, tais cursos orgulhavam-se de contribuir com uma mão-de-obra qualificada para o desenvolvimento do país. Todavia, com o advento de uma nova morfologia do trabalho (explicada por Ricardo Antunes) e com a própria reconfiguração psíquica do mundo do trabalho (desenvolvida por Vladimir Safatle), os modelos curriculares centrados na profissionalização foram colocados em xeque.

À medida em que o trabalho se reconfigura e a subjetividade do trabalhador – investidor de si mesmo em um cenário de precarização estrutural – é exposta à flexibilização neoliberal, precisamos colocar sob interrogação o futuro da educação profissional, bem como das possibilidades de escolarização juvenil. Concordo com François Dubet, sociólogo francês, que a atitude a ser evitada neste momento é a de “nostalgia sobre a escola do passado, cujos defeitos se apresentam pouco a pouco”. Tal atitude nostálgica, que estranhamente tem predominado na tradição progressista, não nos permite produzir novas reflexões: que articulem a inovação educativa com a governança escolar democrática e que busque por modelos curriculares mais plurais.

Uma literatura crítica, de caráter heterodoxo, pode nos auxiliar a reenquadrar nossos debates sobre esta temática. Indicarei duas possibilidades a serem consideradas neste texto com foco em uma educação pós-capitalista. A primeira contribuição busco em Bruno Latour e nas novas demandas por orientação política no Antropoceno. A nomeada repolitização da ecologia trouxe o reconhecimento de que a atual crise que experimentamos impacta diferentes nuances da vida humana. Tenho me interrogado sobre os direcionamentos dos cursos profissionalizantes para pensar este novo regime climático. Que direcionamentos podem ser considerados em nossos currículos? Que experiências formativas precisam adquirir maior evidência?

A segunda contribuição podemos localizar em Michel Serres, em sua obra “Polegarzinha”, ao descrever as mudanças sociais contemporâneas que estão em curso – modificando as relações que as crianças e os adolescentes estabelecem com o mundo. Essas novas subjetividades acessam ao conhecimento de outros modos, inventam novos laços e estabelecem específicas conexões com os saberes e as experiências. No que tange ao trabalho, especificamente, Serres instiga-nos a pensar que a Polegarzinha aspira construir sua narrativa de vida para além da produtividade e deseja encontrar propósitos diferenciados para sua relação com o trabalho. Nas palavras do filósofo, poderíamos interrogar: “Nascido com a revolução industrial e copiado do ofício divino dos monastérios, estará o trabalho, hoje em dia, pouco a pouco morrendo?”.

Com estas duas provocações, interessa-me colocar em evidência que os currículos de nossos cursos de educação profissional precisam atualizar a sua agenda de preocupações. Para além dos clássicos debates entre ensino propedêutico e disciplinas especializadas – saber e fazer –, é momento de enfrentarmos a reconfiguração subjetiva de nossos estudantes, os novos modos de relação com o trabalho e os impactos da repolitização da ecologia. Outros pontos, certamente, precisam ser levados em consideração; todavia, para este texto, a preocupação encontra-se em mobilizarmos coletivamente novas interrogações acerca das relações entre escola, trabalho e educação pós-capitalista. Em outras palavras, não podemos responder a atual crise da educação profissional reforçando os modelos modernizadores do capitalismo industrial!


Referências:

LATOUR, Bruno. Onde aterrar? – Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro:Bazer do Tempo, 2020.

SERRES, Michel. Polegarzinha. 3a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2018.

SILVA, Roberto Rafael Dias da. Entre a compulsão modernizadora e a melancolia pedagógica: a escolarização juvenil em tempos de pandemia no Brasil. Práxis Educativa, v. 15, p. 1-12, 2020. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/342701767_Entre_a_compulsao_modernizadora_e_a_melancolia_pedagogica_a_escolarizacao_juvenil_em_tempos_de_pandemia_no_Brasil

SILVA, Roberto Rafael Dias da. Customização curricular no Ensino Médio: elementos para uma crítica pedagógica. São Paulo: Cortez Editora, 2019.

(Publicado originalmente no site Outras Palavras)

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Tijolinho: Em política não existem "nunca" nem "jamais". O PT deve continuar no Governo Paulo Câmara.


Por ocasião do golpe civil-militar de 1964, militares se dirigiram ao Palácio do Campo das Princesas para depor o então governador do Estado, Dr. Miguel Arraes de Alencar. A forma altiva e soberana com que o governador Arraes enfrentou a situação já é do conhecimento dos brasileiros, honrando os votos dos pernambucanos que o elegeram ainda na vigência do processo democrático. Afastado do cargo e conduzido ao Presídio de Fernando de Noronha, seu vice, Paulo Guerra, não encontrou dificuldades em assumir o cargo, pois sua condição de representante das tradicionais oligarquias políticas do Estado não causaria estranhmanto aos militares. Paulo Guerra era um ator político da "cota oligáquica" da política de alianças do Dr.Arraes, que cindia os redutos conservadores, facilitando suas eleições, ao unificar os apoios do campo de esquerda ou progressista. Penso que Arraes aprendeu isso ao dirigir o IAA, mas o professor Michel Zaidan, em artigo, apresenta outra possibilidade. 

Em todo caso, essa estratégia do grande político pernambucano não é o mais importante. O mais importante para este post é uma dessas frases que se tornam perenes na política ao longo dos anos. Atribuída a Paulo Guerra, a frase é: Em política não existem "nunca" nem "jamais". Isso vem a propósito de um anunciado encontro entre o governador Paulo Câmara(PSB-PE) e a Presidente Nacional do Partido dos Trabalhadores, Gleisi Hoffmann. Segundo dizem, eles teriam tratado da conjuntura política e das rusgas entre as duas agremiações partidárias por ocasião do segundo turno das eleições municipais de 2021, vencida pelo socialista João Campos. Naturalmente, a participação de integrantes da legenda petista no Governo Paulo Câmara, também foi discutida e, em nome de um acordo de cavalheiros e das articulações políticas em torno das eleições presidenciais de 2022, esses integrantes da legenda devem permancecer no Governo até o final de 2021.  

Vejo aqui uma situação confusa, preocupante e vexatória. Confusa na medida em que pouco se sabe a opinião de um ator político como Lula, duramente atingido durante a campanha, embora Gleisi seja muito próxima a ele. Por outro lado, os arranjos nacionais não estão nada claros e já houve algum aceno do PSB ao PDT, na medida em que seu presidenciável, Ciro Gomes, esteve aqui na província emprestando seu apoio ao nome do candidato Joaõ Campos. Contrariando uma resolução da Direção Nacional do PSB, sua bancada sugere fechar questão em torno do voto no nome de Arthur Lira(PP-AL) para a Presidência da Câmara dos Deputados. Preocupante porque lá atrás, ao invés de constituir-se numa força política independente - e construir a musculatura política necessária para torna-se competitvo - o PT optou por ser força auxiliar dos socialistas, em nome de cargos e composições nas chapas majoritárias. Vexatória na medida em que fica claro que alguns dos seus integrantes abdicaram dos projetos coletivos em nome dos interesses comezinhos. 


Editorial: Ricardo Lewandowski determina que, em 48 horas, seja definido um plano de vacinação da população contra a Covid-19.


Houve um tempo em que as atitudes dos governantes em situações de calamidades públicas ou catástrofes eram bem mais previsíveis. Hoje, os tempos são outros e, até em situações assim, a construção de um consenso em torno de ações que envolvam medidas concretas para o enfrentamento de alguma pandemia torna-se difícil. O bate-cabeça entre o Governo Federal e os entes federados em torno da definição de uma política de vacinação da população contra a Covid-19, encaixa-se nessa premissa. Na medida em que os governantes não se entendem em torno do assunto, a população continua desasistida, sem leitos de UTIs, sem assistência social, num momento crucial de uma nova onda da doença, infectando e ceifando vidas pelo país afora. No final, quem paga os custos desses desentendimentos é a população. E um preço muito alto, hoje calculado oficialmente em mais de 180 mil vidas. Aqui na província pernambucana, engrossa essas estatísticas o ex-Deputado Federal do antigo PMDB, hoje filiado ao Solidariedade, Carlos Eduardo Cadoca, que estava internado no Hospital Português.  

