pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Vladimir Safatle: Não há heterossexuais

 

Não há heterossexuais
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"Sem título", Joy Hester, 1949, Australia (Foto: Reprodução/Wikiart)

 

Um problema relevante em certos debates sobre sexo e identidade que circulam atualmente entre nós é produzido quando se parte do pressuposto de que existam heterossexuais. Segundo essa ideia, heterossexual seria aquela pessoa cujas escolhas de objetos recaem sobre algo que seria o “sexo oposto”. A princípio, essa seria a posição hegemônica em nossas sociedades. Ou seja, viveríamos em uma sociedade na qual a maioria das pessoas teriam, como escolha de objeto, o “sexo oposto”. De onde se seguiria algo como certo binarismo próprio a vida dos pretensos heterossexuais: presos em uma dinâmica do desejo que só reconheceria homens e mulheres, sendo que um polo seria submetido a identificações e outro a investimentos libidinais.

Mas há de se perguntar se toda essa gramática de “binarismos” e “heterossexuais” realmente descreve alguma vivência concreta do sexual. Talvez seria o caso de começar por se perguntar se heterossexuais realmente existem.

Pode parecer que uma questão dessa natureza seria ociosa, algo como uma provocação especulativa equivalente a se perguntar se existe, de fato, montanhas e números primos. No entanto, seria importante se perguntar sobre que tipo de existência é essa que se procura descrever quando se fala de “heterossexuais”. Que tipo de objetos tais termos cobrem? Onde eles de fato estão, em qual tipo de categoria?

Esclarecer esse ponto seria importante para sabermos quem são afinal esses “heterossexuais”, esses apóstolos do binarismo de que tanto se fala. Pois o que aconteceria se descobríssemos que não há ninguém sob esses termos, que não há sujeito algum que possa ser descrito dessa forma, que “heterossexual” é, vejam só vocês, uma categoria absolutamente vazia? Não seria, afinal, uma atitude mais subversiva do que imaginar que podemos encontrar “heterossexuais” andando nas ruas, trabalhando conosco ou mesmo vivendo em nossa própria casa?

Pois é possível que devamos fazer uma distinção importante e nem sempre levada em conta nos debates atuais. É possível não existir heterossexuais, o que não significa que inexista heteronormatividade. Quer dizer, não há práticas concretas que possam ser descritas como “heterossexuais”, embora não haveria dificuldades maiores em identificar discursos que procuram disciplinar comportamentos e significar relações a partir da crença na existência de heterossexuais. Tais discursos criam classificações e estabelecem uma gramática que inviabiliza, para os próprios sujeitos, o sentido das práticas das quais eles são portadores.

Assumir isto significaria que nosso problema não é um problema de “tolerância”. Não vivemos em um mundo que deveria saber lidar de forma mais tolerante com a multiplicidade de formas de relacionalidade que não podem ser descritas como “heterossexuais”. Nosso problema talvez seja muito mais estrutural. Vivemos em um mundo que tem uma gramática, com suas classificações e suas emendas posteriores, que simplesmente nada diz sobre a experiência concreta no campo do sexual. Uma gramática que não é uma “condição de possibilidade” para a orientação e a experiência do sexual, mas que é uma má “condição de impossibilidade”. Nesse sentido, nosso problema não é de “tolerância”. Nosso problema é de destituição. Há toda uma gramática inadequada que precisa ser destituída, pois não sabemos como falar do sexual.

Nesse sentido, o primeiro equívoco consiste em acreditar que “relações sexuais” é algo que ocorre entre “pessoas”, sejam elas duas ou mais. Pois sendo uma relação sexual aquilo que ocorreria entre “pessoas”, o próximo passo poderia ser então se perguntar: qual o tipo de gênero tal “pessoa” tem? Mas e se tais relações não se dessem no nível das “pessoas”, se essa descrição fosse, na verdade, um erro categorial?

Uma das ideais mais fortes da psicanálise a esse respeito, potencializada por Jacques Lacan, nos lembra que relações sexuais não se dão entre representações globais de pessoas, mas entre objetos que circulam entre corpos. Objetos que carregam traços de posições do desejo que desconhecem algo que poderia ser chamado de “determinações  de gênero”. Mas vivemos em uma metafísica tão empobrecedora que descrever relações sexuais como algo que se dá entre objetos parece alguma forma de degradação das “pessoas” envolvidas, de instrumentalização do outro, de “fetichismo” e coisas do gênero. Como se só houvesse força de ação e decisão em “pessoas”, não em “objetos”. Toda uma concepção jurídico-metafísica de atividade acaba assim por colonizar até mesmo a forma de compreendermos afecções. Há também um fetichismo da pessoa do qual deveríamos saber nos livrar.

 

 

Assim, dizer que relações sexuais
se dão entre objetos significa,
concretamente, que ninguém
deseja “mulheres” ou “homens”,
mas deseja objetos que circulam
ou se fixam entre os corpos,
em corpos.

 

 

Objetos esses que não são projeções de fantasmas individuais. O corpo do Outro nunca é uma tela de projeção. Ele é um espaço de encontro e nunca se erra um encontro efetivo, sendo a marca de sua efetividade a força bruta de duração. Se um encontro ocorre é porque há objetos que circulam, e a ideia de circulação é importante aqui. Eles tem a capacidade de passar de um lado para o outro porque eles fazem reverberar as histórias dos desejos dos sujeitos, a história de seus desejos desejados. Uma hora eles se encontram de um lado, outra hora eles se encontram de outro. E tal circulação é a expressão de que tais objetos não se fixam em  “gêneros específicos”. Por isto, eles podem levar um “homem” ou uma “mulher” a pontos de indistinção, eles podem inverter posições, eles podem permitir composições heteróclitas as mais variadas.

Quando um juiz da corte de apelação de Dresden, no século 19, cujo nome era Daniel Paul Schreber, tem um surto paranoico depois de imaginar que seria bom ser uma mulher “no momento do coito”, ele demonstrou que apenas um paranoico sentiria tal posição como exterior a si. Só um paranoico entenderia isso como algo tão invasivo que lhe levaria a construir um delírio que integraria tal corporeidade, tais objetos associados por ele ao gozo feminino, apenas à condição de uma modificação alucinatória de seu corpo tendo em vista a sua própria transformação em “a mulher de deus”. Fora da posição paranoica, estamos a todo momento fazendo tais passagens em nosso inconsciente (que é onde os encontros afetivos realmente se dão), tanto em um sentido quanto em outro.

