Anna Carolina Vicentini Zacharias
Stella do Patrocínio: registros de enunciações e imagens só foram possíveis devido à luta antimanicomial (Foto: Reprodução)
Refiro-me ao retorno de Stella porque algumas lacunas a seu respeito foram preenchidas. Estamos falando de uma história ao mesmo tempo individual e coletiva e, principalmente, estamos nos referindo a lacunas ocasionadas por trinta anos de sequestro em ambiente manicomial, 26 dos quais ela esteve na Colônia Juliano Moreira. Desfazer confusões e encontrar informações anteriormente escondidas é motivo de comemoração.
Stella nasceu em 9 de janeiro de 1941. Ainda sabemos pouco a seu respeito. Aos 21 anos, passou a ser um sujeito psiquiatrizado – “doente mental”, como ela dizia –, depois de receber o diagnóstico que a manteve aprisionada. Como Foucault pontua, os manicômios eram instituições sociais voltadas para o controle dos corpos, inclusive de psiquiatrização da loucura. Por isso, são recorrentes as perdas de informações sobre a vida de cada um deles, bem como os papéis sociais desempenhados em liberdade e os seus laços familiares.
Mas, como muitos sabem, Stella também foi nomeada poeta. Depois de quase dez anos desde a sua morte (em 20 de outubro de 1992), o seu falatório – este era o modo como ela denominava o seu poder de enunciação – foi transcrito, recortado, organizado e publicado em 2001 por Viviane Mosé como um livro de poesia intitulado Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (Azougue editorial).
Contudo, não somente as gravações das enunciações de Stella, mas alguns registros fotográficos e audiovisuais só se tornaram possíveis devido à luta antimanicomial brasileira. Responsável por questionar parâmetros diagnósticos, patologizações de corpos historicamente subalternizados, violências institucionalizadas, dentre outros, a luta antimanicomial brasileira surge refletindo a necessidade de instaurar projetos de promoção de saúde, não de adoecimentos compulsórios. Por isso, várias mudanças institucionais começaram a ocorrer nos anos 1980, como o fechamento de leitos e a tentativa de reverter processos de apagamentos de histórias, restabelecer os laços entre os sujeitos psiquiatrizados e seus familiares etc.
No caso da Colônia Juliano Moreira, especificamente, houve a criação do Projeto de Livre Expressão Artística, no Núcleo Teixeira Brandão. Idealizado por Denise Correa e Marlene Iucksch, psicólogas que coordenavam o Núcleo, o Projeto fez o convite à então professora de artes visuais do Parque Lage, Nelly Gutmacher, para que aplicasse oficinas criativas com diversos materiais coletados pelas psicólogas. Desse modo, Gutmacher montou sua equipe com estudantes, que atuaram como estagiários no hospício. Destaco, entre eles, Carla Guagliardi. O projeto foi aplicado de 1986 a 1988, tendo como marco de seu fim uma exposição, chamada “O ar do subterrâneo”, no Paço Imperial. A exposição levou os trabalhos de dez mulheres durante as oficinas de arte, como Iracema Conceição dos Santos (instalação), Maria Hortência Bandeira da Costa (bonecas) e Stella do Patrocínio (falatório).
O que foi apresentado da produção de Patrocínio foi fruto das gravações de suas conversas com Guagliardi e, por vezes, com Nelly Gutmacher. O núcleo de artes transcreveu algumas enunciações da autora para a exposição no museu.
Outra medida implementada que merece destaque foi realizada por Mônica Ribeiro de Souza, que iniciou o seu estágio em psicologia sob a coordenação de Denise Correa, em 1990, no Teixeira Brandão. Dentre outras atividades, Mônica, além de também ter gravado suas conversas com Stella, foi a primeira pessoa a confirmar informações sobre ela, como a data de nascimento (9 de janeiro de 1941) e sua cidade de nascimento (Rio de Janeiro).
A estagiária em psicologia percorreu as ruas cariocas em busca de familiares de cada uma dessas artistas que apresentaram seus trabalhos no Museu do Paço. Seu objetivo foi “devolver um passado a quem o tinha perdido”, como ela me contou na ocasião de nossa conversa, em 2018. Infelizmente, Ribeiro de Souza não conseguiu encontrar os familiares de Stella para que ela recebesse alta médica, mas o seu trabalho, assim como o de Guagliardi e de Mosé, permitiu-me dar sequência nas buscas de informações sobre a vida e a obra de Stella do Patrocínio em minha dissertação recentemente publicada no acervo da UNICAMP, “Stella do Patrocínio: da internação involuntária à poesia brasileira”, e são os seus resultados mais significativos que tenho o prazer e a alegria de compartilhar.
O primeiro deles é grafia correta do nome de Stella: são dois “l”. Foi esse o modo como a autora escreveu o seu nome em um caderno de desenhos guardado por Mônica, disponível para consulta na dissertação. O RG de Stella também foi encontrado e foi outra fonte de confirmação dessa grafia. Ele se encontra no DETRAN/RJ.