Há algo muito maior em jogo do que as picuinhas políticas, do que a troca de farpas de governadores de Estado, parece-nos que muito mais movidas por interesses políticos do que propriamente preocupados com a saúde da população. Um deles, o "engomadinho" é um animal político  de ambições desmedidas, o que não lhes permitiu o menor pudor em utilizar este momento bastante delicado vivido pelo país com o objetivo de antecipar a campanha das eleições presidenciais de 2022. É a ética das consequências utilizadas em seu estado mais puro, meu caro Max Weber. Neste aspecto, seus críticos tem toda a razão. Depois, a decisão sobre o assunto, de fato, cabe ao Ministério da Saúde, que deve desenvolver um plano de vacinação de caráter democrático, amplo e irrestrito, distribuido consoante critérios logísticos e cientíticos adequados a cada situação. Permitir que um ente federado assuma a dianteira deste processo, de fato, pode provocar muitos problemas, incluisve um alto índice de insatisfação da população dos estados não contemplados. 

Essa queda de braços entre o Governo Federal e os entes federados já se desenrola desde o início da pandemia, com adoções de medidas distintas para o enfrentamento do problema. A ajuda emergencial do Governo Federal também enfrentou vários problemas, como um índice elevado de concessões de benefícios fraudulentos, assim como, o que é mais trágico, a demora da destravamento burocrático para atender aquele contingente populacional que, de fato, precisava do auxílio. Quatro milhões de "invisíveis" foram descobertos no período de cadastramento, ou seja, pessoas que, sequer, possuíam um registro de nascimento. Conforme já afirmamos em editoriais anteriores, o Brasil enfrentou esta pandemia num dos seus momentos políticos mais conturbados, o que, certamente, pode ter contribuído para o agravamento dos problemas por ela provocados, como a queda das atividades econômicas, o desemprego, entre outros.  

Diante do exposto, como costuma dizer os advogados de defesa, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewansdowski, atendendo a uma solicitação da Rede Sustentabilidade, determinou que o Ministperio da Saude, no prazo de 48 horas, defina um plano de vacinação para a população, explictando o início e o término dos trabalhos. É lamentável que um quadro grave de saúde pública tenha se transformado numa arena de disputas políticas. Ainda ontem, acompanhei um vídeo alarmante sobre as pessoas sem teto que estão morando ali nas proximidades da Igreja do Pátio de Nossa Senhora do Carmo, aqui no Recife. Crianças e adultos dormindo ao relento, cobertas com papelão e roupas estendidas em varais. Este é um quadro que tende agravar-se em razão de não solução capitalista aos problemas dos indivíduos que não se integram no circuito do consumo. O esgarçamento dessa lógica de racionalidade ultraliberal está conduzindo a humanidade ao caos. Espero que possamos construir urgentemente uma alternativa pós-capitalista. É isso ou a barbárie.  

domingo, 13 de dezembro de 2020

Michel Zaidan: Considerações sobre a tese de titularidade de Marco Mondaine sobre a trajetória política de Enrico Berlinguer




É literalmente uma honra participar da Comissão que vai avaliar o pedido de acesso à Titularidade – na carreira do magistério superior – do professor Marco A. Mondaine, do Departamento de Serviço Social. Há muito tempo acompanho a trajetória acadêmica de Mondaine na UFPE, lendo seus livros, resenhando ou prefaciando seus trabalhos, participando de suas bancas examinadoras programas de entrevista (no rádio e na televisão). E não nego que tenho muitas afinidades políticas com o seu pensamento.
Somos de uma mesma geração. Aquela que atravessou dolorosamente o processo da diáspora comunista até a transformação de vários de seus membros em políticos e militantes de outras legendas, com outro pensamento político (PSDB, PMDB, PPS). Esse processo nos fez órfão de uma utopia renovadora, “aggionarda” inspirada num socialismo democrático, plural e laico, que tinha em nomes como Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, Luis Werneck Vianna e outros, seus principais expoentes. Particularmente, o primeiro desta lista está profundamente ligado ao tema desta tese: a via italiana para o socialismo. Ler e meditar sobre este trabalho é um exercício de volta ao passado e como éramos otimistas em relação ao futuro. Remexer nas feridas e cicatrizes.
Diga-se, de início, que Mondaine tirou um excelente proveito de sua formação de historiador. A escrita dessa tese é límpida, clara, objetiva, sem esconder a posição de simpatia pelo objeto de estudo. Vamos apresentar aqui alguns pontos para um diálogo cordial e fraterno sobre o assunto.
l. Gramsci , Togliati e o comunismo italiano
É difícil não ver na elaboração política e filosófica do famoso autor dos “Cadernos de Cárcere”) as marcas da rica e diferenciada cultura italiana, cuja principal corrente filosófica é o que foi denominado de “historicismo” e o reconhecimento da influencia de Benedito Crocce e seu paradigma da “história ética-política” sobre o pensamento gramsciano. A forte ênfase na cultura, na hegemonia como direção moral e cultural, no papel dos intelectuais, no partido como intelectual coletivo. Nisso a cultura contemporânea italiana se diferencia, por exemplo, da francesa, da portuguesa, da soviética. 0 marxismo ocidental – em sua versão italiana – jamais poderia ter se convertido ao catecismo do DIAMAT russo, em razão de sua pluralidade cultural e influencias filosóficas (incluindo, Hegel); o que a afastou com certeza do positivismo e o evolucionismo e do determinismo econômico (apesar do esforço de Galvano Della Volpe).
Inobstante, seja preciso problematizar a relação de Gramsci com Togliati, a Terceira Internacional e o comunismo italiano. Esclareçamos aqui o fato de Antonio Gramsci e Palmiro Togliatti terem sido dirigentes comunistas e membros dos Comitês da 3ª. Internacional Comunista (Komintern). Embora em sua juventude, ainda sob forte influencia do historicismo crocciano, tenha escrito um artigo dizendo que a revolução russa contrariou o capital, e tenha feito uma defesa vigorosa dos comitês de fábrica de Turim, Gramsci tem que ser definido como um intelectual de partido e um leninista. Há originalidade do autor sardo se manifesta no período da produção carcerária, onde ele – criticando a “guerra de movimento” – propõe uma nova concepção de revolução, através da “guerra de posição” e a longa batalha da idéias através das instituições. Surge aí o conceito de hegemonia, intelectual orgânico, centralismo orgânico, bloco histórico etc.
A questão que se coloca é o uso ou a apropriação política e teórica que foi feita por Togliati sobre o legado gramsciano. Sabe-se hoje, através da biografia de Giuseppe Vacca, das inúmeras concessões feitas por Togliati ao estalinismo, em função de seu status de dirigente comunista e da Internacional e o quando isto custou à vida de Gramsci. Mais ainda, da disputa entre a cunhada de Gramsci e os dirigentes do PCI pela edição e publicação dos escritos carcerários. Onde Togliati levou a melhor. Togliati foi um político pragmático. Sobreviveu a era do Estalinsmo e foi o responsável pela publicação da obra de Gramsci, depois de sua morte. Resulta no mínimo, problemático atribuir a ele a influencia gramsciana na política de PCI. Como toda apropriação, a de Togliati respondeu às suas conveniências.
2. A crise do Eurocomunismo e da via “aggornada” do comunismo italiano, na época de Berlinguer.
A crise do comunismo italiano abalou a todos os militantes que apostavam numa via democrática para o comunismo (Terceira via). Ela se deve, no entanto, a vários fatores: a tendência liberal (e depois neoliberal) dos partidos participantes do “compromisso histórico" (Democracia cristã e Partido socialista), o que afastou cada vez mais da possibilidade de formação de um bloco partidária que dessa sustentação à democracia.
A desconfiança eterna desses partidos em relação ao compromisso dos comunistas com a defesa da democracia foi responsável pela dificuldade de se realizar o “compromisso”. Mais ainda, a ligação crítica do PCI com a União Soviética.
Segundo, o terrorismo de direita e da extrema-esquerda na Itália contribuiu muito para o isolamento dos comunistas, num momento em que o PCI estava propondo uma aproximação política em defesa das instituições democráticas. Além da mudança da retórica política de berlinguer ( alternativa democrática e reforma moral).
Terceira a própria crise do movimento comunista internacional (Hungria, Polônia, Tchecoslováquia, Afeganistão). A visão preponderante de uma política externa militarizada, expansionista e intervencionista conspirou contra a idéia de um comunismo de face humana, ocidental, pluralista e democrático. Os primeiros a cair foram o PCF e PCE. Finalmente, o PCI. Como se diz, o muro caiu encima dos comunistas que defendiam a renovação da política comunista em seus países.
3. a influencia do comunismo aggionardo no mundo
0 eurocomunismo se estendeu muito além das fronteiras da Itália, influenciando outros partidos comunistas (Frances, Espanhol), e entre eles, o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Dedicamos a esse grupo responsável pelo “aggionarmento” do PCB, um ensaio intitulado: “as nuances da renovação comunista no Brasil”. PECEBISMO INCONCLUSO, escrito em parceira com o saudoso professor Raimundo Santos. Nele estão contempladas as idéias e concepções de Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho, Luis Werneck Vianna e outros.
O principal intelectual-formulador desse grupo era o Carlos Nelson Coutinho, que tinha concluído sua transição da “ontologia do ser social” de Lukacs para a “catarse” da política gramsciana. 0 seu ensaio mais famoso “A democracia como valor universal” (frase pinçada do discurso de Berliguer) foi um divisor de águas na história política da esquerda brasileira.
Inspirado em Gramsci e nos autores italianos contemporâneos (Ingrao, Vacca, Berliguer) o Carlos Nelson tentou aquilo que já foi chamado “a quadratura do círculo”: compatibilizar o leninismo e sua concepção tática da democracia com a democracia como valor estratégico, universal. Tarefa muito difícil em razão da teoria negativa do Estado e a visão tática, instrumental das instituições democráticas. Num escrito posterior, o autor baiano fez sua autocrítica, abandonando o leninismo e dizendo ser difícil compatibilizar o conceito de hegemonia de Gramsci com o pluralismo político e a alternância de poder. Escrevemos sobre as aporias dessa teoria democrática do Carlos Nelson (Democracia e Socialismo. Notas em homenagem ao pensamento do Carlos Nelson). Na verdade, essas idéias faziam parte de uma tese de doutorado inacabada: ler a hegemonia como contrato social. Ou seja: rousseuniar Gramsci. Tarefa difícil. Dada a divergência das concepções de base de cada um: a concepção contratual da democracia e a concepção marxista do Estado e da política.
Esta ala do partido comunista foi expurgada pelo centro, suas teses foram absorvidas no síntese ambígua (veja-se: a ruptura indolor. O conceito de crise na história do comunismo brasileiro) e o grupo se dispersou. Um bom número desses militantes foi para a revista Presença, que se definia a voz dos comunistas da sociedade civil, sem partido.