Dito isto, é fato que a discursividade heteronormativa pode ser vivenciada como processo de reações fóbicas contra tais movimentos, contra tal circulação de objetos. Ela pode assim consolidar disposições produtora das piores violências e negações, pois violências nas quais se mistura destruição de si e incorporação, no outro, do que se quer destruir. Mas tais discursividades descrevem apenas uma tentativa desesperada e brutalizada de lidar com impasses típicos dos que compreendem e vivenciam o desejo no nível de “pessoas” e “indivíduos”.  Nesse sentido, é bem provável que a melhor forma de desativar tais discursos seja mostrando, cada vez mais, que eles não descrevem sujeito algum, que eles descrevem uma forma de disciplina que cresce exatamente no momento em que as sociedades começam a classificar sujeitos a partir das pretensas escolhas sexuais de pessoas que eles seriam.

“Mas, como assim? A heteronormatividade é um discurso sobre nada?”. Bem, esse não será o primeiro dos discursos sem objeto que conhecemos. O que pode nos levar a imaginar um momento histórico de emancipação no qual será absolutamente indiferente se sujeitos são portadores de estratégias distintas de circulação de objetos, absolutamente indiferente a especificidade da série dos corpos que sujeitos singulares privilegiam. Não há porque classificar séries diferentes em conjuntos distintos. A partir dessa indiferenciação talvez encontremos enfim uma forma melhor e mais bela de falar de sexo.

Vladimir Safatle é professor titular do departamento de filosofia e do instituto de psicologia da USP

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Duke via O Tempo

 


domingo, 17 de janeiro de 2021

Publisher: I repeat Dráuzio's words: I can't wait to be vaccinated



( Foto do médico Miguel Nicolelis)


The country faces its most critical political moment, with unpredictable developments. The political tourniquet is being increasingly tightened due to the worsening of the public health crisis that the country is going through, with the possibility that facts such as those that occurred in Manaus may be repeated in other places, as predicted by scientists, who always said they were unforeseen. the relaxation of preventive measures, including suggesting the permanence of the lockdown - which should not be abandoned - as a measure to prevent the proliferation of the virus, creating hordes of patients in need of treatment, with hospital networks strangled without being able to serve them. Before, it was the problem of the absence of ICU beds, a problem now worsened by the absence of oxygen. In Manaus, in the face of chaos, the infected people's own homes are turning into makeshift hospitals.

Until recently, heard by the scientist Miguel Nicolelis, who advises the Northeast Consortium, immediately recommended a national lockdown. As there is a clash between public health and the economy, such recommendations are generally not taken very seriously, bringing known consequences, such as the exponential increase in cases of contagion and deaths, this time with one more aggravating factor: the various mutations of the virus , in some cases more lethal and with greater capacity for dissemination. Added to this, the contingent of irresponsible people spreading lies on social media, further aggravating the already chaotic situation. Thankfully, the administrators of these networks are taking punitive measures to combat the spread of these fake news, macabre technology used during the last presidential elections, as a political weapon to destroy opponents. 

In a scenario that is already dangerously critical, we still have to monitor the political use of this public health drama experienced by the country - such as the arm wrestling in relation to the distribution of vaccines - or the opportunistic pronouncements of the "starchy", with an eye on the elections of 2022. I have already stated here, and I repeat again, that citizen would be able to step on his mother's neck to achieve his goals. He is an absolutely unreliable political actor. He can criticize the Devil and I do not inspire the least credibility or confidence, because it is known that his real intentions are even worse than those of the Devil. It is depressing to know that there are leftist and progressive sectors flirting with this guy, in political arrangements for the 2022 presidential elections. We are well aware of the complicated political situation we face, but honestly, I do not know if it is worth so much sacrifice to reach the conclusion that we switched boats, but the storm continues to produce its tsunames. Márcio França unmasked him in a debate. He did not win those elections, but our great admiration for the service rendered to res publica. 

I anticipate that we may have problems in relation to the request of the Ministry of Health, which determined that the six million doses of the CoronaVac vaccine, produced by the Butantan Institute, should be sent to Brasília, with the aim of centralizing distribution throughout the country. Butantan, on this matter, has already anticipated that it considers it inappropriate to send to Brasilia the doses that would be applied in the State of São Paulo. I don't know if the Ministry of Health has a letter up its sleeve, because, like Dráuzio Varela, I can't wait to get the vaccine, whatever it may be. In any case, I am concerned with the "D" day and the "H" time defined by Minister Eduardo Pazzuelo, informing that it would be on Wednesday. There are many logistical contingencies and political embarrassments at play. But we hope that political issues are overcome and deadlines are met.


Editorial: Repito as palavras do Dráuzio: Não vejo a hora de ser vacinado.



O país enfrenta seu momento político mais crítico, com desdobramentos imprevisíveis. O torniquete político está sendo cada vez apertado em razão do agravamento da crise de saúde pública que o país atravessa, com a possibilidade de que fatos como aqueles ocorridos em Manaus possa se repetir em outras praças, conforme previsto por cientistas, que sempre afirmaram ser imprevidente o relaxamento de medidas preventivas, inclusive sugerindo a permanência do  lockdown - que não deveria ser abandonado - como medida para evitar a proliferação do vírus, criando hordas de doentes precisando de tratamento, com as redes hospitalares estranguladas sem poder atendê-os. Antes era o problema da ausência de leitos de UTIs, problema agora agravado pela ausência de oxigênio. Em Manaus, diante do caos, as próprias residências dos infectados estão se transformando em hospitais improvisados. 

Até recentemente, escutado sobre o assunto, o cientistia Miguel Nicolelis, que assessora o Consórcio Nordeste, recomendou, de imediato, um lockdown nacional. Como há uma queda de braço entre saúde pública e economia, geralmente tais recomendações não são levadas muito a sério, trazendo as consequências conhecidas, como o aumento exponencial de casos de contágio e mortes, desta vez com mais um agravante: as diversas mutações do vírus, em alguns casos mais letais e com maior capacidade de disseminação. Soma-se a isso, o contingente de irresponsáveis espalhando mentiras pelas redes sociais, agravando ainda mais a situação já caótica. Ainda bem que os administradores dessas redes estão adotando medidas punitivas, de combate à disseminação dessas fake news, tecnologia macabra usada durante as últimas eleições presidenciais, como arma política para destruir os adversários. 