Depois, a fotografia que ilustra este artigo. Estimo que ela tivesse entre 19 e 21 anos. Só consegui esse registro devido a outra nova informação: ela tem, sim, parentes vivos. Pude conhecer um dos seus três sobrinhos (portanto, seus herdeiros). Ele não apenas guarda essa foto, como também uma outra, em que Stella e Zilda Francisca Xavier, sua mãe, posam sérias com o menino sorridente ainda jovem. Tanto Stella quanto Zilda já estavam em condição de internação. As duas estavam no mesmo núcleo da Colônia, o Teixeira Brandão.
Também consegui ampliar a sua árvore genealógica através de buscas documentais nos arquivos de duas plataformas digitais: o FamilySearch e o Arquivo Nacional.
Seus familiares são José do Patrocínio e Sebastiana Maria de Jesus (avós paternos), Emiliano Francisco Xavier e Guilhermina Francisca Xavier (avós maternos), Manoel do Patrocínio (pai, natural do Sergipe) e Zilda Francisca do Patrocínio (mãe). Seus irmãos são Germiniano do Patrocínio (12 de maio de 1934), Olívia Patrocínio da Conceição (21 de junho de 1935), Antônio do Patrocínio (10 de janeiro de 1938), Carlos Chagas do Patrocínio (21 de novembro de 1938) e Ruth do Patrocínio (25 de junho de 1942).
Stella do Patrocínio teve três sobrinhos. Dois deles, frutos do casamento entre Olívia Patrocínio da Conceição e Abidelcrim da Conceição, nascidos em 1955 e em 1967. Outro sobrinho é filho de Ruth do Patrocínio, nascido em 1970.
O sobrinho de Stella com quem conversei não se recorda de nenhum dos seus tios homens, inclusive acredita não tê-los. É provável que todos tenham morrido jovens, mas a confirmação da morte prematura ocorreu apenas no caso de Antônio do Patrocínio, aos sete meses, entendido na certidão de óbito como indigente.
Por fim, outro resultado bastante relevante para as pesquisas é resultado de minha comparação do livro com suas fontes originais: (1) as gravações do falatório de Stella do Patrocínio por Carla Guagliardi, sua interlocutora (é importante lembrar que se tratavam de conversas, não de discursos espontâneos de Stella) e (2) um livro datilografado por Mônica Ribeiro de Souza, entregue como relatório final de estágio ao Museu Bispo do Rosário, contendo transcrições do falatório. Mônica também a gravou do mesmo modo como Carla o fez, em conversas, mas os registros em áudio foram perdidos.
Depois dessa comparação, percebi que há, em Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, um poema que acabou circulando múltiplas vezes em peças de teatro, revistas de divulgação literária, trabalhos acadêmicos que não estão em nenhum dos dois materiais. Refiro-me ao seguinte excerto, que ilustra a página 68 do livro de Mosé:
Nasci louca
Meus pais queriam que eu fosse louca
Os normais tinham inveja de mim
Que era louca
Apesar de esse discurso ser atribuído a Stella do Patrocínio, a pessoa que o enunciou foi outra paciente do Núcleo Teixeira Brandão, cujo nome não sabemos, mas que aparece no documentário Strultifera navis – dirigido por Clodoaldo Lino em 1987. Essa mulher aparece aos 15 minutos e 45 segundos enunciando exatamente as mesmas palavras, apesar de seu discurso ser mais longo, passando por cortes no livro.
Realmente não há nenhum indício de que Stella do Patrocínio elogie a loucura. Além do mais, ela jamais se refere ao seu diagnóstico utilizando a denominação “loucura”, mas “doença mental”, para inclusive negar o seu pertencimento àquele espaço. Um exemplo dessa negação, dentre tantos outros, é o poema da página 51 no mesmo livro:
Eu estava com saúde
Adoeci
Eu não ia adoecer sozinha não
Mas eu estava com saúde
Estava com muita saúde
Me adoeceram
Me internaram no hospital
E me deixaram internada
E agora eu vivo no hospital como doente
O hospital parece uma casa
O hospital é um hospital
Encontrar novas informações a seu respeito – como a grafia correta de seu nome, a existência de herdeiros e a verdadeira origem do único poema atribuído a Stella que acaba dissimulando toda a sua construção narrativa – é um passo importante para a preservação de sua memória. Se o seu discurso surpreende por tecer verdadeiras críticas ao ambiente asilar, como pontuou o psiquiatra Ricardo Aquino no prefácio ao Reino dos bichos, então faz sentido que levemos o falatório em consideração, e ele constantemente nos diz: Stella do Patrocínio foi sequestrada quando andava na rua, por ser “nega, preta e criola”, como se tivessem o direito de governá-la. As ações que a institucionalizaram foram responsáveis por seu adoecimento e por tratá-la como indigente.
Ouvi-la é aliar-se à luta antimanicomial, aos movimentos negros e feministas contra o memoricídio, contra as violências estatais e contra o aprisionamento em massa de pessoas negras em um país sordidamente racista, emprestando o termo de Aimé Césaire.
Assim também honramos a sua memória e a memória de tantos outros sujeitos negligenciados e aprisionados pelo poder público.
Anna Carolina Vicentini Zacharias é doutoranda em Teoria e História Literária na Unicamp.
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
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