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE.

sábado, 12 de dezembro de 2020

Tijolinho: Em pronunciamento, a Deputada Tereza Leitão manda recado aos dissidentes petistas.


Assentada a poeira das últimas eleições municipais - onde os ânimos estiveram bastante acirrados aqui na província - agora já é possível ouvir discursos mais sensatos, coerentes, equilibrados - e até conciliadores - dos atores que estiveram direta ou indiretamente envolvidos na disputa. Neste perfil enquadro um pronunciamento da Deputada Estadual, Tereza Leitão(PT-PE), no dia de ontem, onde o tema das eleições municipais foi tratado pela parlamentar. Numa entrevista recente, concedida às páginas amarelas da revista Veja, o prefeito eleito do Recife, João Campos(PSB-PE), também tratou das possíveis sequelas deixadas pela campanha, notadamente em relação ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Segundo ele, nada que não possa ser superado. Sendo muito franco aqui com vocês, gratidão é um valor muito caro aos nordestinos. Penso que essas feridas não vão cicatrizar facilmente. Vamos esperar para ver, pois a política sempre nos surpreedem. 

Por falar em feridas abertas, aqui na província tivemos algumas situações inusitadas, como integrantes do PT que, em razão de espaços no Governo Paulo Câmara(PSB-PE), optaram por cruzar os braços ou apoiar explicitamente o nome de João Campos(PSB-PE). Mesmo sabedor dessas nuances, assim que foi eleito, o futuro prefeito declarou que não ofereceria nunhum cargo politico ao Partido dos Trabalhadores em sua gestão. Lideranças socialistas e petistas ainda dialogam sobre o assunto, mas, se depender da deputada, ela deixou claro sua posição. Quem desejar continuar no governo que faça o favor, antes, de pedir a desfiliação do partido. Pouparia a burocracia dos processos internos de expulsão. Mesmo no período das festas de Natal, quando os queijos do reino são bem-vindos, não vejo outra alternativa para a direção da legenda, que não a adoção de medidas mais duras em relação a atitudes do gênero. 

Discursos moderados, talvez conciliadores - mas nem por isso menos contundentes - os execessos da campanha ainda devem repercurtir bastante nas Casas de Joaquim Nabuco e José Mariano. Isso é um bom sinal, um sinal de que nossos parlamentares - em sua maioria - repudiam práticas não condizentes com o processo democrático, onde o que deve ser discutido são os projetos dos candidatos para gerir a polis. No segundo turno das eleições municipais deste ano, a campanha baixou sensivelmente seu nível aqui no Recife, comprometendo nossa imagem de uma cidade  rebelde, aguerrida, de disputas renhidas,  mas sem golpes baixos.   

Charge! Via Folha de São Paulo

 


Os melhores livros de 2020


Como fazemos todo final de ano, convidamos alguns escritores, críticos literários e pesquisadores que estiveram conosco para votar nos melhores livros de 2020. Para a votação, houve somente um critério: os livros deviam ter sido lançados de janeiro em diante, podendo ser de ficção ou não-ficção, edições nacionais, estrangeiras e reedições.

O livro mais votado do ano foi Batendo pasto, de Maria Lúcia Alvim, publicado pela Relicário Edições. 

Confira os resultados!

 

 

Adelaide Ivánova
[poeta, tradutora e fotógrafa, autora de O martelo]

> Comrade: An essay on political belonging (em tradução livre, “Camarada: Um ensaio sobre pertencimento político”), de Jodi Dean (Verso Books)
> Carlos, a face oculta de Marighella, de Edson Teixeira da Silva Júnior (Expressão Popular)
sorry.gif, de Felipe André Silva (Edições Macondo)
Brasil à parte, de Perry Anderson, tradução de Alexandre Barbosa de Souza, Bruno Costa, Fernando Pureza, Jayme da Costa Pinto e SatBhagat Rogério Bettoni (Boitempo Editorial)
Se quiser mudar o mundoUm guia político para quem se importa, de Sabrina Fernandes (Editora Planeta)

André Oviedo
[escritor]

Para o meu coração num domingo, de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien e Gabriel Borowski (Companhia das Letras)
O morse desse corpo, de Ricardo Domeneck (Editora 7Letras)
canções de atormentar, de Angélica Freitas (Companhia das Letras)
Investigações. Novalis, de Gonçalo M. Tavares (Edições Chão da Feira)
Escritos corsários, de Pier Paolo Pasolini, tradução de Maria Betânia Amoroso (Editora 34)


Cidinha da Silva

[escritora e editora (Kuanza Produções), autora de Um exu em Nova York]