Num cenário que já é perigosamente crítico, ainda temos que acompanhar o uso político desse drama de saúde pública vivido pelo país - como a queda de braço em relação à distribuição das vacinas - ou os pronunciamentos oportunistas do "engomadinho", de olho nas eleições de 2022. Já afirmei por aqui, e volto a repetir, aquele cidadão seria capaz de pisar no pescoço da mãe para atingir seus objetivos. Trata-se de um ator político absolutamente não confiável. Ele pode criticar o Diabo e a mim não inspira a menor credibilidade ou confiança, pois sabe-se de suas reais intenções são ainda piores do que as do Diabo. É deprimente saber que há setores de esquerda e progressitas flertando com este sujeito, em arranjos políticos para as eleições presidenciais de 2022. Conhecemos bem a conjuntura política complicada que enfrentamos, mas, sinceramente, não sei se vale a pena tanto sacrifício, para chegarmos à conclusão de que, trocamos de barco, mas a tempestade continua produzindo seus tsunames. Márcio França o desmascarou num debate. Não ganhou aquelas eleições, mas a nossa grande admiração pelo seriviço prestado a res publica.   

Antecipo que poderemos  ter problemas em relação à solicitação do Ministério da Saúde, que determinou que as seis milhões de doses da vacina CoronaVac, produzidas pelo Instituto Butantan, sejam destinadas à Brasília, com o objetivo de centralizar a distribuição para todo o país. O Butantan, sobre este assunto, já antecipou que considera inadequado enviar à Brasília as doses que seriam aplicadas no Estado de São Paulo. Não sei se o Ministério da Saúde tem alguma carta na manga, pois, assim como o médico Dráuzio Varela, não vejo a hora de tomar a vacina, seja ela qual for. Em todo caso, estou preocupado com o dia "D" e a hora "H" definido pelo Ministro Eduardo Pazzuelo, informando que seria na Quarta-Feira. Há muitas contingências logísticas e embaraços políticos em jogo. Mas torcemos que as questiúnculas políticas sejam superadas e os prazos cumpridos.  

Tijolinho: O lockdown em Pernambuco já deveria ter sido decretado.


A cidade de Ipojuca, no litoral sul do Estado, anuncia uma série de medidas restritivas no tocante ao acesso às suas praias, certamente, a partir de recomendações do Governo do Estado, que, até recentemente, esteve reunido com os prefeitos das regiões litorâneas, com o objetivo de ajustar a pauta de ações preventivas contra o coronavírus. Imagino que deve ser um dilema muito grande para os gestores adotarem tais medidas, sabendo dos eventuais prejuízos do comércio, não apenas no que concerne às vendas e arrecadação de impostos, mas igualmente em relação à perda de postos de trabalho. Como disse no editorial, o país enfrenta seu momento mais delicado, uma crise sem precedentes, que atinge a não apenas a saúde pública, mas o social, a economia e as instituições da democracia, hoje sensivelmente fragilizadas, em meio a esse pandemônio, tornando a crise política ainda mais grave do que a sanitária. Há segmentos sociais que, a rigor, sequer podem se submenter às condições restritivas impostas e de cuidados pessoais, em razão da luta cotidiana pela sobrevivência. O medo do desemprego e da fome torna-se, nesses casos, maior do que o medo de contrair o vírus. Por outro lado, essas medidas restritivas são absolutamente necessárias diante da recidiva do coronavírus, atingindo proporções até mais preocupantes do que a primeira onda, uma vez que já se verificam a disseminação de suas variantes, ainda mais contagiantes e letais, como já ocorre em Manaus. 

A rigor, a rigor, se o Governo do Estado seguisse as orientações do cientista Miguel Nicolelis, que assessora o Consórcio Nordeste no tocante a este assunto, determinava um lockdown imediato para a região metropolitana do Recife. Aqui trava-se uma batalha entre economia e saúde pública, como ocorre em outras praças do país, nem sempre com a priorização desta última. Em relação à frequência às praias, o comportamento da população durante este último final de semana será determinante na definição de medidas mais ou menos restritivas. E a gente sabe que, de forma consciente, a população não adotará um comportamento mais condizente para evitar o agravamento do problema. O pique dessa segunda onda, segundo os especialistas, ainda é reflexo dos festejos de final de ano. Há um processo de saturação psicológica da população, em razão dos longos meses de confinamento. Observa-se, assim, um comportamento suicida, de banalização da morte, por vezes reforçado por publicações irresponsáveis, através das redes sociais. 

Cientificamente, a rigor, nunca houve um momento oportuno para o relaxamento desses cuidados, como as medidas de restrições de contato social, evitando as aglomerações. Tampouco agora, mesmo com a previsão de vacinação em massa, seria possível abdicar daqueles cuidados essenciais, como o uso de álcool em gel, da máscara ou de lavar as mãos frequentemente com o velho sabão amarelo. A volta se deu, sobretudo, em razão da pressão exercida pelo capital. Há alguns grupos sociais que, por razões alheias à sua vontade, infelizmente, como disse antes, não podem obdecer a essas medidas, salvo se contassem com o apoio fundamental do aparelho de Estado. E, aqui, criou-se uma equação de difícil equacionamento: como conciliar uma economia parada, sem arredação de impostos, com a manutenção desses benefícios? O coronavírus nos impôs momentos difíceis, mas, se você não se encontra nesses grupos, que, infelizmente são expostos aos vírus por não contarem com a opção de ficar em casa, cuide-se! 

Charge! Duke via O Tempo

 


sábado, 16 de janeiro de 2021

Editorial: A Revolta da Vacina II


Esperamos, sinceramente, que os brasileiros e brasileiras que ainda preservarem o equilíbrio mental, depois desse pandemônio que o país atravessa, possam ter o bom-senso necessário para refletir sobre as lições adquiridas durante esta tormenta. Entender que é preciso uma convivência civilizada com quem pensa diferente; desenvolver a consciência política necessária para não embarcar em novas canoas furadas; compreender a importância das instituições da democracia para administrar e dirimir conflitos; civilizar-se, desenvolvendo a sensibilidade para o outro, seja ele pobre, negro, mulher, homossexual. Convém fazer tais observações porque há alguns casos "perdidos", ou seja, hordas de insanos que seguem orientações torpes, desprovidas de quaisquer racionalidade; que negam fatos concretos; guiadas pelo fanatismo do ódio; intolerantes; ameaçando suas vidas e a dos outros. Infelizmente, chegamos a este estágio político. Certamente, este é o momento mais difícil que o país atravessa. Uma tempestade perfeita, como diria os economistas, para descrever uma situação de crise generalizada. No nosso caso, atinge a saúde pública, o tecido social e econômico, além da democracia e as instituições que lhes dão suporte. 

