Luiz Sérgio Henrique.
Que a estrutura do mundo está atravessada por iniquidades entre indivíduos, regiões e nações, eis um fato autoevidente. E que, com a globalização — a qual, na sua forma presente, poderia ser chamada provocadoramente como um “comunismo dos capitalistas” —, tenhamos entrado numa fase de extraordinário dinamismo, que complica a capacidade de compreender e agir com clarividência, eis um outro dado a desafiar a imaginação e as categorias com que nos habituamos a pensar as coisas.
Digo isso a propósito das expectativas depositadas na virada à esquerda que, pela via eleitoral, a partir da primeira vitória de Hugo Chávez, em 1998, caracterizaram o quadro latino-americano, em especial os países que buscaram radicalizar a incorporação social e a superação do caráter excludente dos seus estados nacionais. Enquadram-se neste caso os países que têm afirmado, com retórica muitas vezes incandescente, processos “bolivarianos” de mudança interna e unificação do “Sul” do mundo em chave anti-imperialista e terceiro-mundista.
Num certo momento, antes das sublevações do mundo árabe contra os respectivos despotismos e da instalação da crise no coração dos países centrais, parecia residir só na América Latina o motor da mudança num sentido antineoliberal e, mais do que isso, anticapitalista. A Venezuela, por exemplo, não só fazia ecoar um agônico slogan calcado na revolução cubana — “Socialismo, pátria ou morte” —, mas também nos prometia um original “socialismo do século XXI”.
Nesta promessa, haveria uma novidade atraente. Talvez a retomada de algo como o projeto Allende, tragicamente derrotado no mundo de opções estreitas da Guerra Fria, mas que agora seria viável no contexto de uma revigorada democracia venezuelana, depois da sua derrocada “partidocrática” nas décadas finais do século passado. Os “de baixo”, enfim, pressionariam por sua incorporação ao Estado, forçando a ampliação deste último e reivindicando a diminuição das desigualdades e da insegurança econômica. Sem abdicar — pois nisso estaria o cerne da novidade — das liberdades formais, da livre competição partidária e da independência dos poderes republicanos definidos constitucionalmente.
Depois de mais de uma década de regime, nem o mais desatento observador à esquerda deveria se negar a examinar os traços decisivos daquela experiência. O imponderável — a doença do mandatário — fez-se presente com a indiferença típica da natureza em relação aos projetos humanos e, ao fazê-lo, lançou luz direta sobre aspectos que cabe considerar como próprios do velho socialismo do século XX e que, aliás, levaram à sua ruína. Entre eles, em primeiro lugar, a extrema concentração de poderes no executivo — no dirigente máximo — em detrimento do Legislativo, hoje fortemente limitado, apesar do pluralismo restaurado com a presença mais recente das oposições, e de um Judiciário intimidado, beirando a irrelevância.
À luz da experiência, não convém desprezar autores de convicções democráticas (ou “democrático-burguesas”, para evocar o catecismo da falecida URSS), como, a título de exemplo, Javier Corrales e Michael Penfold. Em recente livro sobre a economia política da revolução bolivariana (Dragon in the Tropics, da Brookings Institution), eles destacam a natureza “híbrida” do regime: nem plenamente democrático nem desabridamente autocrático. Movendo-se numa zona cinzenta de crescente arbítrio, em que metodicamente se desmantelam os mecanismos de freios e contrapesos, o regime conseguiu mostrar-se eleitoralmente competitivo, vencendo a maioria das disputas e referendos a partir da Constituinte bolivariana. Uma “autocracia eleitoral”, dizem os autores, ainda que, nas eleições legislativas de 2010, só a manipulação dos distritos tenha impedido que a maioria oposicionista se traduzisse em maioria de cadeiras.
O “hibridismo” do regime responderia por uma possível fragilidade das conquistas sociais, ancoradas no boom petrolífero e no manejo discricionário dos recursos da empresa estatal, ao que parece institucionalmente debilitada e operacionalmente esgotada. E, no aspecto político, um particular acento deveria ser posto nos problemas advindos da obtenção do direito indefinido à reeleição presidencial, rompendo com tradição latino-americana mais do que secular de limitação dos mandatos, a começar pela Argentina de Rosas e o México da Revolução de 1910.
Até um intelectual muito próximo de Chávez, como Noam Chomsky, parece ter dado passos no sentido de enfrentar o tema democrático no país bolivariano. A propósito de um caso particular — a prisão da juíza Maria Lourdes Afiuni em condições deploráveis, ela mesma às voltas com um câncer —, Chomsky escreveu carta aberta ao presidente Chávez, associando-se às preocupações do Carr Centre de Direitos Humanos da Universidade de Harvard. (No momento, a juíza está em prisão domiciliar, e seria proveitoso que entidades brasileiras da magistratura democrática se manifestassem a respeito deste e outros problemas que têm passado em brancas nuvens.)
Não só. Para Chomsky, conforme entrevista transcrita no respeitado jornal londrino The Observer, a concentração de poder só se justificaria em situações extremas e temporárias, como guerras civis ou conflitos internacionais de grandes proporções. Fora daí, tal concentração equivaleria a escancarar portas para o caudilhismo, esta particular patologia latino-americana.
Feito este balanço sumário, uma conclusão é possível: quem não se conforma com a injustiça e vê na democracia política não um obstáculo, mas o instrumento privilegiado de luta contra essa mesma injustiça — além, obviamente, de um valor em si — tem algumas razões para desconfiar de que o socialismo do século XXI está rigorosamente por ser inventado.
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Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil.
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