Eu vou piorar, de Fernanda Bastos (Editora Figura de Linguagem)
Levante, de Henrique Marques Samyn (Editora Jandaíra)
Notas sobre a fome, de Helena Silvestre (Ciclo Contínuo Editorial)
oriki de amor selvagem: todos os poemas de amor preto (ou quase), de tatiana nascimento (padê editorial)
Por um feminismo afro-latino-americano, de Lélia Gonzalez, organização de Flávia Rios e Márcia Lima (Zahar)


Cristhiano Aguiar

[escritor e professor (Universidade Mackenzie), autor de Na outra margem, o Leviatã]

Grama, de Keum Suk Gendry-Kim, tradução de Jae Hyung Woo (Pipoca & Nanquim)
A bailarina da morte: A gripe espanhola no Brasil, de Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling (Companhia das Letras)
Quéreas & Calírroe, de Cáriton de Afrodísias, tradução de Adriane da Silva Duarte (Editora 34)
Todas as cartas, Clarice Lispector, organização de Larissa Vaz (Editora Rocco)
Filhos de sangue e outras histórias, de Octavia E. Butler, tradução de Heci Regina Candiani (Editora Morro Branco)


Edma de Góis

[pós-doutora em Estudos de Linguagens (UNEB) e apresentadora do podcast Margens da palavra]

O mez da grippe, de Valêncio Xavier (Editora Arte & Letra)
Comentário: Um dos livros mais emblemáticos do "Frankenstein de Curitiba", em edição bem acabada da Arte & Letra (o que não é mero detalhe para um livro em que o conteúdo visual é tão importante quanto o texto escrito). A reedição, depois de 22 anos fora de catálogo e no ano da pandemia de covid-19, dobra o interesse no livro em que Valêncio reafirma o melhor da sua produção como arranjador de textos (alheios e dos seus próprios) para contar sobre a gripe espanhola na cidade de Curitiba em 1918.

Banzo, de Davi Nunes (Organismo Editora)
Comentário: Marcado por referências a artistas negros como Aimé Césaire e Jean Michel Basquiat, e com posfácio do escritor Allan da Rosa, o livro de poemas do autor baiano trata da história dos negros em diáspora, entremeado por elementos pictóricos e dando a ver um projeto literário do escritor desde os contos do seu livro anterior, Zanga.

A razão africana: Breve história do pensamento africano contemporâneo, de Muryatan S. Barbosa (Editora Todavia)
Comentário:O livro faz as vezes de ensaio em que seu autor reúne nomes de intelectuais que colocam a ideia de África no centro do debate. Boa opção de leitura para quem quer uma introdução ao pensamento africano contemporâneo, seus temas e quem os mobiliza na cena recente.

Batendo pasto, de Maria Lúcia Alvim (Relicário Edições)
Comentário: Repito as palavras de Ricardo Domeneck na apresentação do livro: "qual explicação podemos dar para este Batendo pasto, escrito em 1982, seja o primeiro inédito de Maria Lúcia Alvim em quarenta anos? A imagem anunciada pelo título dá conta de um dos movimentos mais belos da autora, que faz vigorosa construção poética nesses poemas sobre temas que circundam a vida rural, mas não apenas esta.

Novelas completas, de Liev Tolstói, tradução de Rubens Figueiredo (Editora Todavia)
Comentário: A reunião de quatro novelas do lugar mais alto de produção desse gênero dá ao volume, por um lado, a possibilidade de um grande reencontro para os já iniciados na obra do autor de Guerra e Paz, e por outro também um excelente ponto de partida pra quem ainda é novato. As obsessões de Tolstói, em diferentes momentos de sua biografia, estão nesses textos: morte, desejo e felicidade.


Everardo Norões
[escritor, poeta e colunista do Pernambuco]

Nuestra parte de noche, de Mariana Enriquez (Anagrama)
M: O filho do século, de Antonio Scurati, tradução de Marcello Lino (Intrinseca)
Las malas, de Camilla Sosa Villada (Tusquets Editores)
Marrom e amarelo, de Paulo Scott (Alfaguara)
Abliterações, de Paulo Dutra (Malê Editora)  
 

Igor Gomes
[editor assistente do Pernambuco]

Batendo pasto, de Maria Lúcia Alvim (Relicário Edições)
Cidadã: Uma lírica americana, de Claudia Rankine, tradução de Stephanie Borges (Edições Jabuticaba)
Percurso livre médio, de Ben Lerner, tradução de Maria Cecília Brandi. (Edições Jabuticaba)
O planeta: Uma categoria humanista emergente, de Dipesh Chakrabarty, tradução de Gabriela Baptista (Zazie Edições)
Diante de Gaia: Oito conferências sobre a natureza do Antropoceno, de Bruno Latour, tradução de Maryalua Meyer (Ubu Editora)


Laura Erber

[poeta, professora visitante da Universidade de Copenhague (Dinamarca), artista visual e editora (Zazie Edições), autora de A retornada]

Batendo pasto, de Maria Lúcia Alvim (Relicário Edições)
Percurso livre médio, de Ben Lerner, tradução de Maria Cecília Brandi. (Edições Jabuticaba)
Sobre os primórdios da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, organização de Walnice Nogueira Galvão (EdUSP)
> O homem que aprendeu o Brasil: A vida de Paulo Rónai, de Ana Cecilia Impellizieri Martins (Editora Todavia)
Escritos corsários, de Pier Paolo Pasolini, tradução de Maria Betânia Amoroso (Editora 34)
O único verso, de Bento Prado Jr. (Editora Clandestina)


Leonardo Nascimento

[jornalista e doutorando em Antropologia pelo Museu Nacional/UFRJ]

A unicórnia preta, de Audre Lorde, tradução de Stephanie Borges (Relicário Edições)
Batendo pasto, de Maria Lúcia Alvim (Relicário Edições)
Boca do Amazonas: Sociedade e cultura em Dalcídio Jurandir, de Willi Bolle (Edições Sesc)
Cidadã: Uma lírica americana, de Claudia Rankine, tradução de Stephanie Borges (Edições Jabuticaba)
Escritos corsários, de Pier Paolo Pasolini, tradução de Maria Betânia Amoroso (Editora 34)
O infarto da alma, de Paz Errázuriz (imagens) e Diamela Eltit (texto), tradução de Livia Deorsola (IMS Editora)
Retorno a Reims, de Didier Eribon, tradução de Cecilia Schuback (Editora Âyiné)
Senhores do orvalho, de Jacques Roumain, tradução de Monica Stahel (Carambaia)
Trânsito, de Rachel Cusk, tradução de Fernanda Abreu (Editora Todavia)
Um apartamento em Urano: Crônicas da travessia, de Paul B. Preciado, tradução de Eliana Aguiar (Zahar)


Priscilla Campos
[crítica literária, editora e pesquisadora, doutoranda em Literartura Hispano-americana (USP)]

Poesia completa: Maya Angelou, de Maya Angelou, tradução de Lubi Prates (Astral Cultural)
Comentário: O acesso à obra de Maya Angelou foi um sopro de força ainda no início do isolamento social e deste ano tão difícil. Com ótima tradução de Lubi Prates, a poesia de Angelou ganha, enfim, registro definitivo para o português. Um de seus poemas me acompanha nos últimos meses, chama-se Despertar em Nova York e termina com estes versos – “e eu, alarmada, acordo como/ um rumor de guerra,/ me espreguiçando pelo amanhecer,/ indesejada e ignorada”. Encontrar um modo de despertar mesmo que tudo indique que não se deve olhar o futuro: assim Angelou nos ensina a seguir pelos dias.

Um outro Brooklyn, de Jacqueline Woodson, tradução de Stephanie Borges (Editora Todavia)
Comentário: Uma manhã foi tempo suficiente para ler as 115 páginas deste romance tão bonito e agudo. A leitura de Brooklyn é como sustentar a respiração por algumas horas e voltar a soltá-la no mesmo instante em que a memória se transforma em gesto e registro. Desde então, Augusta, Angela, Gigi e Sylvia surgem na minha cabeça como fragmentos de presença. Tudo o que dói, o que brilha, o que foi aniquilado e o que ficou estão ali, na voz de Augusta. É um romance sobre a dor profunda de construir a memória e tocar o passado com as mãos. Quatro adolescentes e a vivência do racismo, das relações familiares e afetivas, e a interação com a cidade e seus signos, são o que dão o dom desse outro Brooklyn.