Na nossa fase de adolescência usava-se muito uma expressão emblemática para descrever esta situação: Sinuca de bico, ou seja, uma situação sem saída, pois a bola que se joga está encostada à caçapa, não permitindo nenhuma manobra do jogador, sob um risco altíssimo de cair no buraco. Uma das primeiras lições seria a de não permitir que  chegássemos a tal estágio, abrindo um precedente para que as instituições fossem de tal forma tão desacreditadas, assediadas e fregilizadas, tornando-se incapazes de esboçar uma reação num momento de impasse como este que estamos vivendo. Depois daquelas cenas apavorantes do caos instaurado em Manaus, no dia de ontem, tivemos panelaços pelo país e até pequenas mobilizações de rua, como a ocorrida em Belo Horizonte, todas com o propósito de exigir medidas de enfrentamento ao caos instaurado em Manaus, assim como medidas que possam otimizar o início da vacinação em massa da população. Uma nova Revolta da Vacina - esta orientadas por outras motivações, embora os insanos mencionados acima, já tenham tomado a decisão de que não pretendem se vacinar, como disse ali, pondo em risco não apenas a vida deles, mas as nossas também.  

Na realidade esse caos é relativamente antigo. Ele inicou-se quando os yankees ficaram de olho na riqueza do nosso Pré-sal, que tornou-se a maldição do Governo Dilma Rousseff(PT), que pretendia que os recursos produzidos com a sua exploração fossem aplicados em educação e saúde. Logo, já mancumunados com os interesses estratégicos e geopolíticos dos yankees, surgiram proeminentes figuras tucanas do bico fino sugerindo que a exploração aquelas riquezas fossem abertas  ao capital internacional, através de empresas petrolíferas estrangeiras. As cenas seguintes desse enredo macabro já é História, bastante conhecida dos brasileiros, tecitura desenvolvida em ações muito bem urdidas e coordenadas - hoje sabe-se - com a prestimosa assessoria dos interessados. Salvaguardados seus interesses econômicos e geopolíticos a qualquer preço, o que talvez eles não contassem é com este desastre institucional e político em que mergulharam o país, situação análoga a que eles também estão enfrentando, com um Capitólio abarrotado de homens da Guarda Nacional para assegurar uma simples transição pacífica de alternância de poder. 

Mas, como estamos vivendo um momento desastroso de  radicalidade da racionalidade ultraliberal - onde o capital não apenas dá as cartas, mas igualmente impede que o trabalho também possa fazer os seus jogos - Direitos individuais e coletivos, experiências democráticas meio-ambiente, subjetividades huminitárias estão todos comprometidos. Outro impasse gigantesco diz respeito à chamada guerra das vacinas, ora travada entre nações, ora travada entre Governo Federal e entes federados. O Governo já assinalou, conforme comentamos por aqui, que teremos vacinas para todos os brasileiros, inclusive, se for caso, com a adoção de duas doses. O problema que se apresenta são os prazos estabelecidos e as negociações em curso. Pelos cálculos oficiais, a vacinação deve começar na Quarta-Feira, sendo as doses destribuídas para os Estados ainda na Segunda-Feira. O problema é que as negociações com o laboratório indiano estão travadas e nem Deus sabe como se dará o feedback da requisição das seis milhões de doses da Coronavac solicitadas ao Butantan pelo Ministério da Saúde. O Ministério tem prerrogativas legais para isso, mas conhecemos bem os embaraços políticos em jogo.  


 

Publisher: Humanitarian disaster in Manaus




Still impacted by those horrible scenes, shown yesterday on TV, with people dying from lack of oxygen in hospitals in Manaus, capital of the State of Amazonas. There is an ongoing humanitarian disaster of gigantic dimensions, which should be responsible for many other deaths, if urgent measures are not taken, since the absence of oxygen directly impacts not only on patients with breathing difficulties, as a result of complications caused by Covid-19, but on so many other patients, such as newborns, seriously injured in a coma, etc. Manaus has always faced great difficulties with the coronavírus. Who here, among our beloved readers, does not remember those other shocking scenes, the collective burials and pits hurriedly dug by excavators? Yeah. It has always been said that if the virus were spread in Manaus, we would be facing an announced tragedy. One of the difficulties would be related to the monitoring or monitoring of infected people. At the beginning of the pandemic, Manaus had one of the highest rates of infected and sick by the coronavírus, showing, shortly thereafter, a significant drop in cases, which led to a possible relaxation of preventive measures, perhaps due to a foregone conclusion that the city was under the stage of herd immunity, which is not confirmed by this new incidence of cases. What happened yesterday, in Manaus, is the fear that is installed in all hospital networks in other States, that is, the inability to meet the demand of patients infected with the coronavírus, hence the need for extra care with prevention .


Our assessment is that not only the State of Amazonas, but the country as a whole handled this problem very badly. Here in Pernambuco, for example, there is a recommendation from scientist Miguel Nicolelis - who advises the Northeast Consortium - where an immediate lockdown for the metropolitan region of Recife is recommended. At the moment, as preventive measures adopted by the State Government, only one meeting with the mayors of the coastal region, where it was defined that some disciplinary measures were adopted in order to avoid agglomerations. It is only now that a proposal to shut down access to the beaches has been timidly considered. In fact, to be fair, Nicolelis' recommendation would be to adopt a national lockdown immediately, as recently enacted in the capital Belo Horizonte, despite protests by traders and sabotage actions, treated as civil disobedience. 

On the scientific carriage floor, science has yet to discover much about this virus. There are people without symptoms that transmit it; cured people who get the virus again after a few months; there are doubts about whether the vaccines now in use would guarantee permanent or only temporary immunity to the virus; the variants are becoming increasingly lethal and transmissible, possibly one of them contaminating Amazonians with such speed. In this context, the greatest prevention would still be those precautions recommended since the beginning of the pandemic, that is, avoiding crowds, using the mask, washing your hands frequently with alcohol in gel or yellow soap. It's been months of living with this stress caused by confinement, but there is no other way. Unfortunately, people are not adopting these measures and disrespecting the quarantine, judging by the impulse seen in tourist activities in recent months, with airlines celebrating the return of the almost "normality of operations", as well as the hotel chain, with the high bed occupancy rates. On the last day of 2020, the Police had enormous difficulties in containing illegal parties to celebrate the turn of the year. 

