
O Brasil não é pobre. Mas seus recursos são frequentemente mal
utilizados, ou desviados, vazando pelas numerosas brechas, legais ou
ilegais, quando poderiam ser produtivos. E não se trata de, como sempre,
culpar o governo: são articulações públicas e privadas que deformam o
processo decisório. Seguir o dinheiro ajuda a entender a dinâmica tanto
deste como das deformações políticas. Cada um de nós conhece alguns
aspectos e suspeita de outros. Mas vale a pena descrever os principais
mecanismos e ver como se articulam.
A compra das eleições
Os grandes vazamentos não se dão, de forma geral, por meios ilegais,
pois são praticados por grupos suficientemente poderosos para adaptar a
legalidade aos seus interesses. O ponto de partida, portanto, está na
apropriação da máquina que faz as leis. No Brasil, a lei que libera o
financiamento das campanhas por interesses privados é de 1997.1
Quanto mais cara é a campanha, mais o processo é dominado por grandes
financiamentos corporativos e mais a política se vê colonizada. O
resultado é a erosão da democracia e custos muito mais elevados para
todos, já que os gastos com as campanhas são repassados para o público
por meio dos preços. Nos Estados Unidos, onde um sistema semelhante foi
instalado em 2010, Hazel Henderson comenta: “Temos o melhor Congresso
que o dinheiro pode comprar”.
Os grupos econômicos podem contribuir com até 2% do patrimônio, o que
representa muito dinheiro. Os professores Wagner Pralon Mancuso e Bruno
Speck, respectivamente da USP e da Unicamp, estudaram os impactos. “Os
recursos empresariais ocupam o primeiro lugar entre as fontes de
financiamento de campanhas eleitorais brasileiras. Em 2010, por exemplo,
corresponderam a 74,4%, mais de R$ 2 bilhões, de todo o dinheiro
aplicado nas eleições (dados do Tribunal Superior Eleitoral).”2
O custo das campanhas é até, em termos relativos, um mal menor se
comparado aos custos de uma política estruturalmente deformada. Na
realidade, é um desencadeador de deformações. A representação
desequilibrada gerou um sistema tributário que onera proporcionalmente
os mais pobres, levando à reprodução da desigualdade. Criou-se também
uma cultura de superfaturamento de obras que a colusão entre políticos e
grandes empreiteiras permite. Mais grave ainda, deforma-se o uso final
dos recursos, por exemplo, com priorização do transporte individual nas
grandes cidades ou do transporte rodoviário para transporte de carga, e
assim por diante. E, em termos políticos, o sistema corrói o processo
democrático ao gerar uma perda de confiança popular na política em
geral.
O sistema gerou sua própria legalidade. Em 1997, transformou-se o poder
financeiro em direito − o direito de influenciar as leis, às quais
seremos todos submetidos. Ético mesmo é reformular o sistema e
acompanhar os países que evoluíram para regras do jogo mais inteligentes
e limitaram drasticamente o financiamento corporativo das campanhas.
A armadilha da dívida pública
Acostumamo-nos a que tipicamente 5% de nosso PIB seja desviado via
governo para intermediários financeiros, sem que produzam nada. Pelo
contrário, desviam-se os recursos do investimento produtivo para a
aplicação financeira. Para cobrir os juros sobre a dívida, o governo FHC
elevou a carga tributária de 26% para 32% do PIB. De algum lugar tinha
de vir o dinheiro.
No momento em que Lula assumiu o governo, em 2003, a taxa Selic estava
em 24,5%. Em junho de 2002, a dívida pública tinha chegado a 60% do PIB;
hoje está mais próxima de 35%, e os juros pagos sobre a dívida baixaram
para menos de 10%, mas o estoque da dívida é maior. Foi fácil abrir a
torneira, fechá-la é muito mais complicado. Em comparação, a taxa
oficial de juros praticada internacionalmente é da ordem de 0,5% a 2%.
A partir do governo Lula, o sistema foi sendo gradualmente controlado.