> A mulher submersa, de Mar Becker (Editora Urutau) 
Comentário: A imagem de uma mulher que afunda representa o silêncio que se escuta no movimento das águas, do sentido, do estar presente. Assim operam os poemas de Mar Becker neste livro, colocando na linha de frente questões tão silenciosas e comezinhas que, ao longo dos versos, os estatutos do patriarcado perdem o a sua síntese estrutural para dar lugar ao que, de fato, ressoa: a ancestralidade presente no cotidiano do corpo-mulher. Também uma busca pela linhagem – que só se faz possível quando se encara a água e se olha pelo espelho inconstante de seu movimento – é motora do livro e, dessa maneira, encontra-se “o deus da terceira margem”, essa palavra que é oração e mergulha.

> Entre nós mesmasPoemas reunidos, de Audre Lorde, tradução de tatiana nascimento e Valéria Lima (Bazar do Tempo)
Comentário: Este ano, o boom da obra de Audre Lorde no Brasil, publicada por várias editoras em simultâneo – além da Bazar do Tempo, outros livros da autora saíram pela Ubu Editora e Relicário Edições – foi um acontecimento. Como afirma a escritora Cidinha da Silva no texto de apresentação do livro, Lorde tem uma “sabedoria de produzir boas e efetivas sínteses, ou seja, de ler o mundo pelos próprios olhos, a partir das próprias referências, e de devolvê-lo transformado, como faz Exu, o senhor dos caminhos”. Lorde é essa maquinaria do tempo e do espaço, transformando tudo o que se vê em algo passível de leitura e, por consequência, poderoso em sua chama de mudança.

> Quatro cantos, de Henrique Provinzano Amaral (Editora Patuá)
Comentário: Primeiro livro do poeta paulista, Quatro cantos apresenta-se menos como um quadrado, como indica seu título, e mais como um estado das coisas: estar em cada espaço para negar a sua estabilidade e, assim, encontrar uma outra sustentação para os seus cantos. Como no primeiro poema do livro, o homem que vê o cachorro e, depois, torna-se cachorro, a fusão das coisas e dos corpos, o animal que se encontra dentro porque se vê fora, e assim está firmado no espaço. Canto que também é voz e se escuta, ecoa, atinge timbres diversos, nos alcança como quem persegue, atento, o leitor mais distraído. Entre o coração da baleia azul pulsando dentro do ônibus e os galopes dos cavalos alados, Henrique Amaral espalha o vermelho – “tu desejas meu sangue/ e eu desejo o teu” – como um último alerta a nós que chegamos cambaleantes até este improvável dezembro/2020: estamos vivos porque tudo pulsa e tudo parte ao meio, deixando sempre o coração “preso na adaga da palavra amor”.


Nuno Figueirôa

[jornalista]

Um apartamento em Urano: Crônicas da travessia, de Paul B. Preciado, tradução de Eliana Aguiar (Zahar) 
Pele negra, máscaras brancas, de Frantz Fanon, tradução de Sebastião Nascimento (Ubu) 
Para o meu coração num domingo, de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien e Gabriel Borowski (Companhia das Letras)
Percurso livre médio, de Ben Lerner, tradução de Maria Cecília Brandi. (Edições Jabuticaba)
A cachorra, de Pilar Quintana, tradução de Livia Deorsola (Editora Intrínseca)
Estrela vermelha, de  Aleksandr Bogdánov, tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Paula Vaz de Almeida (Boitempo Editorial)
> Batendo pasto, de Maria Lúcia Alvim (Relicário Edições)

 
Ramon Ramos
[escritor e doutorando em Letras (PUC-Rio)]

Para o meu coração num domingo, de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien e Gabriel Borowski (Companhia das Letras)
> Batendo pasto, de Maria Lúcia Alvim (Relicário Edições)
Poesia completa: Maya Angelou, de Maya Angelou, tradução de Lubi Prates (Astral Cultural)
Todas as cartas, Clarice Lispector, organização de Larissa Vaz (Editora Rocco)
Segredos, de Domenico Starnone, tradução de Maurício Santana Dias (Editora Todavia)


Raquel Barreto
[historiadora e doutoranda em História (UFF)]

Lições de Resistência: Artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro, organização de Ligia Fonseca Ferreira (Edições Sesc São Paulo)
Terra Preta: Raça, racismo e política no Movimento dos Trabalhadores Rurais e Sem Terra, de Fred Aganju (Editora Filhos da África, São Paulo)
Água por todos os lados, de Leonardo Padura, tradução de Monica Stahel (Boitempo Editorial)
> Os 3 livros da coleção Cabeças da Periferia, organização de Marcus Faustini (Editora Cobogó):
    - Taisa Machado: O afrofunk e a ciência do rebolado
    - Jessé Andarilho: A escrita, a cultura e o território
    - Rene Silva: Ativismo digital e ação comunitária

Imagens de controle: Um conceito do pensamento de Patricia Hill Collins, de Winnie Bueno (Editora Zouk)
Filhos de sangue e outras histórias, de Octavia E. Butler, tradução de Heci Regina Candiani (Editora Morro Branco)
O menor amor do mundo, de Rafael Zacca (Editora 7Letras)


Schneider Carpeggiani

[editor do Pernambuco, crítico literário e curador]

Um apartamento em Urano: Crônicas da travessia, de Paul B. Preciado, tradução de Eliana Aguiar (Zahar)
A bailarina da morte: A gripe espanhola no Brasil, de Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling (Companhia das Letras)
Batendo pasto, de Maria Lúcia Alvim (Relicário Edições)
Um outro Brooklyn, de Jacqueline Woodson, tradução de Stephanie Borges (Editora Todavia)
A cachorra, de Pilar Quintana, tradução de Livia Deorsola (Editora Intrínseca)


Victor da Rosa

[professor (UFOP), co-organizador da antologia 99 poemas]

Casa do norte, de Rodrigo Lobo Damasceno (Corsário Satã)
Metamorfoses, de Emanuele Coccia, tradução de Madeleine Deschamps e Victoria Mouawad (Dantes Editora)
Diante de Gaia: Oito conferências sobre a natureza do Antropoceno, de Bruno Latour, tradução de Maryalua Meyer (Ubu Editora)
Escritor por escritor: Machado de Assis segundo seus pares, organização de Hélio de Seixas Guimarães e Ieda Lebensztayn (Editora Imprensa Oficial do Estado de São Paulo)
Um outro Brooklyn, de Jacqueline Woodson, tradução de Stephanie Borges (Editora Todavia)

(Publicado originalmente no site do Suplemento Pernambuco)

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Documentário "Meu povo conta" - Kapinawá - Parte 3

Tijolinho: Hoje, Siqueira, até para eleição de síndico entram questões ideológicas.



Normalmente, os governadores dos Estado exercem alguma ascendência sobre a bancada de deputados federais, daí se entender que os candidatos que concorrem à Presidência da Câmara Federal os procurem no sentido de explorar esse capital, que pode ser traduzido em votos. Neste sentido, o governador de Pernambuco, Paulo Câmara(PSB-PE) já teria recebido para as confabulacões de praxe e degustação de canapés o atual presidente daquela Casa, Rodrigo Maia(DEM-RJ - que deve ter discutido o conjunto de sua preferência para sucedê-lo - e o deputado Arthur Lira(PP-AL), que concorre àquele cargo com o apoio do Planalto. Cumprida essas formalidades, as lideranças locais do partido deixaram vazar para a imprensa que o PSB já havia batido o martelo em torno do nome do deputado Arthur Lira. Até o momemto, não houve nenhum desmentido do Palácio do Campo das Princesas em torno deste assunto, onde pode-se conclui que a informação procede. 