The problem is compounded by the fact that we are living in the era of negativism and fake news. The moment becomes even more apprehensive, since we are fencing with madmen, as the presenter William Bonner said yesterday during the Jornal Nacional, possibly based on disclosures of lies that try to discredit the data presented by the pool of communication companies who gathered to collect and disseminate them, informing the population about the number of cases and deaths caused by the coronavírus in the country. The other day one of these insane people was asked to withdraw from an interview program after peremptorily denying the military dictatorship in Chile, one of the bloodiest in the continent, responsible for thousands of political deaths and disappearances, a scar that the country faces even today.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Tijolinho: O PT, finalmente, desembarca do Governo Paulo Câmara.



Não havia mais "clima" para o PT continuar mantendo o relacionamento com o Governo Paulo Câmara(PSB). Embora filiados e militantes do Partido dos Trabalhadores, reiteradas vezes, tenha manifestado o  desejo de que o partido deveria entregar os cargos e constituir-se como força política de oposição no Estado, há motivos para acreditar que, na realidade, pode ter sido o PSB quem tomou a iniciativa de comunicar o rompimento. Depois de trocar inúmeras farpas com a candidata do partido às eleições municipais do Recife, Marília Arraes(PT-PE), o prefeito eleito, João Campos(PSB-PE), mesmo antes de assumir a prefeitura, deixou claro que não desejava o partido em sua gestão, desconsiderando os arranjos políticos complexos e os acordos de cavalheiros que permitiam que membros daquela agremiação política participassem do Governo Paulo Câmara(PSB-PE), pelo menos até o final de 2021. Reforça ainda essa tese um encontro recente entre o governador Paulo Câmara e o líder dos Progressistas no Estado, deputado federal Eduardo da Fonte(PP-PE), cuja pauta teria sido o ajuste da participação daquele partido no Governo. Os Progressistas reivindicavam justamente a Secretaria de Desenvolvimeto Agrário, em tese, prometida ao partido pelos socialistas desde de longas datas. Não há dúvidas de que eles indicarão o nome que deverá substituir Dilson  Peixoto(PT-PE) naquela secretaria. 

Como um partido político de base, o PT ainda costuma sentir o pulso de sua militância, o que é algo muito positivo. A participação do partido no Governo Paulo Câmara era uma tese amplamente rejeitada pela Juventude do Partido, num primeiro momento, e, mais recentemente, circulou um abaixo-assinado com mais de 300 assinaturas endossando essa proposição, argumentando  ser inaceitável o tratamento dispensado  pelos socialistas ao partido nas últimas eleições municipais, um ato de deslealdade. Por outro lado, acredito, ainda assim, tais manifestações não seriam suficientes para demover a sua ala burocratizada de continuar no governo, não fosse por alguns fatos novos que, por conveniência de ambos os lados, poderemos nunca ficar sabendo. Ontem também especulou-se que o PT poderia lançar o nome do senador Humberto Costa ao Governo do Estado nas eleições estaduais de 2022. Trata-se, ainda, de uma possibilidade aventada, nada oficial. Internamente, certamente, teremos um problema, uma vez que a deputada federal Marília Arraes(PT-PE) alimenta projetos majoritários e eu não sei se ela estaria disposta a bater chapa com Humberto Costa numa disputa interna pela indicação.  

Desde a década de 80 do século passado que o senador Humberto Costa é o homem da confiança do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva aqui no Estado. Amizade antiga, dos tempos das vacas magras, quando ambos viajavam para o interior do Estado para fazer visitas aos parentes de Lula em Caetés. Era aquele PT que se reunia no Sindicato das Empregadas Domésticas e o carro "oficial' era uma velha Brasília Amarela do Senador. Outro dia fiquei muito feliz ao receber a noticia de que uma de nossas crônicas, tratando deste assunto, venceu um concurso literário e será publicada em breve. Através da ficção, refiz essa viagem do hoje senador àquela região do Agreste Meridional, sem esquecer, naturalmente, as paradas no caminho para saborear um capão à cabidela, com feijão verde com muito quiabo e maxixe, acompanhado de um suco de Umbu e um pedaço de rapadura na sobremesa. Antes de tudo, porém, uma branquinha para abrir o apetite. O pleito de uma provável candidatura de Humberto Costa ao Governo do Estado, nas eleições estaduais de 2022, já contaria com o sinal verde de Lula. Não poderia ser diferente. Como um rebento nordestino legítimo, essa coisa de ingratidão não combina muito bem Lula.   

Charge! Duke via O Tempo

 


Charge! Mor via Folha de São Paulo

 


quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Tijolinho: Os movimentos em torno da composição de uma chapa de oposição.



Nesses tempos difíceis impostos pela pendemia, veio às nossas lembranças os bons tempos passados na Suíça pernambucana, daquelas manhãs de pescaria com as crianças  no Hotel Fazenda Alvorada, quando ele ainda era administrado pelo grande Mauro Lima. No café da manhã, os famosos queijos de búfalas, com leite produzido ali mesmo, recolhidos logo cedinho, no curral, sob o olhar embevecido dos guris. O Hotel Fazenda Alvorada tem uma grande vantagem sobre outros equipamentos de lazer daquela cidade, pois fica praticamente dentro do perímetro urbano, permitindo o trânsito fácil para outras atrações da cidade. Garanhuns, ô terrinha boa, como diria o velho Luiz Gonzaga. Vez por outra aparece uns canibais fazendo empadinhas de carne humana, mas nada que estrague os encantos e a força dos seus atrativos junto aos pernambucanos, que, não raro, em épocas específicas do ano, realizam grandes deslocamentos para deles usufruírem. Isso quando não ficam em Gravatá, sua principal concorrente, que possui a ligeira vantagem geográfica de ficar bem mais perto do Recife. 

Num período até certo ponto recente, travou-se ali uma das grandes batalhas politicas no Estado, envolvendo, de um lado, o governador Eduardo Campos e, do outro lado, o hoje senador Armando Monteiro, que concorria pela oposição ao Governo do Estado. Garanhuns possui um grande colégio eleitoral e é uma cidade estratégica do Agreste Meridional. Não lembro de maiores detalhes, mas, assim como ocorreu em Caruaru, a briga assumiu contornos de uma batalha pessoal, quando o Palácio do Campo das Princesas à época usou todos os seus recursos políticos para derrotar os adversários. Izaías Régis(PDT), apoiado por Armando Monteiro, deu a vitória a oposição naquela cidade, sagrando-se num dos principais prefeitos rebeldes, assim como Raquel Lyra, em Caruaru. Com a derrota infringida ao governo, ambos tornaram-se duas grandes lideranças políticas regionais, ainda hoje não cooptadas, permanecendo no campo oposicionista, articulando-se para os arranjos políticos em torno das eleições estaduais de 2022. 