Ainda assim, é uma transferência de dinheiro público para não produtores
que se conta, como ordem de grandeza, em algo como R$ 150 bilhões por
ano. É um sistema legal conseguido por meio do apoio político comprado
com dinheiro corporativo e repassado ao consumidor nos preços que paga.
Para os grupos que vivem de renda financeira, e não de produção, em vez
de ir contra a lei, é mais prático fazer a lei ir ao seu encontro.
No braço de ferro que hoje se desenrola, a cada vez que se baixa meio
ponto da Selic, o mundo financeiro grita na mídia, todos ameaçam com a
inflação, pedem “responsabilidade” ao governo, conseguindo inclusive
reverter o processo de baixa. A evolução é resumida por Amir Khair: “A
dívida líquida do setor público foi marcadamente influenciada pela
Selic. No início do governo FHC estava em 28% do PIB e, mesmo com a
megavenda de patrimônio público com privatizações, ao final do governo
chegou a 60,4%. A elevada Selic foi a responsável por isso. No final do
governo Lula, tinha baixado para 39,2% e em julho estava em 34,9%. Caso a
Selic continue caindo, é capaz que ao final do governo Dilma seja
possível retornar próximo da que estava no início do governo FHC”.3
Uma monumental transferência de recursos públicos para rentistas que,
além de nos custar muito dinheiro, desobriga os bancos de fazer
investimentos produtivos que gerariam produto e emprego. É tão mais
simples aplicar nos títulos, liquidez total, risco zero. Realizar
investimentos produtivos, financiando, por exemplo, uma fábrica de
sapatos, envolve análise de projetos, acompanhamento, enfim, atividades
que vão além de aplicações financeiras.
A manipulação dos juros comerciais
Os intermediários financeiros e rentistas não se contentam com a Selic,
taxa de juros oficial sobre a dívida pública. Recorrem a um segundo
mecanismo, que é a fixação de elevadas taxas de juros ao tomador final
por bancos comerciais, mecanismo diferente da taxa Selic, tanto assim é
que a Selic baixou radicalmente diante dos 25-30% da fase FHC para os
8,5% atuais, sem que houvesse redução significativa dos juros dos bancos
comerciais.
Naturalmente, os bancos comerciais, como entidades privadas, afirmam
que são livres para praticar os juros que quiserem. A coisa não é assim,
por uma razão simples: como trabalham com dinheiro do público, e não
deles, devem seguir regras definidas pelo Banco Central, e mesmo um
banco privado precisa de uma carta-patente que o autorize a funcionar
dentro de certas regras. Estas, naturalmente, vão depender da capacidade
de pressão política.
Como se trata de dinheiro do público apropriado diretamente pelos
intermediários financeiros, sem mediação do governo, poderíamos achar
que não é desvio de dinheiro. De certa forma, quando tiram nosso
dinheiro sem a ajuda de um político, seria por assim dizer mais limpo.
Habilidade de um lado, ingenuidade ou impotência do outro, mas não
corrupção. Essencial para nós é que só se podem sustentar no Brasil
juros tipicamente dez vezes maiores (dez vezes, não 10% a mais) em
relação aos praticados internacionalmente mediante apoio político. E,
como durante longo tempo tivemos banqueiros na presidência do Banco
Central, montou-se mais um sistema impressionante de legalização do
desvio de nosso dinheiro. Essa “ponte” entre o político e o comercial
precisa ser explicitada.4
O artigo 170 de nossa Constituição define como princípios da ordem
econômica e financeira, entre outros, a função social da propriedade
(III) e a livre concorrência (IV). O artigo 173, no parágrafo 4o,
estipula que “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à
dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento
arbitrário dos lucros”. O parágrafo 5o é ainda mais
explícito: “A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos
dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta,
sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos
praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia
popular”. Cartel é crime. Lucro exorbitante sem contribuição
correspondente produtiva será “reprimido pela lei” com “punições
compatíveis”.