Pragmaticamente, como aliás tem sido o comportamento deste partido nos últimos anos - seu presidente nacional declarou que tal disputa não envolve questões ideológicas, mas cargos, nomeações para determinadas comissões e coisas assim. Eu não entendo como ele pode afirmar isso, sabendo que, a partir de 2021 estarão em disputa, naquela Casa, a votação de agendas das mais relevantes para o país, com inegáveis componentes ideológicos. Uma disputa de projetos de sociedade. A consolidação de uma agenda de ultradireita e de costumes ou uma resistência civilizatória de corte pós-capitalista, que envolve questões ambientais, proteção de nossas riquezas naturais, a laicidade do Estado brasileiro, uma convivência humanitária com minorias de raça, credo, gênero e opção sexual. 

Hoje, até numa eleição de síndico de prédio essas questões estão em jogo. Por exemplo, fala-se muito nas automações das portarias, as chamadas portarias remotas, que devem substituir os porteiros tradicionais, gerando milhares de desempregados. Observei uma coisa curiosa na última reunião de condomínio. Todos os condôminos ansiosos sobre a economia que isso representará em torno da diminuição dos valores da taxa de condomínio. Ninguém preocupado com a exclusão dos trabalhadores de seus empregos. O negócio é tão vantajoso para essas empresas que elas se oferecem para assumir os ônus trabalhistas pelo afastamento dos trabalhadores. Fico imaginando o nosso saudoso Dr. Miguel Arraes, do PSB de tempos idos, se contorcendo em sua tumba.

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Tijolinho: Evangélicos: o fiel da balança?



Na última eleição municipal do Recife, a questão do voto evangélico voltou a ser discutido, sobretudo em razão de a candidatura de Marília Arraes(PT) ter sido duramente atingida depois que foram espalhados algumas fake news questionando seu posicionamento acerca de alguns temas delicados, como o aborto, educação de gênero e a  leitura da Bíblia. Segundo dizem, panfletos apócrifos foram destribuídos em templos evangélicos tratando desses temas, o que, certamente, pode ter contribuído para a definição ou não do voto evangélico na candidata petista. Sem uma pesquisa séria, seguida de uma análise mais consistente, fica muito difícil dizer aqui qual os reais danos dessa campanha apócrifa sobre o resultado final das urnas no segundo turno. Ou seja, qual o quantitativo de eleitores evangélicos que teriam deixado de votar na candidata em razão dessas notícias falsas. Por outro lado, é sensato admitir que isso causou algum dano, num ambiente onde as questões de costumes podem ser determinantes para definir o voto.  

Fazia algum tempo que não lia nada produzido pelo ISER - Instituto de Estudos da Religião -  um instituto com sede no Rio de Janeiro, bastante conceituado sobre o estudo das religiões no país. Laico, formado por pesquisadores bem conceituados, o ISER reúne as condições necessárias para a uma produção científica sólida, consistente e de muito bom nível. Essa impressão ficou desde os tempos da universidade, quando as contingências dos estudos nos obrigaram a ler alguns textos dos seus pesquisadores, numa época em que os problemas se resumiam a um estudo junto aos evangélicos no sentido de saber como demover suas resistências em aceitar uma jovem liderança barbuda do ABC como candidato à Presidência da República. Para mim, um texto é bom quando provocativo, capaz de produzir mais incertezas do que convicções. Aquele texto que deixa você inquieto, ao apontar possibilidades capazes de por em dúvida suas certezas. 

Sou um cristão novo nesses estudos, mas, a cada dia, afloram mais inquietações em torno deste assunto, como, por exemplo, entender melhor essa perigosa aproximação de agendas entre os grupos neopentecostais e neo-facistas, proponentes de uma pauta conservadora de costumes e flertes autoritários. Contraditoriamente, em certo sentido, uma agenda anti-cristã, em razão da intolerância com minorias divergentes. Não chega a ser surpresa as conclusões da pesquisadora Ana Carolina Evangelista, sobre a formação desse rebanho, cuja origem está concentrada, sobretudo, nas periferias pobres, composto, em sua maioria, por negros e mulheres. Entra neste perfil, questões sociais, de raça e gênero, para dá um nó ainda maior nas nossas cabeças. A preocupação da pesquisadora é a utilização dessa agenda evangélica por politicos até sem vínculos religiosos, com o propósito de produzir uma narrativa discursiva da "ordem", criando o ambiente político necessário não apenas para conquistar esses votos, mas para intervir nas instituições, normalizando regras de costumes para a sociedade como um todo. Políticos conservadores não avangélicos estariam utilizando essa agenda para consolidar uma plataforma de costumes que extrapolam os círculos de oração. Aqui começamos a entender o porquê do flerte de agendas entre grupos religiosos neopentecostais e neo-fascistas. Observamos aqui que o golpe de Estado na Bolívia foi dado com a Bíblia na mão, com muita violência em relação aos adversários e às etnias indígenas. Muito preocupante. 


Documentário "Meu povo conta" - Kapinawá - Parte 1

A política pictórica de Godard

 

Em toda sua obra, da Nouvelle Vague aos filmes do século XXI, cineasta francês que faz 90 anos em dezembro utilizava a pintura como elemento essencial. Às vezes de forma irônica, noutras para afastar o cinema da vulgaridade capitalista

Por Dalila Camargo Martins, na Revista Cult

No incontornável texto “Jean-Luc Godard: cinema e pintura, ida e volta”, integrante do livro Cinema, vídeo, Godard (Cosac Naify), Philippe Dubois distingue dois momentos da relação ubíqua entre cinema e pintura na obra godardiana. No primeiro deles, concernente aos filmes produzidos na década de 1960, a pintura se mostra no cinema como uma prática de “citação” e “ex-citação” generalizada, pela qual reproduções frontais de quadros canônicos invadem a diegese, interagindo implícita ou explicitamente com as personagens, seus rostos, situações ou vínculos afetivos. Lembremos, por exemplo, em Acossado (1960), da mania de Patricia (Jean Seberg) de colar na parede de seu apartamento pôsteres de retratos pintados por Pierre-Auguste Renoir, Paul Klee e Pablo Picasso com os quais se identifica. Ou, então, em Tempo de guerra (1963), da cena hilária em que os soldados Michelangelo (Albert Juross) e Ulysses (Marino Mase) voltam para casa e presenteiam solenemente suas esposas, Venus (Geneviève Galéa) e Cleopatre (Catherine Ribeiro), com uma valise repleta de tesouros do mundo: monumentos, meios de transporte, lojas, obras de arte, indústrias, riquezas da terra, maravilhas da natureza, os cinco continentes, tudo sob a forma de cartões-postais cujo ganho parece valer exatamente como a posse das coisas em si — o valor de exposição tornado “objeto de culto, de reinvestimento simbólico de segundo grau”.

Nesse amálgama entre turismo e pilhagem, espetáculo e barbárie, já despontava a chave da reflexão godardiana sobre arte pop e cultura de massa, cada vez mais evidente ao longo dos anos 1960. Digamos que, no começo da carreira, Godard partiu de referências espirituosas a gêneros hollywoodianos, especialmente filmes B, noir e de gângster, mas também de musicais, frutos da paixão cinéfila contraída enquanto era redator exímio da revista Cahiers du cinéma, e desembocou no exame detalhado da sociedade de consumo, acentuando seu aspecto mortífero, em um paralelo sugestivo com o melhor de Andy Warhol. Em Week-end à francesa (1967), um casal burguês viaja pelo interior da França para reclamar uma herança e no caminho depara com um engarrafamento descomunal, filmado em travelling e livremente inspirado no conto “A autoestrada do Sul” (1964), de Julio Cortázar, no qual a violência escala desde acidentes de trânsito, estupro, assassinatos, até canibalismo, fenômenos testemunhados com indiferença atroz em meio a passatempos. Sem dúvida, por perpetuar a lógica industrial do trabalho alienado e do tempo livre, o cinema estava no cerne da crítica godardiana, sendo então abandonado na iminência de maio de 1968, quando Godard, na companhia de Jean-Pierre Gorin, fundou o Grupo Dziga Vertov, coletivo audiovisual militante de orientação maoísta que, em vez de proceder segundo tais modelos, filmava politicamente.