E, por falar nesses arranjos políticos, sou informado que o nome de Izaías Régis está sendo lembrado na bolsa de apostas para compor uma possível chapa majoritária da oposição na condição de vice, o que poderia agregar a força do voto do agreste, neste caso, com um cabeça de chapa de perfil urbano. É curiosa essa movimentação, pois ela indica uma composição e uma estratégia política que tem como pressuposto integrar votos urbanos e rurais, envolvendo as três principais famílias que disputam a indicação das forças de oposição, os Ferreira, de Jaboatão, os Lyra, de Caruaru, e os Coelho, de Petrolina. Se está havendo um movimento urbano para o interior, neste momento, é de se esperar que Raquel Lyra(PSDB-PE) ou Miguel Coelho(MDB-PE) estejam se preparando para aportar no Recife, de olho no eleitorado urbano.  

Editorial: A responsabilidade e a responsibilidade do exercício do cargo de presidente


Peço perdão aos nossos leitores por não ter participado dos debates do dia de ontem, por razões alheias à nossa vontade. A pauta de hoje, por outro lado, está repleta de assuntos interessantes para trazermos para a discussão por esses editoriais. Difícil mesmo, foi eleger um deles para tratar aqui com vocês. O deputado federal, João Lira(PP-AL), que concorre às eleições para presidir a Câmara dos Deputados com o apoio do Palácio do Planalto, fez uma visita ao governador Paulo Câmara(PSB-PE), no dia de ontem, uma espécie de canapé político, que contou com a presença de parlamentares da bancada pernambucana em Brasília, assim como com o prefeito do Recife, João Campos(PSB-PE), um entusiasta do apoio a sua candidatura dentro do PSB, contrariando uma recomendação da própria Executiva Nacional da legenda socialista, que, pela unanimidade de 80 votos, decidiu que não votaria no candidato apoiado pelo Planalto. 

Aquelas eleições estão se tornando um poço de contradições e incertezas, o que leva o deputado João Lira(PP-AL) hoje - não sem bons argumentos - a colocar-se como mais independente e menos governista do que o deputado federal Baleia Rossi(MDB-SP), que concorre pela oposição, com o apoio do atual presidente daquela Casa, Rodrigo Maia(DEM-RJ). Baleia Rossi, sabe-se, não é assim nenhuma cajuína original - daquelas produzidas nos Estados do Piauí ou Ceará - quando se está em discussão sua condição de verdadeira oposição. O PT, por exemplo, está no jogo, mas não consegue disfarçar o desconforto daquela espinha entalada na garganta, que foi o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, onde, tanto o MDB quanto DEM tiveram um papel decisivo para afastá-la da Presidência da República. O grupo de Maia vem adotando a estratégia do morde e assopra, ou seja, enquanto ele adota uma narrativa efetiva de oposição radical ao Governo, aciona, nos bastidores, o consultor político informal do Planalto, o ex-presdiente Michel Temer(MDB-SP), para colocar panos mornos junto a Jair Bolsonaro(Sem Partido), informando que Baleia Rossi está sob controle. 

Não poderia deixar de registrar aqui o relátório sobre os direitos humanos no Brasil, produzido pela Human Rights Watch, que aponta diversos problemas com o país nos últimos anos, principalmente em relação à saúde de nossa democracia, sensivelmente abalada. Ponto por ponto, deveremos destrinchar esse relatório aqui com vocês, como, aliás, fazemos todas as vezes em que o mesmo é públicado. O relatório da Human Rights Watch é como aquele exame anual ao qual somos submetidos para verificar a quantas andam nossas taxas e, consoante os resultados, tomarmos aquelas providências de abandonar certos alimentos, adotar novas hábitos de saúde, como parar com o cigarro ou moderar nas bebidas alcoolicas e manter-se atento às atividades físicas. No tocante à violência nas favelas cariocas, por exemplo, o relatório traz um dado emblemático, ao constatar que as taxas de violência naqueles territórios diminuiram em mais de 70% com a proibição do STF de se fazer operações policiais naquelas áreas durante a pandemia. 

Esta informação ratifica uma outra, publicada alguns anos antes, onde se evidencia que a criação das UPPs, na realidade, não apenas não resolveu o problema da violência nas favelas, mas agravou-o. O caso do pedreiro Amarildo, por exemplo, tornou-se um símbolo de sua ineficácia no enfrentamento do problema da violência nas favelas. Mesmo sendo violência urbana um tema nevrálgico - uma vez que as corporações não convivem muito bem com as críticas, principalmente nestes momentos políticos bicudos que o país atravessa - é uma das linhas editoriais deste blog e vamos voltar a tratá-lo, assim como o desastre ambiental que estamos vivenciando, movido pela lógica perversa da racionalidade ultraliberal ora em curso.

E, antes que me acusem de não abordar o tema específico deste editorial, faço aqui uma referência ao impeachment do presidente americano Donald Trump. Já são dois processos de impeachment aprovados pela Câmara contra ele, encaminhados ao Senado para a apreciação dos senadores. Diferentemente do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, este tem lastro na violação dos preceitos constitucionais que garantem a existência das formalidades e dos ritos democráticos naquele país. O pressuposto é simples. A decisão  de participar das regras do jogo de uma democracia representativa, impõe- aos seus eleitos, um princípio básico: respeitá-las. Donald Trump está sendo punido por incitamento à violência, por não concordar com os resultados do pleito - sem mostrar provas concretas de suas ilações - o que permitiria uma alternância natural e sadia do poder. Na história da democracia americana Trump seria o primeiro presidente afastado por tal motivo. Houve aqui um caso de irresponsabilidade com a preservação dos princípios democráticos. Nem entro aqui no mérito da responsibilidade que ocorre, numa democracia, quando o governante precisa responder às demandas sociais e econômicas dos cidadãos e cidadãs que o elegeram. Entra aqui a questão da democracia substantiva, que, a rigor, também não vai lá muito bem das pernas naquele país, se considerarmos os aumentos exponenciais de desempregados, pessoas em situação de rua e violação de direitos humanos.  

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Charge! Duke via O Tempo

 


Tijolinho: Isaías Honorato da Silva, O Carrapicho.