Estudo do Ipea mostra que a taxa real de juros para pessoa física
(descontada a inflação) cobrada pelo HSBC no Brasil é de 63,42%; no
Reino Unido, é de 6,6% (no mesmo banco, para a mesma linha de crédito).
Para o Santander, as cifras correspondentes são 55,74% e 10,81%. Para o
Citibank, são 55,74% e 7,28%. O Itaú cobra sólidos 63,5%. Para pessoa
jurídica, área vital porque se trataria de fomento a atividades
produtivas, a situação é igualmente absurda. O HSBC, por exemplo, cobra
40,36% no Brasil e 7,86 no Reino Unido.5
No conjunto, trata-se de um desvio de dinheiro da economia real, via
uma forma institucional ilegal, que é a “dominação dos mercados,
eliminação da concorrência e aumento arbitrário dos lucros” que a
Constituição condena em termos inequívocos. Diante dos números, há
alguma dúvida quanto à ilegalidade? Não há notícias de julgamento a esse
respeito, e sim de muitas denúncias no Procon, Idec e outras
instituições, e milhões de pessoas se debatendo em dificuldades. O
Serasa-Experian, hoje empresa multinacional, guardiã da moralidade
financeira, decreta que brasileiros passam a ter o nome sujo, ou seja,
pune quem não consegue pagar os 238% hoje cobrados no cartão, e não quem
os cobra.
Os paraísos fiscais
Um dos efeitos indiretos da crise mundial é que há um forte avanço
recente no estudo dos grandes grupos econômicos e das grandes fortunas.
Aliás, o imenso esforço de comunicação destinado a atribuir a crise
financeira mundial ao comportamento irresponsável dos pobres, seja nos
Estados Unidos ou na Grécia, é patético. Um estudo que sobressai, de
autoria do Instituto Federal Suíço de Pesquisa Tecnológica (ETH, na
sigla alemã), constatou que 147 corporações, das quais 75% são grupos
financeiros, controlam 40% do sistema corporativo mundial. Num círculo
um pouco mais aberto, 737 grupos controlam 80%. Nunca houve, na história
da humanidade, nada de parecido com esse nível de controle planetário
por meio de mecanismos econômicos e financeiros. A apropriação ou no
mínimo fragilização das instituições políticas perante esses gigantes
torna-se hoje fato comprovado.6
Corroborando essa pesquisa, e focando inclusive em grande parte os
mesmos bancos, temos hoje outra pesquisa de grande porte, liderada por
James Henry, ex-economista-chefe da McKinsey, e realizada no quadro da
Tax Justice Network. Em termos resumidos, o estoque de recursos
aplicados em paraísos fiscais é hoje da ordem de US$ 21 trilhões, um
terço do PIB mundial. O Brasil participa generosamente com cerca de US$
520 bilhões, mais de R$ 1 trilhão, cerca de um quarto do nosso PIB. São
dados obtidos por meio de cruzamento de informações dos grandes bancos,
do Banco de Compensações Internacionais (BIS, na sigla em inglês) da
Basileia, do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional, de bancos
centrais e de várias instituições de pesquisa ou de controle. Nada de
invenções: trata-se no essencial de juntar os dados de forma organizada,
com metodologia clara e transparente, e indicações da relativa
segurança ou insegurança dos dados a cada passo. Essa peça informativa
fazia muita falta, e passamos agora a ver o que acontece com tanto
dinheiro ilegal que resulta das várias formas de corrupção.7
A economia trata da alocação racional de recursos. Aqui há pouca
racionalidade, a não ser que olhemos da perspectiva dos que deles se
apropriam. As eleições nos custam R$ 2 bilhões, é até pouca coisa. Mas a
manipulação permitida nos custa centenas de bilhões por meio dos
mecanismos que se tornaram legais ou de difícil controle judiciário. A
deformação do sistema tributário desonera os muito ricos e fragiliza o
setor público, reproduzindo a desigualdade.