Acossado (1960)

Ao cinema, Godard retornaria de uma vez por todas na década de 1980, após um período de realização – com sua companheira, a fotógrafa, roteirista, montadora e também diretora Anne-Marie Miéville – dos programas de televisão Six fois deux/sur et sous la communication (1976) e France/tour/détour/deux/enfants (1977-78), além dos filmes-ensaios Número dois (1975), Como vai você? (1976) e Aqui e acolá (1976), nos quais se escrutam os grandes meios de comunicação mediante trucagens videográficas (câmera lenta, sobreimpressões, incrustações, grafismos, variação de janelas, simultaneidade de telas etc.) que consistem nos desdobramentos eletrônicos do trabalho de decomposição-recomposição de imagens empregado em A chinesa (1967), com suas colagens e estética de histórias em quadrinhos, e A gaia ciência (1969), com suas fotos desviadas e contralegendadas. Dubois enfatiza o protagonismo do vídeo nessa mudança de paradigma na obra godardiana, em que as imagens perdem o estatuto de objetos e se tornam estados (im)puros, fluxos entre olhar e pensamento, cujo ápice seria a minissérie televisiva História(s) do cinema (1988-98). Há, pois, uma atenção refinada à espectralidade da forma-mercadoria, sua estranha idiossincrasia. Godard parece nos alertar: para examinar a sociedade de consumo não basta sinalizar seus produtos, os resultados concretos de suas causas, sem tentar apanhar o processo que lhe é imanente, pelo qual tudo o que pesa se propaga no ar e, como a luz – matéria-prima do cinema –, é partícula e onda ao mesmo tempo.

Esses experimentos transformariam de forma substancial, nos anos 1980, a relação de Godard com a pintura, a qual passaria a ser um efeito do próprio filme, um tratamento figurativo do dispositivo cinematográfico, “não mais a pintura ex-citada mas a pintura sus-citada, evocada por baixo e de dentro”, na bela definição de Dubois. A chamada trilogia do sublime, composta dos filmes Paixão (1982), Carmen de Godard (1983) e Eu vos saúdo, Maria (1985), faz de motivos clássicos da pintura problemas cinematográficos, atualizando-os. Em Paixão, destacam-se os deslumbrantes tableaux vivants a partir de Rembrandt, Francisco de Goya, Jean-Auguste Dominique Ingres, Eugène Delacroix, El Greco e Jean-Antoine Watteau. Carmen, vaga adaptação escrita por Anne-Marie Miéville da novela homônima de Prosper Mérimée e da ópera de Georges Bizet, consiste em um estudo rítmico, ou melhor, coreográfico, em que se esboçam poses copiosas de corpos frequentemente nus, com nervos à flor da pele, em dados intervalos de tempo marcados pela música de Ludwig van Beethoven — e de Tom Waits! Quanto a Eu vos saúdo, Maria, trata-se do mito da criação, ostensivamente pintado ao longo da história da arte, o que implica a questão de como representar o irrepresentável recorrendo a arquétipos da natureza.

Assim, completa-se uma volta dialética. Sabe-se que a primeira polêmica provocada pela Nouvelle Vague se deu antes da instauração de um novo modo de produção cinematográfico, quando os “jovens turcos” – apelido dessa geração de redatores dos Cahiers e futuros cineastas – cunharam o conceito de política dos autores, segundo o qual certos diretores hollywoodianos, como Orson Welles e Alfred Hitchcock, foram capazes de deixar suas marcas nos filmes, engendrando estilos únicos mesmo sob o jugo da lógica industrial. Ora, não é difícil circunscrever a mudança de paradigma da obra godardiana a esse contexto, pois foi Godard quem radicalizou a política dos autores ao filmar, transformando o conceito de aplicação retroativa em ponto de partida estético. Em suas palavras: “o verdadeiro objetivo desse conceito não era demonstrar quem faz a direção, mas, principalmente, explicar o que faz a direção”. Tal método de modulação entre “ex-citação generalizada” e “sus-citação”, passando pela negação determinada do cinema, assevera todo o esforço de Godard em dirigir através das contradições estruturais do próprio meio. Inicialmente, em seus filmes, o trabalho pictórico serviu sobretudo para denunciar, em chave irônica e também trágica, o pacto do cinema com a cultura de massa, com a sociedade do espetáculo. O abandono da autoria com a fundação do Grupo Dziga Vertov – “quando lançamos a política dos autores, nos enganamos ao privilegiar a palavra ‘autor’, enquanto na verdade é a palavra ‘político’ que era preciso ressaltar” – funcionou como grau zero da imagem, propiciando a Godard expandir seus horizontes ao retomar o cinema e revisitar alguns temas inerentes à autonomia artística.

Nos três primeiros longas-metragens godardianos do século 21, Elogio ao amor (2001), Nossa música (2004) e Filme socialismo (2010), tal expansão paulatina manifesta-se mediante recursos pictóricos. Elogio ao amor se divide entre o presente e o passado de um filme a ser feito. A defasagem temporal é marcada pelo uso de 35mm p&b para o presente e de vídeo em cores, espécie de fauvismo digital, para o passado. São apenas dois anos entre o momento em que Edgar (Bruno Putzulu) presencia a assinatura do contrato que autoriza a adaptação da história de um casal de idosos atuante na resistência francesa pela produtora de Steven Spielberg e seus entraves em realizar uma obra sobre o amor e que consiga narrar a História. Mas a trama só se esclarece no fim, quando o passado ilumina o presente; seu fio condutor é uma mulher argelina (Cécile Camp), advogada consultora do caso, pela qual Edgar se apaixona. Constitui-se, portanto, um elo entre poeta e musa, de matriz romântica ainda que distanciada – a colorização dos planos do mar exprimindo o lirismo de um indivíduo que enfrenta a frivolidade da indústria cultural.

Em Nossa música, organizado como a Divina comédia de Dante Alighieri, porém, o eu já é um outro – nos versos citados de Arthur Rimbaud – com o protagonismo duplicado de Olga Brodsky (Nade Dieu) e Judith Lerner (Sarah Adler), alegorizando a aporia entre ativismo e mídia em prol da paz no Oriente Médio. É como se a crise existencial ambientada no métier cinematográfico de Elogio ao amor se tornasse, três anos depois, uma expiação coletiva pelos conflitos da humanidade, e a busca fracassada por “um adulto” se estendesse à profecia do rosto como responsabilidade, baseada no filósofo Emmanuel Lévinas, uma preocupação em restabelecer pela linguagem uma “ética como o a-Deus ou a relação ao Outro, na santidade do Rosto de Outrem, ou na santidade da minha obrigação para com ele”.

Já Filme socialismo consiste em uma indagação a respeito da origem e dos descaminhos da civilização ocidental, a partir de três pontos de vista: a história do continente europeu, por meio da interação entre anônimos e celebridades a bordo do cruzeiro Costa Concordia; as inquietudes de duas crianças francesas sobre os lemas liberdade, igualdade e fraternidade; as lendas de seis cidades ao longo do Mediterrâneo. Na segunda parte, denominada Quo vadis Europa, o jovem casal de irmãos sai candidato à eleição para o Conselho de Estado francês, “fato sem precedentes”, e se elege com 93% de aprovação. Apesar da vitória democrática, sua postura é irreconciliável. Florine “Flo” (Marine Battaggia) evita conversar com quem conjuga os verbos ser/estar (être) e ter (avoir), pois, com eles, a falta de realidade se tornaria flagrante; prefere falar, por exemplo, “Barcelona nos receberá em breve”, em vez de “em breve estaremos em Barcelona”. Lucien “Lulu” (Gulliver Hecq) é capaz de “acolher uma paisagem de outrora”; reproduz um Renoir adicionando nuances inatingíveis ao pintor, o que se estende a toda imagem vista na tela, em uma espécie de fissão cromática que faz vibrar o espaço. Logo, ambas as atitudes se pautam por uma heteronomia sem sujeição, abrindo-se empaticamente ao entorno. Tais recursos pictóricos integram uma complexa série de procedimentos audiovisuais que articulam um vigoroso raciocínio especulativo, o qual, nesses três filmes, explode a noção de autonomia – da autonomia artística à autonomia do sujeito – à procura de uma verdadeira emancipação.