Para quem ainda não o conhece, Isaias Honorato da Silva(PP-PE), popularmente conhecido como Carrapicho, é o novo prefeito da paradisíaca cidade litorânea de Tamandaré, litoral sul do Estado. Assim como todas as pessoas que vem das bases, tem uma trajetória política marcada por muitas adversidades, cheia de altos e baixos. Mais baixos do que alto. Isaías é uma pessoa humilde, lanterneiro, que complementava a renda familiar com a captura de siris e caranguejos. Foi eleito vereador do município, mas passou por uma processo de descompensação na Câmara de Vereadores do Município, o que lhes rendeu alguns embaraços judiciais. Isaías está sendo festejado por alguns órgãos de imprensa como o homem que derrotou, no município, uma oligarquia política que mantinha o poder por três décadas, os Hacker. A esposa do seu concorrente, Sérgio Hacker, Sari, está envolvida naquela fatídica ocorrência das Torres Gêmeas, que culminou com a morte do menino Miguel. Há motivos para comemorar? Sim, afinal uma oligarquia política foi desbancada, permitindo que um homem do povo ascendesse ao poder. 

Estamos fartos dessas oligarquias no Estado, como deixamos claro no primeiro artigo sobre as eleições estaduais de 2022. Essa hegemonia política - qualquer que seja - é sempre perniciosa para os interesses democráticos e republicanos. O Estado de Pernambuco é prodigo nesses exemplos ( ou seria maus exemplos?), um vício político herdado desde os tempos coloniais, das capitanias hereditárias. Neste cenário, perdemos bastante em termos de transparência de gestão, accountability politica, direito de expressão e crítica e coisas do gênero. Isso para não entrarmos no mérito da gestão temerária dos negócios do Estado, como se o mesmo fosse um negócio familiar, de compadrio, de arranjos nada republicanos, entre apaniguados. Esses grupos familiares criam tentáculos e ramificações no aparelho de Estado que, para removê-los, não se constitui numa terefa das mais simples. Sempre cito o exemplo do PRI, no México, que manteve-se no poder por mais de sete décadas. Qual não foi a surpresa quando o PAN desbancou aquela oligarquia e anunciou o "novo" ministério: tinha mais gente do PRI do que do PAN, o que nos remete à complexidade do problema. Era isso ou a máquina não seria tocada. Aqui em Pernambuco, neste momento político, no melhor dos cenários possíveis para as eleições estaduais de 2022, teremos uma oligarquia familair substituindo a outra. 

Num Estado vizinho, festejamos bastante a derrota da oligarquia Sarney, que dominava o Estado por cinco décadas. Depois se descobre que Flávio Dino(PCdoB) foi educado pelo família Sarney e apenas conseguiu chegar ao poder através de arranjos políticos complexos, que envolviam proeminantes figuras da velha guarda do sarneysismo. Um outro poblema estaria relacionado à tal bacia semântica, que acaba por moldar esses novos atores políticos às velhas estruturas, quase sempre viciadas. Já tivemos experiências similares aqui no Estado, com um cidadão humilde, do povo, conhecido por tocar fogo nos canaviais, que tornou-se prefeito, igualmenter desbancando uma tradicional oligarquia. Logo, tornou-se mais do mesmo. 

Stella do Patrocínio, ou o retorno de quem sempre esteve aqui

 

Anna Carolina Vicentini Zacharias

Stella do Patrocínio, ou o retorno de quem sempre esteve aqui
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Stella do Patrocínio: registros de enunciações e imagens só foram possíveis devido à luta antimanicomial (Foto: Reprodução)

 

Refiro-me ao retorno de Stella porque algumas lacunas a seu respeito foram preenchidas. Estamos falando de uma história ao mesmo tempo individual e coletiva e, principalmente, estamos nos referindo a lacunas ocasionadas por trinta anos de sequestro em ambiente manicomial, 26 dos quais ela esteve na Colônia Juliano Moreira. Desfazer confusões e encontrar informações anteriormente escondidas é motivo de comemoração.

Stella nasceu em 9 de janeiro de 1941. Ainda sabemos pouco a seu respeito. Aos 21 anos, passou a ser um sujeito psiquiatrizado – “doente mental”, como ela dizia –, depois de receber o diagnóstico que a manteve aprisionada. Como Foucault pontua, os manicômios eram instituições sociais voltadas para o controle dos corpos, inclusive de psiquiatrização da loucura. Por isso, são recorrentes as perdas de informações sobre a vida de cada um deles, bem como os papéis sociais desempenhados em liberdade e os seus laços familiares.

Mas, como muitos sabem, Stella também foi nomeada poeta. Depois de quase dez anos desde a sua morte (em 20 de outubro de 1992), o seu falatório – este era o modo como ela denominava o seu poder de enunciação – foi transcrito, recortado, organizado e publicado em 2001 por Viviane Mosé como um livro de poesia intitulado Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (Azougue editorial).

Contudo, não somente as gravações das enunciações de Stella, mas alguns registros fotográficos e audiovisuais só se tornaram possíveis devido à luta antimanicomial brasileira. Responsável por questionar parâmetros diagnósticos, patologizações de corpos historicamente subalternizados, violências institucionalizadas, dentre outros, a luta antimanicomial brasileira surge refletindo a necessidade de instaurar projetos de promoção de saúde, não de adoecimentos compulsórios. Por isso, várias mudanças institucionais começaram a ocorrer nos anos 1980, como o fechamento de leitos e a tentativa de reverter processos de apagamentos de histórias, restabelecer os laços entre os sujeitos psiquiatrizados e seus familiares etc.

No caso da Colônia Juliano Moreira, especificamente, houve a criação do Projeto de Livre Expressão Artística, no Núcleo Teixeira Brandão. Idealizado por Denise Correa e Marlene Iucksch, psicólogas que coordenavam o Núcleo, o Projeto fez o convite à então professora de artes visuais do Parque Lage, Nelly Gutmacher, para que aplicasse oficinas criativas com diversos materiais coletados pelas psicólogas. Desse modo, Gutmacher montou sua equipe com estudantes, que atuaram como estagiários no hospício. Destaco, entre eles, Carla Guagliardi. O projeto foi aplicado de 1986 a 1988, tendo como marco de seu fim uma exposição, chamada “O ar do subterrâneo”, no Paço Imperial. A exposição levou os trabalhos de dez mulheres durante as oficinas de arte, como Iracema Conceição dos Santos (instalação), Maria Hortência Bandeira da Costa (bonecas) e Stella do Patrocínio (falatório).

O que foi apresentado da produção de Patrocínio foi fruto das gravações de suas conversas com Guagliardi e, por vezes, com Nelly Gutmacher. O núcleo de artes transcreveu algumas enunciações da autora para a exposição no museu.

Outra medida implementada que merece destaque foi realizada por Mônica Ribeiro de Souza, que iniciou o seu estágio em psicologia sob a coordenação de Denise Correa, em 1990, no Teixeira Brandão. Dentre outras atividades, Mônica, além de também ter gravado suas conversas com Stella, foi a primeira pessoa a confirmar informações sobre ela, como a data de nascimento (9 de janeiro de 1941) e sua cidade de nascimento (Rio de Janeiro).