A irracionalidade das infraestruturas custa bilhões e nos atinge a
todos, gerando um país de altos custos. Os cerca de R$ 150 bilhões de
juros pagos a rentistas são um desvio radical de dinheiro que poderia
ser transformado em investimentos. Os imensos recursos que constituem
nossas poupanças depositadas em bancos poderiam servir ao fomento
econômico, e não à agiotagem com as taxas de juros praticadas. O
escoamento dos recursos gerados para paraísos fiscais, cerca de R$ 1
trilhão acumulados no caso do Brasil, nos priva de recursos necessários
ao desenvolvimento, sustenta uma ilegalidade que virou cultura e deforma
profundamente tanto o sistema político como o econômico. São as regras
do jogo que estão viciadas.
Ladislau
Dowbor é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de
Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia, e professor titular da
PUC-SP. É autor de A reprodução social e Democracia economômica - um passeio pelas teorias (contato http://dowbor.org). Ilustração: Daniel Kondo
1 O financiamento está baseado na Lei n. 9.504, de 1997: “‘As doações
podem ser provenientes de recursos próprios (do candidato); de pessoas
físicas, com limite de 10% do valor que declarou de patrimônio no ano
anterior no Imposto de Renda; e de pessoas jurídicas, com limite de 2%,
correspondente [à declaração] ao ano anterior’, explicou o juiz Marco
Antonio Martin Vargas, assessor da Presidência do Tribunal Regional
Eleitoral (TRE) de São Paulo”. Citado por Elaine Patricia da Cruz,
“Entenda o financiamento de campanha no Brasil”, Exame, São Paulo, 8
jun. 2010.
2 “Pouquíssimos candidatos conseguem se eleger com pouco ou nenhum
dinheiro”, comenta Mancuso, que coordena o projeto de pesquisa “Poder
econômico na política: a influência de financiadores eleitorais sobre a
atuação parlamentar”. Ver mais em Bruna Romão, Agência USP. Disponível
em: <http://mercadoetico.terra.com.br/arquivo/investimento-de-empresas-influencia-sucesso-em-eleicoes/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=mercado-etico-hoje>.
3 O Estado de S. Paulo, 9 set. 2012.
4 “A corrupção foi frequentemente interpretada de maneira estreita,
focando excessivamente o setor público e ignorando o privado. O Banco
Mundial tem um approach ainda mais estreito, definindo corrupção como ‘o
abuso do serviço público para ganho privado’. Esse foco no setor
público como a única arena da corrupção não é apenas arbitrário. É
errado e, inclusive, pernicioso.” Tax Justice Network. Disponível em:
<www.taxjustice.net/cms/front_content.php?idcat=100>.
5 Ipea, “Transformações na indústria bancária brasileira e o cenário de
crise”, Comunicado da Presidência, abr. 2009, p.15. Disponível em: <www.ipea.gov.br/sites/000/2/pdf/09_04_07_ComunicaPresi_20_Bancos.pdf>.
6 Para uma análise sumária dos resultados da pesquisa do ETH, ver: <http://dowbor.org/2012/02/a-rede-do-poder-corporativo-mundial-7.html/>.
7 “Uma fração significativa da riqueza financeira privada global –
segundo nossas estimativas, pelo menos de US$ 21 trilhões a US$ 32
trilhões em 2010 – foi investida praticamente sem impostos através do
buraco negro mundial ainda em expansão de mais de oitenta jurisdições
offshore sigilosas. Acreditamos que estes sejam números conservadores.
Nessa escala, a economia em paraísos fiscais é grande o suficiente para
ter vasto impacto nas estimativas de desigualdade de riqueza e renda, e
nas estimativas das rendas nacionais e nos níveis de dívida; e – mais
importante – ter um impacto negativo bastante significativo nas bases
fiscais nacionais de países key source (ou seja, aqueles que têm visto
ao longo do tempo fugas de capital privado não registradas).” Tax
Justice Net, p.3. Disponível em: <www.taxjustice.net/cms/front_content.php?idcat=148>.
Os dados sobre o Brasil estão no Appendix III (1), p.23. Disponível em: .
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