Elogio ao Amor (1999)

Nota-se, por conseguinte, na trajetória de Godard, um movimento espiralado infinito e ascendente, em que o regresso às esferas (cinema/sociedade de consumo/militância/vídeo/arte/estética/ética/política) ocorre por meio de alargamento, aprofundamento e iluminação.

(Publicado originalmente no site Outras Palavras)

Tijolinho: Em Pernambuco, 2022 já começou.


Ainda no calor da derrota para João Campos(PSB) na disputa pela Prefeitua da Cidade do Recife, a militância da candidata petista, Marília Arraes, ainda mobilizada, lançou o seu nome ao Governo do Estado, nas eleições de 2022. Militância é militância e dirigentes partidários são dirigentes partidários. Em razão da musculatura política obtida pela candidata, epesar da derrota, essa tese começou a ganhar fôlego na legenda. Esse grupo aposta num afastamento difinitivo do PT da base aliada do governador Paulo Câmara(PSB). Assim que foi anunciado o resultado das eleições, o futuro prefeito João Campos(PSB) anunciou que não entregaria nenhum cargo político ao PT na sua gestão. Os ânimos estavam bastante acirrados, e, como ensinava ex-governador Paulo Guerra, em política não existem as palavras "nunca' nem "jamais". Embora improvável, uma reconciliação ainda seria possível, apesar do desgaste produzido pela campanha. A conversa entre o senador Humberto Costa(PT) e o governaror Paulo Câmara(PSB), no sentido de aparar essas arestas e definir a saida ou não do partido do governo, ainda não teria ocorrido. 

A costura de um nome como candidato da oposição no Estado teria que contar, como disse antes, com o sinal verde de núcleos políticos familiares que já se articulam no sentido desse enfrentamento, como é o caso dos Coelho, de Petrolina, dos Ferreira(Jaboatão dos Guararapes) ou dos Lyra, de Caruaru. Esse triângulo das bermudas deve ser decisivo na batida deste martelo. Não se descarta aqui, dependendo do nome ungido, do concurso de outros partidos do centro para a direita, quem sabe até da ultra-direita. Apesar das tecituras políticas da última eleição municipal - que envolveu o apoio de Progressistas e do Podemos à candidata petista, é pouco provável que um grupo com interesses politicos tão diversos possam endossar o nome de uma candidata do PT. Impossível não é, mas é pouco provável. 

Pelo lado da situação, como observei no dia de ontem, o nome mais cotado é o do ex-prefeito Geraldo Júlio, por uma condição "natural", embora essa condição "natural" seja muito questionada. O mais interessante, entretanto, é entender como essas articulações políticas locais estão sendo construídas já de olho nas eleições presidenciais de 2022. Aqui na província, 2022 já começou. No segundo turno das eleições, o Recife recebeu a visita do presidencial Ciro Gomes(PDT),que veio emprestar o seu apoio ao candidato João Campos(PSB). Fala-se bastante numa aliança entre as duas legendas visando as próximas eleições presidenciais. Nas eleições dos anos anteriores, o PSB sempre emprestou apoio ao PT no plano nacional. Essa possibilidade torna-se cada vez mais improvável. Não apenas pelas rusgas produzidas aqui na provínca, mas, sobretudo, em razão dos rumos políticos que o partido está assumindo, se afastando cada vez mais do espectro político de suas origens. 

 

Editorial: O STF disse não à manobra inconstitucional. Ponto para o STF.


Mesmo com um placar apertado, o Supremo Tribunal Federal disse não à manobra inconstitucional que previa a reeleião dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. A letra da Carta Constitucional é bastante clara sobre o assunto, mas há sempre aqueles atores políticos que tentam burlá-la, consoante interesses políticos de natureza nada republicanos. Louva-se aqui a decisão do STF, esperando que tal decisão construa a jurisprudência necessária para inibir tentativas do gênero pelo país afora, uma vez que tais impulsos de mosca azul se replicam em toda a federação, numa demonstração de pouco apreço de segmentos da classe política pela democracia no país. Manobras assim apenas ganham força quando há um ambiente político favorável nas Casas Legislativas, cujos membros acabam beneficiados, de alguma forma, com a condução da liderança por mais um mandato, mesmo contradizendo os preceitos constitucionais. 

Agora, o jogo deverá ser reiniciado tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal, envolvendo uma disputa acirrada pelo comando daquelas Casas, o que implica numa luta sadia pelo voto, convencendo a bancada de senadores e deputados federais a votarem consoante as suas expectativas sobre a melhor forma de condução dos trabalhos no Poder Legislativo. As rusgas entre o presidente da Câmara dos Deputados e o Planalto são indisfarçáveis, tendo alto e baixos durante toda a gestão do deputado federal Rodrigo Maia(DEM-RJ), não de todo superadas, a despeito das tentativas de reaproximação, regadas a canapés e amabilidades, por vezes trocadas. Assim, o Planalto anima-se em apoiar um nome de sua confiança, de sua base de apoio, que não torne a convivência tão indisgesta durante o próximo mandato. Esse  nome, contingencialmente, deve sair do chamado Centrão. 

Estão se movimentando no sentido de ocupar a Presidência daquela Casa o Deputado Federal alagoano, João Lyra(PP-AL), que já procurou, inclusive, o governador Paulo Câmara(PSB-PE), no sentido de obter o apoio da bancada pernambucana ao seu projeto. Quem também se movimenta neste sentido é o Deputado Federal Fernando Coelho Filho(DEM-PE), com o aval do pai, o senador Fernando Bezerra Coelho(MDB-PE), líder do governo, que também está de olho na presidência do Senado Federal. Ambos os nomes, afinados com o Palácio do Planalto. E, por falar em afinidades, Rodrigo Maia já insinou que o deputado João Lyra é um candidato que conta com o apoio do Planalto e, portanto, concorre contra ele. Há, por outro lado, uma penca de candidatos entre os seus apoiadores. Como já afrmei por aqui noutra ocasião, Maia é um político muito hábil,com chances de fazer seu sucessor. Concorrem pela situação, digamos assim, Aguinaldo Ribeiro(PP-PB), Baleia Rossi(MDB-SP), Elmar Nascimento(DEM-BA), Luciano Bivar(PSL-PE) e Marcos Pereira(Republicanos-SP). 

Seja qual for o resultado, a alternância de poder, um dos princípios basilares da demcoracia, fica assegurada. As instituições da democracia no Brasil, que foram tão assediadas nos últimos anos,  precisam passar por um processo restaurativo. Muitos equívocos foram cometidos em razão de uma insegurança juridica instaurada em nome de um modelo de racionalidade econômica ultraliberal, que não tem nenhum pudor em mandar às favas os valores democráticos pelas razões do capital. Uma consequência direta dessa lógica insana é a formação de Executivos fortes, na mesma proporção ao enfraquecimento dos poderes Legislativo e Judiciário. Manter o equilíbrio desse pêndulo é fundamentalmente importante num regime democrático. A decisão do STF preserva sua condição de guardião da Cosntituição e ,ainda, obriga o Poder Legislativo a conviver com o exercicio da democracia.  É bom que assim o seja. Apenas aqueles que tem vocação autoritária não gostam desse exercicio. Ponto para o STF. 


Charge! Via Folha de São Paulo