A estagiária em psicologia percorreu as ruas cariocas em busca de familiares de cada uma dessas artistas que apresentaram seus trabalhos no Museu do Paço. Seu objetivo foi “devolver um passado a quem o tinha perdido”, como ela me contou na ocasião de nossa conversa, em 2018. Infelizmente, Ribeiro de Souza não conseguiu encontrar os familiares de Stella para que ela recebesse alta médica, mas o seu trabalho, assim como o de Guagliardi e de Mosé, permitiu-me dar sequência nas buscas de informações sobre a vida e a obra de Stella do Patrocínio em minha dissertação recentemente publicada no acervo da UNICAMP, “Stella do Patrocínio: da internação involuntária à poesia brasileira”, e são os seus resultados mais significativos que tenho o prazer e a alegria de compartilhar.

O primeiro deles é grafia correta do nome de Stella: são dois “l”. Foi esse o modo como a autora escreveu o seu nome em um caderno de desenhos guardado por Mônica, disponível para consulta na dissertação. O RG de Stella também foi encontrado e foi outra fonte de confirmação dessa grafia. Ele se encontra no DETRAN/RJ.

Depois, a fotografia que ilustra este artigo. Estimo que ela tivesse entre 19 e 21 anos. Só consegui esse registro devido a outra nova informação: ela tem, sim, parentes vivos. Pude conhecer um dos seus três sobrinhos (portanto, seus herdeiros). Ele não apenas guarda essa foto, como também uma outra, em que Stella e Zilda Francisca Xavier, sua mãe, posam sérias com o menino sorridente ainda jovem. Tanto Stella quanto Zilda já estavam em condição de internação. As duas estavam no mesmo núcleo da Colônia, o Teixeira Brandão.

Também consegui ampliar a sua árvore genealógica através de buscas documentais nos arquivos de duas plataformas digitais: o FamilySearch e o Arquivo Nacional.

Seus familiares são José do Patrocínio e Sebastiana Maria de Jesus (avós paternos),  Emiliano Francisco Xavier e Guilhermina Francisca Xavier (avós maternos),  Manoel do Patrocínio (pai, natural do Sergipe) e Zilda Francisca do Patrocínio (mãe). Seus irmãos são Germiniano do Patrocínio (12 de maio de 1934), Olívia Patrocínio da Conceição (21 de junho de 1935), Antônio do Patrocínio (10 de janeiro de 1938), Carlos Chagas do Patrocínio (21 de novembro de 1938) e Ruth do Patrocínio (25 de junho de 1942).

Stella do Patrocínio teve três sobrinhos. Dois deles, frutos do casamento entre Olívia Patrocínio da Conceição e Abidelcrim da Conceição, nascidos em 1955 e em 1967. Outro sobrinho é filho de Ruth do Patrocínio, nascido em 1970.

O sobrinho de Stella com quem conversei não se recorda de nenhum dos seus tios homens, inclusive acredita não tê-los. É provável que todos tenham morrido jovens, mas a confirmação da morte prematura ocorreu apenas no caso de Antônio do Patrocínio, aos sete meses, entendido na certidão de óbito como indigente.

Por fim, outro resultado bastante relevante para as pesquisas é resultado de minha comparação do livro com suas fontes originais: (1) as gravações do falatório de Stella do Patrocínio por Carla Guagliardi, sua interlocutora (é importante lembrar que se tratavam de conversas, não de discursos espontâneos de Stella) e (2) um livro datilografado por Mônica Ribeiro de Souza, entregue como relatório final de estágio ao Museu Bispo do Rosário, contendo transcrições do falatório. Mônica também a gravou do mesmo modo como Carla o fez, em conversas, mas os registros em áudio foram perdidos.

Depois dessa comparação, percebi que há, em Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, um poema que acabou circulando múltiplas vezes em peças de teatro, revistas de divulgação literária, trabalhos acadêmicos que não estão em nenhum dos dois materiais. Refiro-me ao seguinte excerto, que ilustra a página 68 do livro de Mosé:

Nasci louca
Meus pais queriam que eu fosse louca
Os normais tinham inveja de mim
Que era louca

Apesar de esse discurso ser atribuído a Stella do Patrocínio, a pessoa que o enunciou foi outra paciente do Núcleo Teixeira Brandão, cujo nome não sabemos, mas que aparece no documentário Strultifera navis – dirigido por Clodoaldo Lino em 1987. Essa mulher aparece aos 15 minutos e 45 segundos enunciando exatamente as mesmas palavras, apesar de seu discurso ser mais longo, passando por cortes no livro.

Realmente não há nenhum indício de que Stella do Patrocínio elogie a loucura. Além do mais, ela jamais se refere ao seu diagnóstico utilizando a denominação “loucura”, mas “doença mental”, para inclusive negar o seu pertencimento àquele espaço. Um exemplo dessa negação, dentre tantos outros, é o poema da página 51 no mesmo livro:

Eu estava com saúde
Adoeci
Eu não ia adoecer sozinha não
Mas eu estava com saúde
Estava com muita saúde
Me adoeceram
Me internaram no hospital
E me deixaram internada
E agora eu vivo no hospital como doente
O hospital parece uma casa
O hospital é um hospital

Encontrar novas informações a seu respeito – como a grafia correta de seu nome, a existência de herdeiros e a verdadeira origem do único poema atribuído a Stella que acaba dissimulando toda a sua construção narrativa – é um passo importante para a preservação de sua memória. Se o seu discurso surpreende por tecer verdadeiras críticas ao ambiente asilar, como pontuou o psiquiatra Ricardo Aquino no prefácio ao Reino dos bichos, então faz sentido que levemos o falatório em consideração, e ele constantemente nos diz: Stella do Patrocínio foi sequestrada quando andava na rua, por ser “nega, preta e criola”, como se tivessem o direito de governá-la. As ações que a institucionalizaram foram responsáveis por seu adoecimento e por tratá-la como indigente.

Ouvi-la é aliar-se à luta antimanicomial, aos movimentos negros e feministas contra o memoricídio, contra as violências estatais e contra o aprisionamento em massa de pessoas negras em um país sordidamente racista, emprestando o termo de Aimé Césaire.

Assim também honramos a sua memória e a memória de tantos outros sujeitos negligenciados e aprisionados pelo poder público.

Anna Carolina Vicentini Zacharias é doutoranda em Teoria e História Literária na Unicamp.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)